Nelly Novaes Coelho
Fernando Pesssoa, a Dialética de ser em Poesia
"Chove ouro baço, mas não no
lá-fora... E em mim... Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela..."
("Hora Absurda" — 1913)
Com o genial poder
de síntese que singulariza sua linguagem poética, Fernando Pessoa
condensa nesses dois versos a essencial renovação que, naquele
momento, começava a ser gerada na Poesia Portuguesa (e na européia
em geral... ), mas que, ainda informe, não podia ser percebida pelo
olhar comum. Raros poetas terão manifestado essa certeza, essa
lucidez de Pessoa, não só com relação à essencialidade de sua
própria criação, mas principalmente, à tarefa fecundadora que ela
iria cumprir no processo renovador da poesia de seus contemporâneos.
"Hora Absurda",
longo poema de raiz simbolista (da fase inicial de Pessoa) expressa,
em seu extraordinário jogo de imagens e sensações, a dialética
fundamental — Poeta X Poesia —, que serve de leito à totalidade da
produção poética fernandina.
Poeta que viveu no
primeiro momento da crise que, em nosso século, iria dividir as
águas entre o Tradicional e a Modernidade, Fernando Pessoa muito
cedo revela uma aguda consciência de que o novo processo de Criação
já havia começado ( "Chove ouro baço" ), mas estava ainda limitado
aos próprios criadores, não tendo ainda eclodido para todos ( "mas
não no lá-fora...É em mim. Sou a Hora." ).Lã fora no panorama geral
da nação, reinava a paralisação das formas de vida mas no enigmático
campo da criação o novo já nascia.
Difícil dizer, de
início, até que ponto o "eu" implícito nessa fala poética seria o do
próprio poeta. Ou seria o "eu" do Poeta-ser-privilegiado, — aquele
que dá origem a Poesia e através de cuja voz a humanidade expressa
sua evolução em marcha. Ou seria, talvez, o "eu" da própria Poesia
com quem o poeta parece confundir-se muitas vezes. De qualquer
maneira, a lucidez de Fernando Pessoa, ao perceber a exata dimensão
do que começava a acontecer em si mesmo e no mundo à sua volta, nos
espanta.
Hoje, à distancia é
fácil vermos que, naquele instante, Criação e Destruição se
processavam intrincadamente ligadas. Mas ver por inteiro tal
fenômeno no próprio ato do acontecer, exige uma percepção fora do
comum, como era a do genial poeta. Note-se que "Hora Absurda" foi
escrita em 1913. Portanto, bem no início do processo renovador que
nosso século vem conhecendo. E já nesse momento Fernando Pessoa diz:
"E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela..." É assim que
ele expressa o espanto diante da criação que emerge da própria ruína
das formas tradicionais. Mostrando, inclusive, que Destruição e
Criação são fenômenos polares que evoluem simultaneamente e não há
como dissociá-los, sob pena de falsearmos a "verdade" de cada um.
O poema todo ( de
uma beleza estranha, difícil de explicar... ) é um iluminar
sucessivo das mil faces desse fazer poético que já se sabia chegado,
embora à sua volta só reinasse a estagnação aparente. "0 teu
silêncio é uma nau com todas as velas pandas... /.../ Minha idéia de
ti é um cadáver que o mar traz à praia... e entanto/ Tu és a tela
irreal em que erro em côr a minha arte..."
A metaforização é
clara. Nela transparece a dupla imagem que a Poesia ( ou a Vida?)
Portuguesa revelava ao poeta. Sob a paralisação vital-criadora
daquele decisivo momento cultural, o poeta já entrevia o "novo" que
avançava. E nesse eu-que-fala, ouvimos a voz do poeta da
modernidade, não a do eu biográfico e confessional — como pode
parecer a uma primeira leitura. A certeza disso nos é dada por todo
o diversificado caudal poético fernandino, onde é sempre o
"fingidor" que fala e não o "eu pessoal", — o eu da atitude
romântica do "coração ao pé da boca", que Fernando Pessoa sempre
repudiou.
Manifestando-se como
um "eu" ortônimo, heterônimo, semi-heterônimo ou de poeta dramático,
esse eu-que-fala na poesia de Fernando Pessoa, obedece a uma das
imposições basilares da "modernidade", — a despersonalização do
poeta.
A certeza dessa
despersonalização é reforçada, quando descobrimos que por trás
daquele "tu" com quem o poeta dialoga em "Hora Absurda", está a
própria Poesia ( e não uma mulher, como ocorre a qualquer um, numa
primeira leitura ). Pela natureza e relacionamento das imagens ou
metáforas, sentimos que ali está a Poesia Portuguesa, identificada
com o próprio fenômeno poético, — a Poesia cujo "silêncio" ( naquele
momento de estagnação vital ... ) já era visto pelo poeta como "uma
nau com todas as velas pandas...", — algo prestes a eclodir como um
navio pronto para largar do porto, e dar início à viagem. Não há
dúvida de que "Hora Absurda" é um longo e essencial diálogo do Poeta
com a Poesia, diálogo que se faz sobre ela mesma, revelando em
Fernando Pessoa a preocupação visceral que estará sempre presente em
seu espírito, durante os trinta e tantos anos em que viveu criando.
Ao conhecemos, no
todo, a poesia fernandina, essa identificação essencial, Poeta /
Poesia, se torna evidente corno sendo a força dialética que a
dinamiza.
Em fragmento solto (
encontrado em meio aos milhares de inéditos que Fernando Pessoa
guardou em sua, hoje famosa, arca ), lemos:
"Navegadores antigos
tinham uma frase gloriosa:
Navegar é
preciso, viver não é preciso."
Quero para mim o
espírito d’esta frase, transformada a forma para a casar com o que
eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a
minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda
que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha
desse fogo. Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para
isso tenha de a perder como minha".
Nesse breve
fragmento, temos uma significativa síntese da personalidade poética
do autor e da intencionalidade maior que o moveu para construção de
sua obra. Nessas "palavras de pórtico" se inscreve, pelo menos uma
das poucas verdades interiças e incontroversas que podem ser
atribuídas a Fernando Pessoa ou à sua obra singular.
"Viver não é
necessário; o que é necessário é criar." Não há dúvida de que essa
frase, já hoje tão conhecida pelos estudiosos do Poeta, pode ser
tomada como uma das chaves mais adequadas para se abrir caminho às
possíveis e diferentes leituras dessa multiforme produção, cujas
peculiaridades intrínsecas a tornam única, dentro do panorama da
poesia ocidental deste século.
Ao percorrermos a
copiosa produção, em poesia e prosa, publicada até o momento (
segundo consta, há ainda milhares de escritos que permanecem
inéditos no acervo deixado pelo Poeta ), torna-se evidente que,
acima de tudo, Fernando Pessoa foi um ser-em-poesia. Foi alguém que,
no plano criador, viveu dialeticamente todas, ou quase todas, as
possibilidades de Ser e de Estar-no-mundo, que os tempos e as
diferentes culturas tem oferecido como opção aos homens. Desde a
objetividade do olhar e a naturalidade com que os sentidos do homem
e o mundo exterior se harmonizavam nos gregos e nos clássicos, até o
mergulho nos insondáveis meandros do ocultismo e da metafísica;
passando pelo vertiginoso viver destes tempos, impulsionados pela
Tecnologia e pela Velocidade da Máquina; ou ainda mergulhando nas
águas primordiais do Mito, Fernando Pessoa, com sua invulgar
capacidade de despersonalização ( a de ser múltiplo sem deixar de
ser um ), viveu intensamente todas as gamas do conhecimento e das
sensações que se lhe ofereciam à inteligência e à experiência
sensível.
E quando dizemos "viveu", estamos nos referindo quase exclusivamente
ao plano da criação ou da produção intelectual. Como todo homem de
gênio ou de mente superior, Fernando Pessoa criou muito mais do que
"viveu" ( no sentido comum que se dá ao termo). Daí a "verdade"
existente naquelas "palavras de pórtico".
Tudo o que já se
escreveu sobre sua vida e obra ( bem como o que ele próprio disse de
si... ) deixa bem claro o contraste entre o prosaismo ou a
semi-obscuridade de sua vida concreta, exterior, e a surpreendente
diversificação de interesses, a altura e originalidade da produção
caudalosa que o poeta deixou por herança aos seus contemporâneos.
Mas, o que significa realmente criar poesia? No caso específico de
Fernando Pessoa ( e dos grandes criadores... ), corresponde a criar
pela palavra poética modos de ver, ouvir, sentir, pensar... pois
eram essas, basicamente, as atitudes a serem redescobertas pela Arte
em mutação.
Em última analise é
isso que a Poesia ( ou a Arte em geral ) nos dá, para além do prazer
ou da emoção de sua expressão peculiar: pode revelar ao homem os
seres e coisas que o rodeiam, o espaço que o situa e o tempo que o
transforma... o também o homem ao próprio homem.
A respeito de Fernando Pessoa, poderíamos dizer que mais do "viver
para criar", ele criou para viver, tal foi o grau de entrega de seu
ser à tarefa poética. A nosso ver, à essa opção de vida ( assumida
conscientemente pelo poeta ),que precisa estar presente no espírito
daquele que se disponha a conhecer esse multifacetado universo
poético. Sem um mínimo de "sintonia" com as inquietudes que
dinamizara a criação fernandina, o eventual leitor se arrisca a
"passar ao largo" de sua essencial beleza e significação. Poesia e
Filosofia nela se reúnem, em um excepcional fenômeno poético que
tem, em suas raízes, a crise do Conhecimento que eclode em nosso
século, desde os primeiros anos.
