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            Nelly Novaes Coelho 
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
              
                                                                        
          
            
            Fernando Pesssoa, a Dialética de ser em Poesia 
             
  
                                                                        
          
            
            "Chove ouro baço, mas não no 
            lá-fora... E em mim... Sou a Hora, 
                                                                        
          
            E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela..." 
                                                                        
          
            
            ("Hora Absurda" — 1913) 
            
             
  
                                                                        
          
            Com o genial poder 
            de síntese que singulariza sua linguagem poética, Fernando Pessoa 
            condensa nesses dois versos a essencial renovação que, naquele 
            momento, começava a ser gerada na Poesia Portuguesa (e na européia 
            em geral... ), mas que, ainda informe, não podia ser percebida pelo 
            olhar comum. Raros poetas terão manifestado essa certeza, essa 
            lucidez de Pessoa, não só com relação à essencialidade de sua 
            própria criação, mas principalmente, à tarefa fecundadora que ela 
            iria cumprir no processo renovador da poesia de seus contemporâneos.  
                                                                        
          
            "Hora Absurda", 
            longo poema de raiz simbolista (da fase inicial de Pessoa) expressa, 
            em seu extraordinário jogo de imagens e sensações, a dialética 
            fundamental — Poeta X Poesia —, que serve de leito à totalidade da 
            produção poética fernandina.  
                                                                        
          
            Poeta que viveu no 
            primeiro momento da crise que, em nosso século, iria dividir as 
            águas entre o Tradicional e a Modernidade, Fernando Pessoa muito 
            cedo revela uma aguda consciência de que o novo processo de Criação 
            já havia começado ( "Chove ouro baço" ), mas estava ainda limitado 
            aos próprios criadores, não tendo ainda eclodido para todos ( "mas 
            não no lá-fora...É em mim. Sou a Hora." ).Lã fora no panorama geral 
            da nação, reinava a paralisação das formas de vida mas no enigmático 
            campo da criação o novo já nascia.  
                                                                        
          
            Difícil dizer, de 
            início, até que ponto o "eu" implícito nessa fala poética seria o do 
            próprio poeta. Ou seria o "eu" do Poeta-ser-privilegiado, — aquele 
            que dá origem a Poesia e através de cuja voz a humanidade expressa 
            sua evolução em marcha. Ou seria, talvez, o "eu" da própria Poesia 
            com quem o poeta parece confundir-se muitas vezes. De qualquer 
            maneira, a lucidez de Fernando Pessoa, ao perceber a exata dimensão 
            do que começava a acontecer em si mesmo e no mundo à sua volta, nos 
            espanta.  
                                                                        
          
            Hoje, à distancia é 
            fácil vermos que, naquele instante, Criação e Destruição se 
            processavam intrincadamente ligadas. Mas ver por inteiro tal 
            fenômeno no próprio ato do acontecer, exige uma percepção fora do 
            comum, como era a do genial poeta. Note-se que "Hora Absurda" foi 
            escrita em 1913. Portanto, bem no início do processo renovador que 
            nosso século vem conhecendo. E já nesse momento Fernando Pessoa diz: 
            "E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela..." É assim que 
            ele expressa o espanto diante da criação que emerge da própria ruína 
            das formas tradicionais. Mostrando, inclusive, que Destruição e 
            Criação são fenômenos polares que evoluem simultaneamente e não há 
            como dissociá-los, sob pena de falsearmos a "verdade" de cada um.  
                                                                        
          
            O poema todo ( de 
            uma beleza estranha, difícil de explicar... ) é um iluminar 
            sucessivo das mil faces desse fazer poético que já se sabia chegado, 
            embora à sua volta só reinasse a estagnação aparente. "0 teu 
            silêncio é uma nau com todas as velas pandas... /.../ Minha idéia de 
            ti é um cadáver que o mar traz à praia... e entanto/ Tu és a tela 
            irreal em que erro em côr a minha arte..."  
                                                                        
          
            A metaforização é 
            clara. Nela transparece a dupla imagem que a Poesia ( ou a Vida?) 
            Portuguesa revelava ao poeta. Sob a paralisação vital-criadora 
            daquele decisivo momento cultural, o poeta já entrevia o "novo" que 
            avançava. E nesse eu-que-fala, ouvimos a voz do poeta da 
            modernidade, não a do eu biográfico e confessional — como pode 
            parecer a uma primeira leitura. A certeza disso nos é dada por todo 
            o diversificado caudal poético fernandino, onde é sempre o 
            "fingidor" que fala e não o "eu pessoal", — o eu da atitude 
            romântica do "coração ao pé da boca", que Fernando Pessoa sempre 
            repudiou.  
                                                                        
