Nelson Ascher
O grande romance brasileiro
[in Folha de São Paulo,
11.10.2004]
Digamos que, em algum simpósio
literário promovido pelo governo eslovaco em Bratislava, após fazer
amizade com uma escritora finlandesa ou búlgara, eu conseguisse,
mencionando a mesóclise e o infinitivo pessoal, convencê-la dos
esplendores de nosso vernáculo.
Se, do mais humilde camponês ao mais poderoso mandarim, os
habitantes da China imperial supunham viver no centro do mundo e não
mostravam muito interesse pelas terras bárbaras situadas além da
muralha, os europeus, antes de se tornarem turistas com meias
brancas e sandálias em busca de sol, costumavam ser diferentes, e
sua curiosidade por paragens e povos exóticos não tinha limites.
Paulo Rónai, por exemplo, tão logo aprendeu sozinho, em Budapeste
nos anos 30, o português com o auxílio de gramáticas e dicionários,
se pôs a traduzir poesia brasileira, não a de Portugal.
Meses depois do simpósio recebo um
e-mail redigido em português escorreito pela búlgara ou finlandesa
anunciando que ela aprendera nosso idioma e gostaria agora de ler
mais acerca do Brasil. Só que ela preferiria se aprofundar não em
obras historiográficas ou tratados sociológicos, mas em romances.
Feliz da vida por ter convertido uma estrangeira à brasilidade ou ao
brasilianismo, remeto-lhe Machado, Mário, Oswald, Graciliano,
Guimarães Rosa e Clarice.
Passadas várias semanas, ela me
responde: "Obrigada. Os autores que você me mandou são magníficos e,
se tivessem escrito em inglês ou francês, seriam universalmente
reconhecidos. Lendo-os com atenção e concentrando-me nas entrelinhas
fui capaz de vislumbrar algo da especificidade de seu país. Não me
entenda mal: mesmo quem não saiba nada sobre sua terra pode se
deliciar com eles. Mas aí é que está o problema, pois, embora eu
tenha me deliciado, nem por isso creio saber hoje mais a respeito do
Brasil do que antes de lê-los".
Ela acrescenta que pensava em livros como os de Thomas Mann ou
Arthur Schnitzler, William Faulkner ou Scott Fitzgerald, Alberto
Moravia ou D.H. Lawrence, Louis Ferdinand Celine ou Mario Vargas
Llosa. Em suma, narrativas que, sem prejuízo da qualidade estética,
oferecessem um painel amplo e razoavelmente explícito do período
histórico e da sociedade em que se ambientam.
Quais são, me pergunta ela, os
melhores romances brasileiros sobre a era Vargas, a construção de
Brasília, o golpe de 64, a ditadura militar e a transição para a
democracia? Onde estão as sagas que descrevem a trajetória de
diversas gerações de uma família italiana, árabe, japonesa ou judia
desde sua chegada a Santos no início do século 20 até os anos 90? E
as histórias de ascensão e queda individual cujo pano de fundo sejam
as transformações de São Paulo ou do Rio? Ela tampouco acredita que
não haja uma única variante local notável de um subgênero
tipicamente latino-americano, o romance sobre ditadores como "O
Outono do Patriarca", de García Márquez, ou "O Senhor Presidente",
de Miguel Angel Asturias. "Impossível", ela sublinha, "afinal vocês
tiveram o ditador mais interessante de todo o subcontinente: quem
são Perón, Trujillo, Pinochet e Castro comparados a Getúlio?".
Como é que devo retrucar? O dr. Samuel
Johnson disse certa vez a um jovem autor que seu manuscrito era bom
e original, mas a parte boa não era original e a parte original não
era boa. Pois bem: o Brasil produziu ficção boa e realista, mas a
ficção boa não é especialmente realista e a ficção realista...
Insatisfeita com minha não-explicação, a finlandesa ou búlgara
insiste: "Por quê?".
Se bem que tente me desculpar
argumentando que não tenho culpa, que minha família chegou a estes
trópicos apenas 50 anos atrás, ela me cobra mais detalhes. Eu
arrisco: talvez o país seja demasiadamente extenso e
incompreensível, talvez o material necessário para estudá-lo nem
sempre estivesse à mão, talvez os autores se sentissem intimidados
pelos mestres europeus e norte-americanos ou se dirigissem a um
público que, além de reduzido, conhecia o contexto tão bem quanto
eles, talvez achassem o país maçante, repetitivo, imutável. Até
nossos temas de exportação favoritos, secas e retirantes, miséria e
favelas, já foram devidamente explorados, com variações regionais,
na Rússia tzarista ou nos EUA dos tempos da Depressão.
Sua réplica não demora: "Cada
obstáculo citado seria, em outros lugares, tomado como um desafio.
Por que você não pára de reclamar como bom brasileiro (ela começou a
entender nosso espírito nacional) e faz alguma coisa? Escreva um
romance!". Como não adiantaria lhe retorquir que não sou do ramo,
que não tenho jeito para a ficção (ela diria: "Isso não é
desculpa"), resta-me somente expor-lhe as razões que levam algumas
pessoas a não escreverem romances.
O romance, um gênero intrinsecamente
enciclopédico que Hans Magnus Enzensberger qualificou de educação
sentimental da classe média, pode ser sobre tudo. Esse tudo, no
entanto, reduz-se em 99% dos casos, a três assuntos principais: a
grandeza humana, a sordidez humana (da qual o ridículo humano é uma
subcategoria) e o tédio da existência humana. Para falar da grandeza
humana, eu, sem conhecê-la de primeira mão, seria forçado a recorrer
ao plágio e chegaria, com sorte, ao realismo socialista. Quanto à
sordidez humana, é duro para a imaginação competir com o noticiário,
e copiá-lo, como Truman Capote fez em "A Sangue Frio", parece
redundante. Escrever sobre o tédio, por sua vez, contribui apenas
para aumentá-lo.
Tendo lhe enviado minha tréplica, não
espero ver e-mails da búlgara ou finlandesa tão cedo em minha caixa
de correio.
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