O CONHECIMENTO EM CRISE
E aqui tocamos em um
dos "nervos" centrais desse intrigante organismo poético-filosófico
que é a obra fernandina: os modos de conhecer. Poeta do século XX,
tal qual seus companheiros de geração ( os "grandes" Ezra Pound,
T.S.Eliot, Valery, cubistas, futuristas, surrealistas ... ) e em
diferentes graus, Fernando Pessoa foi um obsessivo investigador do
Conhecimento. Ou melhor, das novas possibilidades ou
impossibilidades de um conhecimento objetivo do
homem/palavra/mundo/Deus, em um universo em acelerada transformação.
Pode-se dizer que é
esse o fulcro filosófico que unifica ou identifica, na origem, seus
diversos heterônimos ( Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de
Campos ) ou os semi-heterônimos ( Bernardo Soares, Barão de Teive,
Vicente Guedes, José Pacheco, Antônio Mora... ). Por diferentes que
se mostrem entre si, igualam-se todos por um impulso de raiz: a
ânsia de conhecer.
É natural que em
face de um mundo cujos valores, definições, limites e certezas ruíam
irremediavelmente, a arte se voltasse para as possibilidades de um
novo conhecer. Nesse sentido, duas diretrizes se abrem para as
buscas: a que investiga os próprios meios de expressão ( a que faz
da própria Arte o objeto da obra ) e a que investiga o "eu" através
do qual a Arte se realiza ( o sujeito do conhecimento estético ).
Fernando Pessoa está entre os que foram atraídos por esta segunda
diretriz. Sua multifacetada obra é um dos frutos mais significativos
da crise do conhecimento acessível ao eu, que se manifesta no início
do século, nos rastros da revolução kantiana e do avanço da ciência.
Dentre as várias revoluções que o nosso século tem conhecido no
campo do Conhecimento, sem dúvida, a que mais afetou a criação de
Fernando Pessoa foi a interrogação basilar: como posso eu conhecer o
Real? E o além-Real?
Fernando Pessoa — "Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela
E oculta mão colora alguém em mim."
"Emissário de um rei desconhecido
Eu cumpro informes instruções de além
E as bruscas frases que aos meus lábios vêm
Soam-me a um outro e anômalo sentido..."
Alberto Caeiro —
"O mistério das coisas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
/.../
Porque o único sentido oculto das coisas
É elas não terem sentido oculto nenhum."
Álvaro de Campos — "Tema de cantos meus, sangue nas veias da
minha inteligência,
Vosso seja o laço que me une ao exterior
pela estática,
Fornecei-me metáforas, imagens, literatura,
Porque em real verdade, a sério, literalmente
Minhas sensações são um barco de quilha pró ar,
Minha imaginação uma âncora meio
submersa,
Minha ânsia um remo partido,
E a tessitura dos meus nervos uma rede a secar
na praia."
Ricardo Reis — "Sábio é o
que se contenta com o espetáculo do
mundo,
E ao beber nem recorda
Que já bebeu na vida,
Para quem tudo é novo
E imarcescível sempre."
Aí estão as vozes de
Fernando Pessoa — ele mesmo, Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e de
Ricardo Reis, diferentes nas respostas vislumbradas, mas iguais no
empenho de "conhecer", tal como surgem em contraponto nesse
fascinante mundo fernandino, que é um dos grandes desafios lançados
à Crítica pela poesia contemporânea. E desafio, não porque seu
discurso poético se emaranhe em processos de composição que
acarretem a obscuridade da fala. Muito pelo contrário, com exceção
de certa poesia experimentalista inicial, tudo é direto e nítido em
seu dizer. Fiel ao postulado de que a "obra de arte,
fundamentalmente, consiste numa interpretação objetivada duma
impressão subjetiva", Fernando Pessoa repudia as abstrações.
Fácil é verificar, mesmo por uma primeira leitura, que não é o
processo de dizer em si o que o preocupa basicamente, mas sim o que
dizer. Daí que o experimentalismo formal só o tenha atraído na
medida em que expressava o modo de ver de determinado sujeito.
Assim, por sua preocupação com a nitidez da palavra poética, tratou
sempre de maneira absolutamente objetiva a "coisa" a ser expressa,
mesmo as mais obscuras ou incertas à apreensão lógica ( como
acontece em sua poesia esotérica ). Daí a facilidade com que se lê e
se "entende" a quase totalidade de seus poemas.
O desafio que sua
poesia representa, para o leitor interessado, está na genialidade
com que o retira da visão estável do mundo (como é, em geral, a
visão do cotidiano rotineiro), para levá-lo a perceber, com
inquietação, uma existência-outra, ainda desconhecida, e que se
pressente abissal e decisiva. Lida em conjunto e em confronto, sua
produção poética contraria, de imediato, a nitidez de enunciado que
lhe é peculiar, pois seus poemas se abrem em leque ( ou em
labirinto? ), se diferenciando entre si, não apenas pela dicção
poética que os individualiza, mas porque cada uma delas enuncia uma
maneira distinta de sentir e conhecer o mundo. É como se
"corporificando" em distintas personalidades os diferentes e
conflitantes modos de sentir/conhecer o mundo e a vida, Fernando
Pessoa tivesse conseguido "neutralizar" os desequilíbrios e
angústias que, fatalmente, apareceriam se uma só personalidade (
Fernando Pessoa ele-mesmo ) vivenciasse tais conflitos. A
multiplicidade de cosmovisões é, pois, o que de imediato avulta na
produção poética fernandina.
E essa aparente
diversidade de raiz que se tem colocado para a crítica como um dos
problemas iniciais dessa poesia, pois sabe-se, à saciedade, que o
que define, singulariza e dá o valor definitivo à obra de um grande
escritor ( ou do grande artista em geral ) é a unidade, a coerência
de sua consciência-de-mundo... Sendo assim, como poderemos
compreender essa "diversidade" de problemática em um gênio como
Fernando Pessoa? Onde estaria a sua "unidade"?
Foi esse o ponto de partida da maioria dos estudos que se têm
elaborado sobre a sua poesia, desde a obra pioneira de Jacinto do
Prado Coelho ( "Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa - 1950" )
que chega, afinal, a demonstrar que a "unidade essencial implícita
na diversidade das obras ortônimas e heterônimas" está na
"inquietação metafísica de Pessoa, no modo angustiado como viveu o
problema do conhecimento, — logo, os problemas da apreensão do eu e
da sinceridade profunda."
Nestes trinta anos
que se passaram desde a primeira publicação desse estudo basilar
para o conhecimento de Pessoa, muitas outras esclarecedoras e
perspicazes analises têm iluminado os mais diferentes campos do
universo fernandino. Um dos mais recentes e inteligentes, Pessoa
Revisitado de Eduardo Lourenço, leva mais fundo a análise para
provar magistralmente não apenas a "unidade" da poesia fernandina,
mas a totalidade que abarca os aparentes fragmentos heterônimos. E o
problema central apontado continua a ser o do conhecimento. Não
fosse ser esse o grande problema do nosso século, para o pensamento
reflexivo, para as artes e... para a vida.
Já foi sobejamente
analisado e provado que um dos índices básicos da Modernidade é a
consciência de que o "eu" pessoal, empírico ( disciplinado pelo
mundo dos conceitos consagrados e das relações sociais ) era o
grande obstáculo entre o poeta e o verdadeiro conhecimento do mundo
e das coisas ( exatamente ao contrário do que exigia o romântico).
Nessa ordem de idéias, o "eu" do artista passa a ser visto ( ou
desejado...) como um fulcro de despersonalização, que devia servir
de fundamento para uma nova apreensão de mundo e conseqüentemente a
uma nova linguagem.
Vista pelo prisma
dessa modernidade, a heteronímia criada por Fernando Pessoa não se
apresenta, pois, como um fenômeno isolado ou absolutamente insólito,
mas antes, corresponderia, a uma imposição geral dos novos tempos.
Responde ela à mesma causa que levou Baudelaire a tentar eliminar o
"pessoal" de sua voz poética e a criar a "teoria das
correspondências"; a mesma que também está na origem da "alquimia do
verbo" buscada por Rimbaud. Ou ainda a que levou Mallarmé a
perseguir a "magia da linguagem" Enfim, é a cisão moderna entre
Homem e Real que se agudiza, em nosso século, como
consciência-de-mundo e como crise de linguagem, exigindo novas
respostas às interrogações de sempre: quem sou eu? de onde vim? para
onde vou? quem ou o que justifica minha existência? e determina os
valores que regem o mundo dos homens? como posso eu conhecer o Real?
e ter certeza da autenticidade desse conhecimento? em que medida a
minha palavra traduz a "verdade" desse Real entrevisto ou
pressentido? etc., etc.
A diversidade de "eus"
do universo fernandino tentam, em última análise, dar algumas das
várias respostas plausíveis... uma vez que já não era mais possível
ao homem-século-XX qualquer resposta unívoca...
Para compreendermos
melhor não só a natureza da poesia fernandina, mas também a
atualidade, hoje, da complexa consciência de mundo nela
concretizada, tentaremos situar o poeta entre seus companheiros de
geração.
FERNANDO PESSOA
O MOMENTO HISTÓRICO E O ESPAÇO CULTURAL
Embora tenha sido
publicado, divulgado e conhecido amplamente, apenas no pós-guerra —
45, Fernando Pessoa pertence à geração dos "Ismos", que tumultuou a
Europa dos anos 10/20. Foram seus contemporâneos, pintores, como
Picasso, Braque, Kandinski, Mondrian, Larionov, Natalia Goncharova...
; músicos como Schönberg, Stravinsky...; ficcionistas como Henri
James, Joyce, Jorge Luis Borges, Virginia Woolf, Kafka, Hermann
Hesse, John Dos Passos, E.E.Cummings... e poetas como Apollinaire,
Mallarmé, Marinetti, Max Jacob, Ezra Pound, Valery, T.S.Eliot,
A.Breton, Maiacovski, Gertrude Stein, Vicente Huidobro, Oswald e
Mário de Andrade, Mário de Sá Carneiro, Almada Negreiros...
Nascido em 1888, em
Lisboa, Fernando Pessoa fez parte daquela juventude que, sofreu em
sua formação cultural o primeiro impacto da revolução-evolução , em
marcha. Através dos estudos, ela foi disciplinada por um sistema de
pensamento e valores ainda rigorosamente estruturados ( o sistema
tradicional europeu e no caso especifico de Fernando Pessoa , o
britânico ), logo em seguida, quando começava seu momento de
produção artística, ou de atuação no plano da vida prática, é
abalada pela rebelião cultural-política que se manifesta na Arte,
com os "Ismos"; e na Política, com a Guerra de 14 e com a Revolução
Comunista de 17.
Em 1896,
circunstâncias familiares ( o casamento de sua mãe viúva com o
cônsul português na África do Sul ), levam o menino Fernando, com 8
anos incompletos, a viver e a estudar em Durban, Colônia de Natal,
onde permaneceu até os 17 anos de idade. É, portanto, nesse período
vivido fora de Portugal, que se realiza a formação cultural básica
de Fernando Pessoa , e sob o influxo da língua, do pensamento e
cultura inglesa, diretrizes que, afinal, o poeta nunca abandonara
por completo, apesar de sua profunda consciência de portucalidade.
O quanto essa
formação básica foi decisiva para o desenvolvimento posterior de seu
pensamento crítico-reflexivo e para sua criação poética ( e talvez
para seu próprio sentimento de nacionalidade ), o prova a
persistência com que Fernando Pessoa usou a língua inglesa para
expressão de seu pensamento. São, em inglês, os primeiros poemas que
ele decidiu publicar em livro (plaquete), Antinous-1918 ( escrito em
1915 ); como o são, também, a quase predominância dos textos em
prosa, em sua produção de teoria e crítica ( =filosofia e estética )
deixada inédita e publicada parcialmente até o momento. Obviamente,
não poderíamos, neste breve espaço, tentar estabelecer quaisquer
relações ou "confluências" entre a natureza de sua poesia e a de
certos poetas ingleses ( por exemplo E.Pound ou Shakespeare ) que
Pessoa considerava geniais. ( Essas relações, sem dúvida
importantes, estão a merecer estudos detalhados que, talvez, em
breve alguém se disponha a realizar ).
Em 1905, de volta a
Lisboa ( de onde não sairá até sua morte, em 1935 ), Fernando Pessoa
ingressa na Faculdade de Letras que freqüenta durante dois anos
apenas e onde estuda Shakespeare e a filosofia alemã, em
Schopenhauer e Nietzsche. É desse período que datam seus primeiros
"textos filosóficos", cuja produção mais significativa ( a julgar
pelos dois volumes já publicados ) abrange mais ou menos dez anos (
1906/1916 ). Essa preocupação com o conhecimento filosófico ( e
mesmo com a teorização literária ) precede o definitivo encontro de
Fernando Pessoa com a poesia.
Seu primeiro texto
publicado foi de teoria estética( "A Nova Poesia Portuguesa
Sociologicamente Considerada" in Águia, abril, 1912 ), enquanto o
primeiro poema publicado, "Páuis", é de 1913. A julgar pelas datas
apostas em seus textos ( e parece que Pessoa era particularmente
cuidadoso desse pormenor ) sua produção poética mais antiga é de
1911/1912 e é atribuída a Alberto Caeiro, muito antes, pois, desse
heterônimo terá aparecido ( 8/março/1914 ). Também de 1913 é a
publicação da "literatura dramática" Na Floresta do Alheamento, a
composição do poema em inglês "Epithalamium" e do "drama estático" O
Marinheiro. O verdadeiro nascimento de seus heterônimos se dá em
1914, época em que a maior parte de seus textos filosóficos já
estava escrita.
O que nos importa
observar nessas datas e tipos de produção é a tendência dominante em
Fernando Pessoa para o pensamento reflexivo e a simultânea atração
pelos vários gêneros literários: ficção, poesia, teatro e também
pela filosofia que ele considerava uma arte. Em seu afã de descobrir
a forma mais adequada à expressão do conhecer, Fernando Pessoa
tentou todos os gêneros, inclusive o conto policial ( o que confirma
sua preocupação visceral com o enigma ). É de se compreender, pois,
seu obsessivo interesse pela filosofia, onde é a própria
possibilidade do conhecimento, o fenômeno investigado.
Entretanto, apesar desse interesse, sua verdadeira realização se deu
apenas no campo da poesia. Em suas reflexões filosóficas, Fernando
Pessoa não chegou a nenhuma síntese. Como disse Benedito Nunes:
"0 pensamento de
Fernando Pessoa não foi filosófico no sentido
tradicional do
termo, porque foi, antes de tudo, uma arte do
paradoxo e uma
concepção lúdico-artística da filosofia."
E o próprio poeta
não se enganava com essa sua preocupação obsessiva: "Eu era um poeta
impulsionado pela filosofia, não um filósofo dotado de faculdades
poéticas."
Em seus Textos
Filosóficos encontramos menções a praticamente toda a gama de
filósofos. Desde os gregos até os modernos ( Heráclito, Parmenides,
Zenão, Górgias, Platão, Protágoras, Sócrates, Anaxágoras,
Aristóteles, Descartes, Kant, Leibniz, Berkeley, Vico, Nietzsche,
Pascal, Schopenhauer... ), Fernando Pessoa sondou praticamente todas
as possibilidades de posicionamentos do "eu" em face do mundo a ser
conhecido. Daí que sua poesia adquira um valor limítrofe ao da
filosofia: o que se abre para o Saber. Como ele próprio o diz a
certa altura de suas reflexões:
"Uma corrente
literária não passa de uma metafísica. Uma
metafísica é um modo
de sentir as coisas /.../ As metafísicas têm
gradações; são modos
mais ou menos intensos, mais ou menos
lúcidos de sentir o
Universo. O materialismo está no mais baixo
nível, representa
uma sensibilidade mínima perante o Universo,
um conceito estético
reduzido, porque não vive a vida das coisas
em grau superior.
Por isso não há grandes poetas materialistas."
Não esqueçamos que a
Arte do momento lançava-se contra o universo positivista que se
oficializara como o pensamento diretor da Sociedade, e assim
fechadas as vias de acesso às realidades não-científicas, a Criação
e a Metafísica viram-se em um "beco-sem-saída"...
Enfim, o que nos importa ressaltar aqui é que, não só Fernando
Pessoa, mas toda sua geração, estava no encalço de um novo
"conhecimento", de uma nova "abertura" para a vida. Em face de uma
cultura e de uma arte que se esfacelavam, recolocavam interrogações
sobre o Ser, o Estar-no-mundo e o Conhecer que os novos tempos
passaram a exigir.
A REVOLUÇÃO KANTIANA E A CRISE DA MODERNIDADE
Dissemos mais atrás
que essa "crise do conhecimento", em nosso século, se dá nos rastros
da revolução kantiana e do avanço da Ciência. Pelo muito que as
teorias de Kant parecem ter atuado no pensamento de Fernando Pessoa
e de sua geração, a tomaremos aqui, como ponto de apoio, para
tentarmos compreendermos, não propriamente o mistério do processo
criador fernandino, mas sim as idéias básicas que nele teriam
influído.
Em suas reflexões
filosóficas ou sobre estética, são inúmeras as referências do poeta
ao pensamento do grande filósofo alemão. Em uma delas escrita em
inglês, e com data provável de 1906, Fernando Pessoa registra:
"Conhecemos as
coisas, não como são, mas apenas como se nos
apresentam."(Kant)
Tant d'hommes — tant de sensations.
A sociedade
vulgarizou a sensação. A vulgaridade de nomenclatura e do sentido de
sensação adquirida são as causas dos nossos pensamentos e
sentimentos serem todos parecidos.
A matéria existe
—como matéria. Existe por intermédio dos nossos sentidos. Para o
rústico, uma árvore é uma arvore; para um poeta é mais o que uma
árvore. É mais ou menos assim que vemos a matéria com a nossa falta
de percepção espiritual. Assim como aquelas montanhas que, vistas de
longe, parecem escarpas despidas e áridas, mas que vistas de perto
não mostram rochas nem nenhuma aridez, antes pelo contrário vales e
grandes extensões de terra lavada.
Somos fracos espiritualmente, isto é, somos somente capazes de uma
compreensão material, a não ser que usemos os nossos poderes mais
vastos e profundos.
No entanto, trazemos
em nós o poder de aprender a verdade — não verdade fenomenal, mas
verdade numenal. Afirmo agora, e afirmarei sempre, que ao homem
escapou o mistério do universal somente por falta de vontade de
pensar profundamente."
Aí temos, expresso
em linguagem reflexiva, o núcleo problemático de toda produção
poética fernandina e, em maior ou menor grau, de toda literatura
modernista dos primeiros anos do século: Obviamente, seria
ingenuidade ou tolice, qualquer tentativa de se isolar o fenômeno
responsável pela crise da Cultura e da Arte que eclode abertamente
nesse momento. Bem sabemos que a teia das causas e efeitos ou o
imbricamento dos fenômenos é de tal ordem que jamais poderá ser
deslindado em seus vários componentes isolados. Essa impossibilidade
não impede, porém, que o espírito crítico continue tentando iluminar
diferentes aspectos do fenômeno global, em busca de possíveis
explicações. É o caso do pensamento kantiano.
Sem pretendermos
entrar nos meandros do lastro filosófico que pode ser encontrado na
poesia de Fernando Pessoa ( e de seus companheiros de geração... )
não resistimos, porém, ao impulso de cotejá-la com a teoria que,
nitidamente, lhe serviu de ponto de partida. Assim, da complexa
"revolução copernicana" ( expressão usada pelo próprio filósofo ao
definir suas próprias descobertas... ), operada por Kant a partir do
século XVIII, interessa-nos, aqui, apenas um aspecto: o que trata da
possibilidade ou impossibilidade de um conhecimento objetivo do
universo ( homem/mundo/Deus ).
Em que consistiu,
basicamente, essa "revolução" que está na base da renovação
romântica; que se aprofunda em crise, a partir dos "poetas malditos"
(Baudelaire, Rimbaud, Verlaine...), até explodir na iconoclastia dos
"Ismos"... é o que procuraremos sintetizar adiante, para chegarmos à
multiforme experiência poética de Fernando Pessoa.
A "SENSAÇÃO" COMO MEDIADORA DO CONHECIMENTO E
O SENSACIONISMO DE FERNANDO PESSOA
É principalmente na
criação do Sensacionismo, atribuído a Álvaro de Campos que está, a
nosso ver, a realização poética mais próxima das premissas
filosóficas de Kant. Aliás, essa produção "sensacionista", produzida
e publicada nos anos 1915 e 1916, corresponde a um dos pontos mais
altos da poesia fernandina, como expressado mundo contemporâneo,
isto é, o mundo construído pela Civilização da Técnica e da Máquina,
—onde as sensações humanas parecem explodir, tal o grau em que são
provocadas. Referimo-nos, precisamente, aos poemas: "Ode Triunfal" (publ.1.Orpheu-l.lºtrim.1915);
"Ode Marítima" (publ..2.Orpheu-2ºtrim.1915) "Saudação a Walt
Whitmann" (escrito em junho,1915); "Passagem das Horas" (escrito em
maio, 1916) e "Casa Branca Nau Preta" (escrito em out.1916). Neste
último poema, já existe uma outra atmosfera, melancólica,
desalentada, que contrasta com a euforia vital que predomina nos
primeiros e indica que o "sensacionismo" de Álvaro de Campos estava
se esgotando, ou pelo menos iria enfatizar outros aspectos da
possível apreensão do Real.
Nesses poemas, aparece de maneira indiscutível a intenção básica do
processo Poético de Fernando Pessoa: consumar a alquimia do verbo,
ou melhor transubstanciar em Palavra a "verdade"do Real, intuída
pelas sensações.
Obviamente, não será
por acaso que, nos anos 1915 e 1916, quando aqueles poemas eram
publicados ou escritos, Fernando Pessoa registrava também, em seus
manuscritos soltos, reflexões filosóficas e estéticas que indicam
com clareza a intencionalidade criadora que orientava, no momento,
sua produção poética. Para se compreender melhor o quanto a poesia
fernandina foi "programada" ou era "intelectualizada" ( como ele
mesmo tantas vezes afirmou ) parece-nos bastante esclarecedor um
cotejo de textos. Vejamos, por exemplo, um fragmento de seus "textos
filosóficos", cuja data provável é dos anos acima mencionados
(1915-1916).
"Tudo é sensação.
/... / O espiritual em nós é a potência para sentir e o sentir é a
sensação, o ato. /.../ Tudo o que existe é um fato mental, isto é,
concebido. /.../
Criar, isto é, conceber uma coisa como em nós, mas
não em nós, /... / é concebê-la
como feita da nossa própria
substância conceptiva, sem ser essa mesma
substância."
Aí temos enunciada
de maneira óbvia uma explicação das relações entre eu e mundo, tendo
em vista o sentir, pensar e conhecer, de lastro kantiano. Tal lastro
aparece também em certas reflexões pessoais ( recolhidas em Páginas
Íntimas... com data provável de 1916, mas que talvez sejam
anteriores à publicação dos poemas em questão ), onde Fernando
Pessoa analisa teoricamente o que Álvaro de Campos realiza
poeticamente na diretriz do Sensacionismo, e com isso nos dá as
"chaves" mais adequadas para compreendermos a natureza da alquimia
verbal ali pretendida pelo poeta. Diz Pessoa:
"Nada existe, não
existe a realidade, apenas sensação.
As idéias são
sensações, mas de coisas não situadas no espaço e, por vezes, nem
mesmo situadas no tempo. A lógica, o lugar das idéias, outra espécie
de espaço. /.../ A finalidade da arte é simplesmente aumentar a
auto-consciência humana. O seu critério é a aceitação geral ( ou
semi-geral ), mais tarde ou mais cedo, pois é essa a prova de que,
na realidade, ela tende a aumentar a auto-consciência entre os
homens.
Quanto mais
decompomos e analisamos as nossas sensações em seus elementos
psíquicos, tanto mais aumentamos a nossa auto-consciência. A arte
tem, pois, o dever de se tornar cada vez mais consciente."
Aí temos pelo menos
três importantes premissas que alicerçam o universo poético
fernandino:
— a importância basilar das sensações na apreensão do mundo das
relações: homem X mundo exterior;
— a diferença de natureza entre "sensações" (ligadas à intuição) e
"idéias" ( ligadas à inteligência, à lógica, à razão ) e
— a finalidade pragmática da arte: tornar a humanidade
auto-consciente das realidades que lhe são essenciais à evolução...
Essas premissas podem ser rastreadas em todo o universo poético
fernandino (ortônimo ou heterônimo ); e é através dessa perspectiva
( a de o poeta tentar decompor e analisar suas sensações até o fundo
de seus componentes psíquicos, para aumentar sua auto-consciência do
Real que deve ser objetivado no poema ), que compreenderemos melhor
o ritmo torrencial dos poemas sensacionistas. Em "Ode Triunfal", por
exemplo:
"A dolorosa luz das
grandes lâmpadas elétricas da fábrica
Tenho febre e
escrevo.
Escrevo rangendo os
dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto
totalmente desconhecido dos antigos
O rodas, õ
engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Em fúria fora e
dentro de mim.
..........................................................................................
Mais do que a
euforia futurista de Marinetti ( a primeira a tentar encontrar o
ritmo e a atmosfera própria à civilização da máquina ); mais do que
a adesão à "vitalidade transbordante", ao "belo feroz" ou "à força
sensual" do universo poético de Walt Whitmann, os poemas
sensacionistas de Álvaro de Campos expressam a experiência quase
apocalíptica do poeta contemporâneo, ao pretender expressar um mundo
que ultrapassou sua capacidade normal de apreensão, um mundo
"totalmente desconhecido dos antigos"... mas resultante irredutível
destes últimos.
O poeta tenta ( e
praticamente o consegue ... ) nos comunicar suas sensações in totum.
Não, a epidérmica visão do babélico mundo moderno que os futuristas
ofereciam, mas uma apreensão global, abrangente, que sugere o mundo
como um continuum vital, em que presente/passado/futuro se amalgamam
na alquimia do verbo, tal como na realidade cósmica as vivências
estão amalgamadas.
"Canto, e canto o
presente e também o passado e o futuro
Porque o presente é
todo o passado e todo o futuro
E há Platão e
Virgílio dentro das Máquinas e das luzes elétricas
Só porque houve
outrora e foram humanos Virgílio e Platão."
Com uma funda
consciência da metamorfose, como processo fundamental da vida,
Fernando Pessoa, tal como os grandes criadores, seus contemporâneos,
introjeta o passado no presente, como algo vivo, que ocultamente
dinamiza as realidades.
( É da mesma origem,
o impulso que levava E.Pound, naquele mesmo momento, a criar suas
Personae e seus Cantos, onde ( pelo processo da intertextualidade )
vozes poéticas do passado são absorvidas pela voz "poundiana" que,
assim, expressa o Presente como uma voragem, que o ontem dinamiza, e
onde já se gera o amanhã. )
Esse é um dos
aspectos fundamentais da poesia contemporânea, bem como da
fernandina: a diluição das fronteiras entre os "tempos" que regem
nossa vida concreta, para revelar o Tempo infinito que tudo engloba
e que permanece desconhecido dos homens.
Mas não é só dos
"tempos" que se anulam as fronteiras. Na palavra de Pessoa há uma
grande ânsia de fundir "espaços" distintos e distantes em um só
espaço abrangente e perene. Como há também a ânsia de expansão da
Individualidade, para que seja alcançada a Totalidade do ser ou uma
plenitude de sentir e ser, quase cósmica, na qual pressentimos uma
grande identificação com o fenômeno de nossos dias, o "mutante
cultural", ao qual voltaremos mais adiante, quando falarmos da
atualidade de Fernando Pessoa.
Entretanto, no geral
da poesia fernandina, essa ânsia de expansão da Individualidade
desemboca na perda da identidade do "eu" e, conseqüentemente, na
despersonalização.
A CRISE DA MODERNIDADE E A DESPERSONALIZAÇÃO
Foi exatamente no
início deste século que certas interrogações, provocadas pela
evolução das premissas kantinas, se avolumam e se tornam obsessivas
ou angustiantes: como posso saber se minha sensibilidade, sensações
ou minhas intuições têm realmente "formas a priori" que fundamentem
em verdade o ser-das-coisas? como saber se essas "formas" foram
intuídas e não, simplesmente inventadas por mim? quem me garante que
estou expressando corretamente a minha intuição? e que não estou
dando uma forma falsa à coisa-a-ser-conhecida? até que ponto meu
"entendimento discursivo", minha "palavra" expressam com
autenticidade meu pensamento?
Obviamente, as
dúvidas quanto à possibilidade ou não de conhecimento, que vem
desafiando o homem pós-Kant, desde fins do século passado até hoje (
homem pressionado por mil descobertas nas mais variadas áreas da
Vida e da Cultura ), não se colocam assim de maneira direta e
simples ( ou ingênua ). Mas para nosso objetivo aqui, tal enunciado
é suficiente. E de certa maneira, podemos dizer que nessas
interrogações está uma das marcas mais flagrantes de modernidade que
vai distinguir a poesia tradicional da poesia contemporânea a
despersonalização na qual a perda de identidade do eu vai
desembocar.
Pode-se dizer que
essa perda de identidade do eu é o denominador comum que, para além
das enormes diferenças individuais, identificou os integrantes do
grupo "Orpheu" como uma geração literária. Não foi outro, o elemento
apontado por Almada Negreiros quando, em 1965 ( 509 aniversário da
revista Orpheu ), escreveu:
"Ainda hoje
desconheço felizmente a identidade dos inesquecíveis
companheiros do
"Orpheu" /... / que foram os meus,
precisamente por nos
ser comum uma mesma não identidade.
Éramos em realidade
muito estranhamente diferentes uns dos
outros, e todos
suspensos do mesmo fio de nos faltar território. E
assim nasce o
profundo da palavra "companheiro".
O que Orpheu se
propunha ser ( conforme o diz a Introdução de Luiz de Montalvor )
era esse "território" comum, onde se encontrariam os exilados de si
mesmos e do mundo. Não é outra a "tecla" desde sempre percutida por
Mário de Sá-Carneiro, em poesia ou prosa. Em poemas de Indícios de
Oiro, publicados no Orpheu 1 (1915), lemos:
"A ponte levadiça de
Eu-ter-sido
Enferrujou — embalde
a tentarão descer...
/.../
Percorro-me em
salões sem janelas nem portas,"
"Esta inconstância
de mim próprio em vibração
É que me há transpor
às zonas intermédias,"
"Eu não sou eu nem
sou o outro,
Sou qualquer coisa
de intermédio:"
"— Ó pântanos de Mim
— jardim estagnado..."
Também Ronald de
Carvalho, nesse mesmo número inaugural de Orpheu, escreve:
"Fujo de mim como um
perfume antigo foge ondulante e vago de
um missal e julgo
uma alma estranha andar comigo."
Note-se ainda que
Fernando Pessoa escolheu para esse importante numero inicial da
revista( que deveria identificá-los como nova geração ), não poemas,
mas o "drama estático" O Marinheiro, cujo eixo problemático é
exatamente a sondagem do "quem somos?". ( Observe-se que a primeira
proposta de comunicação entre as três donzelas veladoras da.donzela
morta é entreterem-se contando umas às outras o que foram, apesar de
saberem que esse contar "É belo e é sempre falso." )
Enfim, fácil é
verificar que esse estranhamento ou esse desconhecimento de cada um
a respeito de si próprio ( e do mundo à volta ) era a tônica comum a
essa geração de artistas e escritores, nos primeiros anos do século.
Diz Almada:
"Era a arte que nos
juntava? Era. Arte era a solução. A nossa
solução comum. Era o
neutro entre nós."
O que Almada diz aí
,com respeito à "geração do Orpheu", pode ser estendido a toda a
geração européia e americana que nos anos 10/20 fez sua entrada no
mundo da Literatura e da Arte. Por diversos que fossem os gêneros
adotados por cada um ou a natureza de suas obras, identificava-os
uma mesma paixão: a da Arte em face a um espaço cultural vazio ou
agressivo, onde lhes "faltava território" para viverem em plenitude.
Esse "território" só a Arte, a Literatura podiam oferecer. Daí a
importância vital da forma a ser conquistada como expressão do novo,
então apenas intuído em meio ao "caos de sensações" oferecidas por
um mundo de valores em naufrágio e valores em gestação; daí, também,
o fragmantarismo como processo de composição e acima de tudo o
esforço de libertação de uma identidade pessoal/social limitadora e
a busca da despersonalização.
A HETERONÍMIA : DESPERSONALIZAÇÃO VERSUS
PERSONIFICAÇÃO
E aqui já nos
aproximamos dos heterônimos fernandinos, nos quais essa busca de
despersonalização se funde com diferentes impulsos de
personificação, resultando na expressão de distintos estados de
consciência que, por sua vez, expressam distintas cosmovisões.
"De quem é o olhar /
Que espreita por meus olhos?/ Quando
penso que vejo,/
Quem continua vendo / Enquanto estou
pensando?/ Por que
caminhos seguem, Não os meus tristes
passos, / Mas a
realidade / De eu ter passos comigo? Às vezes, na
penumbra / Do meu
quarto, quando eu / Para mim próprio
mesmo Em alma mal
existo, / Toma um outro sentido / Em mim o
Universo — / E uma
nódoa esbatida / De eu ser consciente sobre
/ Minha idéia das
coisas."
Para lã da conotação
esotérica ou ocultista que têm esses versos, está bem evidente a
obsessão com o conhecimento acessível ao eu.
Distendido na ânsia
do conhecer, o poeta sonda continuamente sua própria consciência das
coisas. Com esse gradativo aprofundar-se no eu, de quem se esperava
a revelação da verdade do mundo, o artista-criador viu-se cada vez
mais reduzido a si mesmo e, ao mesmo tempo, cada vez mais
distanciado de sua própria identidade.
Sê plural como o
universo." , diz Fernando Pessoa, reagindo à nova realidade
cósmico-social que se oferecia ao homem moderno da Sociedade
Tecnológica. Obrigado a apreender a caótica pluralidade de formas do
universo, o eu tende também a se pluralizar. Fragmenta-se, e aos
poucos desaparece aquele "eu" uno ( do Romantismo ) que se
apresentava como um centro fixo, nítido e que, acima de tudo, devia
ser sincero ao expressar seus sentimentos. E nesse sentido que se
pode entender os conhecidos versos de "Autopsicografia":
"O poeta é um
fingidor.
Finge tão
completamente
Que chega a fingir
que é dor
A dor que deveras
sente."
Pessoa apreende aí,
com nitidez, a dialética entre eu pessoal X eu poético que se impôs
ao poeta moderno, obrigado a distanciar-se do seu eu comum, preso na
teia social e rotineira do mundo cotidiano, para poder ouvir com
clareza o seu "outro" eu, o eu criador, sensível e intuitivo que
serviria de mediador entre o Conhecido e o Desconhecido.
A esse repúdio do "eu" pessoal, individualizado e poderoso ( que
está na base do mundo romântico ) corresponde a despersonalização
procurada a partir de então. Não se trata mais de dar voz ao eu real
do poeta, nem de lhe pedir "sinceridade de sentimentos"... mas sim
de entregar a experiência da criação à sua personalidade poética, —
personalidade fictícia, mas muito mais livre e verdadeira do que a
real, e muito mais capaz de estabelecer novos vínculos do Ser com o
Mundo e de dar forma ou concretude às novas realidades ( apenas
intuídas e ainda não conhecidas pela razão comum ).
Essa nova
experiência de criação, através de uma "personalidade poética" que
pouco ou nada tem a ver com a personalidade empírica do poeta e,
pois, a marca distintiva da "modernidade" que se instaura em nosso
século e que Fernando Pessoa procurou conscientemente, levar às
últimas conseqüências. Pela singularidade de seu gênio ou
temperamento, a "despersonalização" exigida pela modernidade assumiu
um feitio absolutamente invulgar. Nem as "personae" de Ezra Pound,
nem as "máscaras" de Eliot podem ser comparadas à organicidade
interna de cada. "personalização" assumida por seus heterônimos ou
semi-heterônimos... Conhecidos em conjunto, eles oferecem um
verdadeiro balanço da Poesia, desde seus primórdios registrados pela
História até o mundo-século XX, e também das diferentes
possibilidades de Ser e de Estar-no-mundo que o Conhecimento punha
em xeque naquele início da crise cultural, cujo processo se
desenvolve ainda hoje ...
O FENÔMENO DA HETERONÍMIA
É dentro dessa crise
cultural que as interrogações sobre a heteronímia fernandina podem
ser colocadas. Obviamente, o dado fundamental é a personalidade
singular do poeta que, desde menino, revelou uma tendência inegável
para a despersonalização, ou melhor, pelo desdobramento da própria
individualidade, como ele próprio o confessou em várias ocasiões. A
essa capacidade inata para a invenção, para a ficção, juntou-se, por
via cultural ( através dos estudos e da reflexão estética e
filosófica intensificada ) a influência da interrogação basilar da
época: como conhecemos? E Fernando Pessoa, nos rastros de Kant,
afirma:
"Não conhecemos
senão as nossas sensações. O universo é, pois,
um simples conceito
nosso."
Mas não é um "eu"
qualquer, comum... que poderá ter acesso a esse conhecimento
essencial. E pouco antes de Pessoa, Níetzsche afirmava:
"A história e as
ciências da natureza foram necessárias contra a
Idade Média: o saber
contra a crença. Contra o saber dirigimos,
hoje, a arte: volta
à vida! Matriz do instinto do conhecimento!
Reforço dos
instintos morais e estéticos!
É a um "eu" vivo,
liberto das deformações do saber estratificado, e alimentado pela
criatividade artística, a quem se entrega a responsabilidade de
redescobrir as novas formas de vida, e por conseguinte as novas
formas do conhecer. Conforme Pessoa o diz em outra ocasião:
"O problema do
conhecimento é a fronteira que, a um tempo une
e separa como toda
fronteira, a física e a metafísica. Postos Sujeito
e Objeto, e Relação
entre eles como, desde Kant se estabeleceu, o
último irredutível
abstrato da experiência depurada, a teoria do
conhecimento
metafísico, é a da relação essencial entre Sujeito e
Objeto."
No afã de
multiplicar as latentes possibilidades dessas relações essenciais, é
de se compreender que a multiplicação das personalidades poéticas
tivessem surgido como um recurso valiosíssimo. Uma vez que o "fato
fundamental do universo" é alguém ter "consciência dele", e uma vez
que todo trabalho mental versa sobre a Relação que se estabelece
entre Sujeito e Objeto, e essa "relação" se identifica com a
Realidade que julgamos conhecer... conclui-se que, mudando um dado
da "relação", isto é, o sujeito pensante também mudará o resultado
ou a natureza da mesma. Tantos "sujeitos" quantas "realidades". Daí
a multiplicidade incrível de verdades, conhecimentos, realidades que
se superpõem ou se desmentem reciprocamente em qualquer panorama
histórico-cultural, ou na vida cotidiana que cada um de nós conhece,
ou também no universo fernandino.
A ânsia de ser
plural, que é comum a praticamente todos os artistas desses
primeiros tempos do Modernismo, torna-se facilmente compreendida.
Sendo eu, um só ser , uma só possibilidade de percepção ( por mais
variadas que sejam as perspectivas, a partir das quais eu me coloque
), não poderei ver, sentir, perceber e compreender o ambiente ou o
mundo que me situa, senão pelo meu prisma ... o que redunda
fatalmente em pobreza de visão, tendo em vista a multiforme dimensão
do universo a ser apreendido pelo conhecimento. A infinitude das
formas latentes à espera de serem descobertas, fatalmente me
escapam.( Daí a tentativa da "auto-abertura" que as várias técnicas
da psicologia atual oferecem para que o eu atinja uma interação
espontânea e harmoniosa com o espaço global a que ele pertence, e
que pela razão, só conhece fragmentariamente...) Daí, também, o
fenômeno que teria estado na origem dos heterônimos, — não
"personalidades" ou "sujeitos pensantes" criados ao acaso, mas sim
personalidades representativas de modos de ver, perceber e conhecer
fundamentais ... que se vem sucedendo no Tempo, pelo menos desde os
gregos ...
Que
consciência-de-mundo está presente em cada um deles?
Alberto Caeiro é o
poeta ingênuo ( e pensador, embora não o admita ... ), para quem o
viver pleno decorre da adesão espontânea do homem as coisas, tais
como são, e no frui-las com despreocupada e alegre sensualidade.
Ricardo Reis é o
poeta clássico, da serenidade epicurista, que aceita o Fatum, de
olhos abertos e para quem o viver ideal depende de o homem aceitar
com calma lucidez, a relatividade e a fugacidade de todas as coisas
e assim, sem nada esperar de duradouro, se furtar à dor das perdas
inevitáveis.
Álvaro de Campos é o
poeta moderno da dialética fundamental: eu civilizado versus eu
poético, tentando conhecer as antinomias latentes no novo
ser-forjado-pela-civilização, quando posto em confronto com o
Absoluto.( Álvaro de Campos seria o novo embrionário que hoje vemos
aparecer, inconfundível, no "mutante cultural" dos nossos dias. )
Bernardo Soares, o
burocrata lisboeta, é o prosador poético em quem convive,
surdamente, sem angústias, o contraste de uma realidade cotidiana
estreita ( presa às necessidades materiais, e à rotina desgastante )
e a certeza de que, embora ausentes, há ideais mais altos, aos quais
a vida devia ser dedicada, para se realizar com plenitude.
Vicente Guedes,
Antonio Mora, Rafael Baldaia, Barão de Teive, Alexander Search...
heterônimos ou semi-heterônimos, totalmente individualizados ou
semi-autônomos... cada um assume uma maneira especifica de ver,
pensar e falar.
E Fernando
Pessoa-ele mesmo, quem é? Teria existido esse "ele-mesmo"? Qual
seria sua face verdadeira? Ou melhor, seria plausível que
buscássemos essa pretensa "face verdadeira" quando sabemos que
Fernando Pessoa fugiu sempre da identificação pessoal? E só
confrontarmos as inúmeras justificativas ou explicações acerca dos
heterônimos, que ele deixou registradas em cartas pessoais, em
manuscritos soltos, em "prefácios" projetados para publicação de sua
obra, etc., etc., e nos daremos conta de que Fernando Pessoa tentou
enfatizar, de mil maneiras, o fenômeno fundamental que estava na
origem de sua heteronímia: o fenômeno da ficção, da invenção
essencial, exigida pela verdadeira poesia.
Portanto, quanto à
sua produção dita "ortônima", como explicar a diversidade que também
a caracteriza? Em qual de seus diferentes aspectos estaria o
verdadeiro Fernando Pessoa-ele mesmo? No poeta de tendências
simbolistas de "Hora Absurda"? no poeta do "interseccionismo
impressionista" de "Chuva Oblíqua"? ou no do "paulismo", o poeta
blasé em quem predomina o virtuosismo formal sobre a preocupação
espiritual? Ou no poeta esotérico da "Passos da Cruz"? Ou estaria no
poeta dramático? Ou ainda no poeta dos "poemas ingleses"? — aquele
que registra a perplexidade do homem diante do "cisma" que separou
pensamento e mundo sensível, e que perscruta o "abismo" que se
interpõe entre a consciência e o eu que sente? "Between me and my
consciouness / Is an abyss." Ou será o poeta épico-místico de
"Mensagem", o que acreditava que "O mito é o nada que é tudo."? e
que, por essa crença, ao escrever a "epopéia" moderna da
portucalidade, diluiu sua historicidade fugaz no húmus
mítico-místico de uma realidade perene, que transcende o
cognoscível, porque pertence ao mistério do destino humano.
Difícil dizer qual
desses é o "verdadeiro" Fernando Pessoa. Apenas, o que se percebe de
imediato é que todas essas diferentes faces assumem uma postura
igual: estão voltadas para uma determinada investigação do Real ou
do Mistério incognoscível. O que se impõe também como fato inegável,
é a importância que Fernando Pessoa atribuiu ao mito, ou à
consciência mítica para o poeta. E isso, não só porque tal
"consciência" aparece desde cedo em seus escritos ( o projeto de
"Mensagem" em já se encontra registrado em suas anotações, desde os
anos 1O ), mas principalmente pelo cunho de perenidade que tentou
imprimir a cada produção heterônima, com a matéria poética em grau
maior, com que as construiu passo a passo. Perenidade de mito, que o
poeta tentou, de certa maneira, neutralizar diante do leitor, pela
invenção das biografias, com que pretendeu fixar, no cotidiano, algo
que ele sabia pertencente ao intemporal. Note-se que, entre os
manuscritos de "Páginas Intimas", onde ele explica mais uma vez sua
"heteronímia" lê-se textualmente:
"Desejo ser um
criador de mitos, que é o mistério mais alto que
pode obrar alguém da
humanidade."
Se entendermos o
mito como uma vivência, gesto ou situação... que se perpetua no
tempo, por se alimentar de um conhecimento ou de um valor essencial
à cultura de determinado grupo humano, podemos ver nos heterônimos (
e não só em Mensagem ) a intenção do poeta em criar, em cada um
deles, um pequeno universo mítico. Ou melhor, um "universo" que
representa uma determinada maneira de ver, pensar, fazer ou conhecer
que é essencial e verdadeira em-si-mesma, embora possa ser
conflitante com as maneiras representadas nos demais.
Embora verdadeiro e
válido-em-si, o universo do homem rústico, ingênuo e comum defendido
por Alberto Caeiro, se chocará com a "verdade" defendida no universo
de Ricardo Reis ou no de Álvaro de Campos, e vice-versa. No entanto,
facilmente se verifica que nenhum desses "universos políticos"
existe de maneira arbitrária ou lúdica, isto é, dependente apenas da
fantasia de seu autor. Mas, ao contrário, são autênticos "universo
de valores" construídos poeticamente, cujos fundamentos são
perfeitamente reconhecíveis como "verdades" atuantes em determinadas
épocas.
Seja valorizando a
concretude do Real e do visível, seja tentando sondar o invisível
... a poesia fernandina é bem eloqüente como fenômeno de
modernidade: exacerbando a responsabilidade de conhecer e de dar a
conhecer que o Romantismo lhe impusera como tarefa, a linguagem
poética, neste século, empenha-se não mais em imitar ou representar
a realidade conhecida, mas em transfigurá-la, para que o novo que
nela está oculto, transpareça. Poesia, sendo expressão de vivências,
sensações ou de pensamento é, acima de tudo, um fenômeno de
linguagem.
Daí que aos
diferentes universos heterônimos correspondam diferentes processos
de composição poética e diferentes linguagens. A poética fernandina,
se aplica bem o que H.Lefebvre afirmou acerca de Baudelaire e
Rimbaud, como poetas da modernidade:
"(neles) a linguagem humana se quer mundo e a palavra, criadora
de mundo. A
poesia e o poema (enquanto objeto, —reunião de
palavras) se
dizem enigma revelado do mundo, ao mesmo tempo
humano e
sobrenatural. Acima da voragem do coração, acima dos
abismos cósmicos,
recusando uma beleza pré-existente, o poema
será o objeto
transparente, cristal que se basta e que, todavia,
resume o mundo refletindo-o na sua pureza.
A poesia proclama o
primado da linguagem, sua possível perfeição, auto-suficiência. Na e
pela linguagem criadora ( poética ), dualidade, cisão, dilaceramento
( entre o ser e o real ) se resolvem. O ideal e o real, o abstrato e
o concreto separados, tradicionalmente, agora se encontram. O verbo,
enfim, vai-se fazer carnal e sensível, a carne e o sensível se
metamorfoseiam em verbo. É a magia, é a Alquimia do verbo."
Em essência, foi
essa a intencionalidade básica da poesia fernandina: consumar em sua
palavra a "alquimia do verbo", transubstanciar em palavra a verdade
do real, intuída por determinadas sensações. E, pois, o poema o que
importa, e não, a pessoa do poeta, sua identidade pessoal ou sua
pretensa verdade pessoal.
A "DESPERSONALIZAÇÃO" E A ABERTURA PARA O "SER
GLOBAL" : O MUTANTE CULTURAL
É nesse sentido,
também, que a despersonalização, como processo de criação
desempenhou um papel decisivo na "abertura" para o ser global,
ansiado pelo homem contemporâneo, e que, a nosso ver, no
sensacionismo de Álvaro de Campos encontrou a sua expressão mais
perfeita. Leia-se, por exemplo, "Ode Triunfal":
"Átomos que hão de
ir ter febre para o cérebro de Esquilo do
século cem,
Andam por estas
correias de transmissão e por estes volantes,
Fazendo-me um
excesso de carícias ao corpo numa só carícia a alma.
Ah, poder
exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como
uma máquina!
/.../
Poder ao menos
penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo,
abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes
de óleos e calores e carvões
Desta flora
estupenda, negra, artificial e insaciável!
Fraternidade com
todas as dinâmicas!
Promíscua fúria de
ser parte-agente
Do rodar férreo e
cosmopolita
Dos comboios
estrênuos."
Para além do novo
ritmo ou da nova velocidade que o homem tenta alcançar para se
sentir em sintonia com o mundo que ele mesmo construiu ( e que agora
o ultrapassa ), o que se faz patente, nesse fragmento de "Ode
Triunfal", é a ânsia de expansão e fusão que caracteriza o "eu"
contemporâneo. Não mais a dicotomia "corpo" e "alma" ou corpo/mente,
mas um só corpo-soma: "parte-agente" deste universo espantoso: "Nova
Revelação metálica e dinâmica de Deus.", como diz o poeta mais
adiante, nessa mesma ode.
A idéia mais próxima
que nos ocorreu, ao tentarmos "diagnosticar" o contemporâneo em
Fernando Pessoa ( principalmente, o espetacularmente registrado em
Álvaro de Campos ) foi a do "corpo somático" que, nestes últimos
anos, vem sendo investigado por fenomenólogos, psicólogos e
cientistas de várias áreas ... Por ser uma relação inesperada e
insólita que se nos apresentava à reflexão, resolvemos investigar
sua possível legitimidade e retomamos o caminho de análise que
vínhamos seguindo: o de como Fernando Pessoa resolveu, em poesia, o
problema do Conhecimento colocado por sua época. Nessa atitude
basilar, víamos ( e vemos ) a principal razão da absoluta atualidade
da poética fernandina, hoje, há mais de sessenta anos de distância
de seu início.
Ao perseguirmos,
novamente, o esforço inventivo de Fernando Pessoa, para se fazer
mediador do universo, através de suas próprias sensações, acabamos
verificando que ele se identifica com aqueles pensadores/criadores
revolucionários que Tomas Hanna analisa como profetas ou arautos do
"mutante cultural" de nossos dias: Kant, Nietzsche, Freud, Darwin,
Marx, Kierkegaard, Husserl, Sartre,etc.
Tendo-se dedicado à
leitura e estudos de quase todos esses pensadores ( como suas notas
e reflexões o atestam ), Fernando Pessoa expressa em sua produção
poética os elementos básicos da evolução-mutação para a qual cada um
deles contribuiu de uma maneira. E isso, evidentemente, não porque
os tenha lido, mas porque ele próprio foi um desses
super-perceptivos que se anteciparam aos tempos.
Lida à luz dessa evolução-mutação, veremos que novos aspectos da
poesia fernandina podem ser iluminados. E a certa altura,
pareceu-nos sobremaneira fecundo ( para posteriores estudos ) que
tentássemos compreender essa singular poesia como uma daquelas vozes
que, desde o início do século, "profetizaram" o mutante que, nesta
segunda metade do século, singulariza o nosso panorama cultural. E
assim nos decidimos por esta abordagem, colocando de início a
pergunta fundamental: em que consiste esse "corpo somático" que
caracteriza o "mutante cultural" deste século, e que já vemos
pressentido por.Fernando Pessoa?
Analisando o
fenômeno, T.Hanna diz:
"À medida em que se
chega ao fim deste último terço do século
XX, estamos
assistindo ao final de um imenso período da cultura
humana, e
simultaneamente, estamos experimentando uma
brusca e acelerada
mutação em direção a uma cultura humana
radicalmente
diferente. A chave para a compreensão desse
acontecimento
evolutivo é o fato de que fomos bem sucedidos na
construção de uma
sociedade tecnológica. /... / Não a
conhecíamos
anteriormente, nem sonhávamos com ela, mas agora
que a estamos
vivendo, sabemos que quando ocorrem mutações
culturais em alguma
coisa tão inteiramente nova na história
humana (como a
sociedade tecnológica), elas ocorrem
rapidamente: a
mudança evolutiva, em lugar de ser vagarosa e
imperceptível,
torna-se uma mudança revolucionária./.../
gerações sucessivas,
vivendo nesse ambiente transformado, irão
elas mesmas
transformar-se. Esses mutantes, em termos gerais,
parecerão os mesmos,
mas não sentirão da mesma forma (porque
os seus corpos
estarão respondendo a um novo ambiente) e
obviamente não irão
comportar-se da mesma maneira (pois
estarão adaptados à
nova forma pela qual eles vêem e sentem o ambiente).
E isto tem sido o
impacto inicial da adaptação evolucionária
revolucionária: os
protomutantes são considerados, pela
sensibilidade dos
tradicionalistas culturais, como tendo "mau
comportamento" /...
/ Mas enquanto existir a sociedade
tecnológica, mais e
mais mutantes aparecerão a cada geração e
eventualmente
chegarão a dominar. Serão em número suficiente
para controlar as
instituições políticas, econômicas e
educacionais. Já
estão trabalhando. Começam a criar uma cultura
humana."
T.Hanna desenvolve,
a partir daí uma esclarecedora análise do atual "conflito de
culturas" ( não mais, conflito de gerações ), que estamos vivendo.
Inicialmente põe em questão os conceitos de moralidade/imoralidade (
tão vivamente presentes na poesia fernandina e que são, sem dúvida,
o ponto nevrálgico do conflito social de hoje ), e chega enfim à
"novidade" da mutação em processo: o corpo humano. E, a partir de
uma cuidadosa e inteligente revisão das "descobertas" filosóficas e
científicas que, desde o século XIX, vieram preparando a atual
mutação, T.Hanna chega ao "soma" que deve resultar da
evolução-revolução em marcha, — um "Eu, ser corporal" em inter-ação
com o novo espaço/tempo, e que sentimos muito vivo no eu-que-fala no
Álvaro de Campos sensacionista.
Conforme T.Hanna:
"Soma não quer dizer "corpo", significa "Eu, ser corporal"/.../ Os
somas são os seres vivos e orgânicos que você é nesse momento, nesse
lugar onde você está. O soma é tudo o que você, pulsando dentro
dessa membrana frágil que muda, cresce e morre, e que foi separada
do cordão umbilical que unia você — até o momento da separação — a
milhões de anos de história genética e orgânica desse cosmos. Somas
somos eu e você, querendo sempre a vida, e sempre em maior
abundância. Somas somos eu e você, irmãos em um envoltório
membranoso comum, em uma comum mortalidade, em um ambiente comum, em
uma confusão comum e uma oportunidade comum, agora, de descobrir
muito mais do que já soubemos a respeito de nós mesmos. /.../ O novo
mundo a ser explorado pelo Século XXI é o imenso labirinto do soma,
da experiência corporal e viva dos indivíduos humanos. E nós, do
último terço do século XX, fomos nomeados descobridores e
cartógrafos desse continente somático. Durante as próximas gerações,
os indivíduos humanos deixarão de pensar em si mesmos como mentes ou
espírito ( em oposição aos corpos ) precisamente no grau em que eles
começam a descobrir-se na imediaticidade dos seus somas."
Isolando os elos
mais próximos da complexa cadeia-em-reação que desemboca na mutação
atual, T.Hanna analisa o pensamento de Heidegger com a "questão do
Ser"; de Nietzsche e a "nova consciência do Super-Homem ou o Homem
Total"; de Freud e o "trauma do ovo"; de Marx e a "comunidade dos
corpos", etc., etc. E dá ênfase especial à "revolução copernicana"
realizada por Kant, como sendo a primeira manifestação da cultura
somática que o nosso século está construindo. E conclui :
"... as várias
falhas específicas de Kant não são nada em
comparação com a
revelação e a revolução que ele provocou no
nosso entendimento
de nós mesmos e do mundo externo que
experimentamos.
Antes de Kant, havia apenas o mundo:
soberano, onipotente
e magnificente, enquanto jogava luz nas
humildes câmaras
fotográficas humanas, tão dependentes e vazias
(Descartes). Depois
de Kant, a pequena caixa negra já não estava
vazia nem colocada
em humilde dependência: tornara-se plena,
viva e palpitante de
estruturas inexploradas, processos e
possibilidades.
Emmanuel Kant tinha descoberto o soma humano."
E neste momento
voltamos a Fernando Pessoa.
Realmente não parece
ser muito difícil identificarmos aquela ânsia incontida de
expansão/fusão do Eu com a Totalidade do Espaço/Tempo, que vimos
mais atrás, com a preocupação nuclear do pensamento em nossos
tempos, que T.Hanna chama de "mutação somática".
Mais uma vez
provando a superioridade da arte em relação à filosofia, na intuição
das novas realidades, Fernando Pessoa ( da mesma forma que Joyce,
Pound, Eliot, J.L.Borges, surrealistas, etc., etc. ) antecipa, em
sua poesia a mutação humano-cultural: a fusão eu/Mundo, hoje
abertamente procurada e já em processo de concretização. Essa ânsia,
ele a afirmou de mil maneiras.
Em suas reflexões
filosóficas:
"Tudo é sensação.
Sensação compõe-se do objeto sentido e da
sensação
propriamente dita." "Arte é a auto-expressão forcejando
por ser absoluta."
E em sua poesia,
como em "Saudção a Walt Whitmann":
"Abram-me todas as
portas
Por força que hei-de
passar!
/.../
Sou EU, um universo
pensante de carne e osso, querendo passar,
E que há de passar
por força, porque quando quero passar sou
Deus!
/.../
Meus versos saltos,
meus versos pulos, meus versos espasmos
Os meus
versos-ataques-histéricos
Os meus versos que
arrastam o carro de meus nervos.
Aos trambolhões me
inspiro.
MAL FERNANDO PESSOA, A DIALÉTICA DE SER
E os meus versos são eu não poder estoirar de viver.
/.../
Não quero intervalos no mundo!
Quero a contiguidade penetrada e material dos objetos!
Quero que os corpos físicos sejam uns dos outros como as almas
Não só dinamicamente, mas estaticamente também!"
Nem é preciso análise para se encontrar nessa torrente verbal, a
ânsia de expansão/fusão do Eu com o Mundo, com o Todo, — ânsia que,
impossível de ser vivida concretamente, é vivenciada pela palavra
poética.
Um ser em metamorfose, mais pleno, mais completo é pressentido pelo
poeta, como aquele que deve e pode corresponder as novas dimensões
do mundo-século XX, onde novas regiões se descobrem a cada passo.
Não será por acaso que, no poeta sensacionista, proto-mutante, a
principal força dinamizadora, desse desejo avassalador de
expansão/fusão, seja o erotismo que vibra através de todo o longo
poema. E, na verdade, que outra força existe, que dê maior sensação
de plenitude do que essa expansão/fusão erótica do eu com o outro (
e consigo mesmo )? Talvez a força mística, que Fernando Pessoa
também desde o início de sua criação poética tentou vivenciar em sua
poesia esotérica.
Esta foi a outra via tentada pelo poeta ( e talvez mais importante
que a "sensacionista"), para "reconhecer" outras dimensões de ser e
conhecer, ansiadas pelo homem. Via essa que, embora se apresente
quase sempre brumosa, mostrando o corpo como exílio ou mergulhada na
pré-ciência de vidas anteriores, se identifica plenamente com o
romper dos limites procurado pelos proto-mutantes e que, um dia,
será natural nos mutantes. Nesse sentido é de-se crer que a
dramática dicotomia ( corpo-espírito-universo ) nos serão
desvendados, como a unidade essencial que, hoje, só a fé ou a
percepção mística podem dar.
Que Fernando Pessoa acreditava nessa unidade visceral ( que a
cultura somática um dia provará ... ) nos confirma um de seus mais
belos poemas, "Eros e Psiquê", onde o poeta desenvolve o conhecido
mito do mesmo nome, que nos mostra a Alma despertada pelo Amor. (
Mito da Antiguidade Clássica que se vulgarizou na literatura popular
medieval e vive até hoje na literatura infantil na estória da "A
Bela Adormecida" ). Além de ser interpretado como uma teoria na
alma, o mito Eros e Psiquê tem sido compreendido por muitos
estudiosos, também como uma busca do conhecimento. Em Fernando
Pessoa, para além de seu sentido espiritualista e esotérico ( onde
aquelas duas interpretações confluem ) pode-se perceber claramente o
"pressentimento" mutante.
Leiamos o poema:
"Conta a lenda que
dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.
Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.
A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera.
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.
Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.
Ela para ele é ninguém.
Mas cada um cumpre o Destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.
E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E, vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora.
E, inda tonto do que houvera,
A cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A princesa que dormia.
(maio — 1934)
A
metaforização é clara, pois coincide com a "situação"narrada pelo
mito: a princesa adormecida que seria despertada pelo príncipe que a
encontrasse, e também todo o caminho da busca. Entretanto, a
inversão operada por Fernando Pessoa, no final transformando o
"Infante" na própria "Princesa encantada", altera por completo a
significação tradicional do mito, e abre uma outra possibilidade de
resposta para essa eterna busca do homem. A da expansão/fusão
somática que o eu mutante sem dúvida conhecerá ...
Todo o longo processo da procurarem que o homem está empenhado há
milênios, registra-se claramente nesse poema ( "Ele tinha que,
tentado / Vencer o mal e o bem" ). E também a certeza de que há o
caminho para o encontro final e decisivo ( "Mas cada um cumpre o
Destino / Ela dormindo encantada/ Ele buscando-a sem tino / Pelo
processo divino / Que faz existir a estrada." ), ao fim do qual as
eternas dicotomias se resolverão em síntese ...
O que resta de evidente, afinal, é que "a estrada existe" para que a
humanidade caminhe. Quem a faz caminhar? e para onde? são as
perguntas que há milênios vem sendo colocadas e obtendo as mais
diferentes respostas da Arte, da Filosofia, da Ciência e da
Religião... Na cultura somática ( ou qualquer nome que venha a ter,
afinal ... ) haverá, sem dúvida, a síntese que Fernando Pessoa ( e
outros como ele ... ) com sua Penalidade pressentiu ser possível.
Aguardemos que o tempo o revele ... Por enquanto, para meditarmos
nas respostas que Fernando Pessoa tentou encontrar, em todos os
minutos de sua vida, aqui temos a sua bela e desafiante produção
poética.
Fernando Pessoa foi um super-perceptivo e a preocupação com atingir
uma nova consciência-de-ser, de estar-no-mundo e de conhecer está
presente de ponta a ponta em sua poesia. Mas, tal como os demais
poetas ou pensadores entregues a tal problemática, ele sabia que
essa nova "consciência" ou "percepção" não dependia apenas de uma
aprendizagem intelectual, — não poderia ser ensinada ou aprendida
pela inteligência, mas que resultaria de um processo de
amadurecimento interior, de evolução ou mutação: a que resultara da
adaptação do homem ao novo ambiente cultural
(tecnológico/eletrônico) que ele próprio inventou, construiu e que
agora o desafia...
Tal como a consciência iluminada dos budistas ou zenbudistas, não se
trata apenas de um novo entendimento intelectual das coisas, mas
principalmente de uma nova vivência, uma nova mentalidade, nova "gestalt"
Será a revolução "somática", — a que ultrapassar de muito a
"revolução kantiana".
E para a preparação da auto-consciência que deverá iluminar o
caminho, a poesia é um dos grandes mediadores... Como disse Fernando
Pessoa: "A finalidade da Arte é simplesmente aumentar a
auto-consciência humana." Bem sabemos ( como ele também o sabia )
que arte não é só isso... Entretanto, nestes tempos de mudança, e de
rebaixamento geral da cultura essencial ao ser humano, é bom que a
encaremos assim...
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