          
            Manifestando-se como 
            um "eu" ortônimo, heterônimo, semi-heterônimo ou de poeta dramático, 
            esse eu-que-fala na poesia de Fernando Pessoa, obedece a uma das 
            imposições basilares da "modernidade", — a despersonalização do 
            poeta.  
                                                                        
          
            A certeza dessa 
            despersonalização é reforçada, quando descobrimos que por trás 
            daquele "tu" com quem o poeta dialoga em "Hora Absurda", está a 
            própria Poesia ( e não uma mulher, como ocorre a qualquer um, numa 
            primeira leitura ). Pela natureza e relacionamento das imagens ou 
            metáforas, sentimos que ali está a Poesia Portuguesa, identificada 
            com o próprio fenômeno poético, — a Poesia cujo "silêncio" ( naquele 
            momento de estagnação vital ... ) já era visto pelo poeta como "uma 
            nau com todas as velas pandas...", — algo prestes a eclodir como um 
            navio pronto para largar do porto, e dar início à viagem. Não há 
            dúvida de que "Hora Absurda" é um longo e essencial diálogo do Poeta 
            com a Poesia, diálogo que se faz sobre ela mesma, revelando em 
            Fernando Pessoa a preocupação visceral que estará sempre presente em 
            seu espírito, durante os trinta e tantos anos em que viveu criando.  
                                                                        
          
            Ao conhecemos, no 
            todo, a poesia fernandina, essa identificação essencial, Poeta / 
            Poesia, se torna evidente corno sendo a força dialética que a 
            dinamiza.  
                                                                        
          
            Em fragmento solto ( 
            encontrado em meio aos milhares de inéditos que Fernando Pessoa 
            guardou em sua, hoje famosa, arca ), lemos:  
  
                                                                        
          
            "Navegadores antigos 
            tinham uma frase gloriosa:  
                                                                        
          
            Navegar é
            preciso, viver não é preciso."   
  
                                                                        
          
            Quero para mim o 
            espírito d’esta frase, transformada a forma para a casar com o que 
            eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar.  
                                                                        
          
            Não conto gozar a 
            minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda 
            que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha 
            desse fogo. Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para 
            isso tenha de a perder como minha".  
                                                                        
          
            Nesse breve 
            fragmento, temos uma significativa síntese da personalidade poética 
            do autor e da intencionalidade maior que o moveu para construção de 
            sua obra. Nessas "palavras de pórtico" se inscreve, pelo menos uma 
            das poucas verdades interiças e incontroversas que podem ser 
            atribuídas a Fernando Pessoa ou à sua obra singular.  
                                                                        
          
            "Viver não é 
            necessário; o que é necessário é criar." Não há dúvida de que essa 
            frase, já hoje tão conhecida pelos estudiosos do Poeta, pode ser 
            tomada como uma das chaves mais adequadas para se abrir caminho às 
            possíveis e diferentes leituras dessa multiforme produção, cujas 
            peculiaridades intrínsecas a tornam única, dentro do panorama da 
            poesia ocidental deste século.  
                                                                        
          
            Ao percorrermos a 
            copiosa produção, em poesia e prosa, publicada até o momento ( 
            segundo consta, há ainda milhares de escritos que permanecem 
            inéditos no acervo deixado pelo Poeta ), torna-se evidente que, 
            acima de tudo, Fernando Pessoa foi um ser-em-poesia. Foi alguém que, 
            no plano criador, viveu dialeticamente todas, ou quase todas, as 
            possibilidades de Ser e de Estar-no-mundo, que os tempos e as 
            diferentes culturas tem oferecido como opção aos homens. Desde a 
            objetividade do olhar e a naturalidade com que os sentidos do homem 
            e o mundo exterior se harmonizavam nos gregos e nos clássicos, até o 
            mergulho nos insondáveis meandros do ocultismo e da metafísica; 
            passando pelo vertiginoso viver destes tempos, impulsionados pela 
            Tecnologia e pela Velocidade da Máquina; ou ainda mergulhando nas 
            águas primordiais do Mito, Fernando Pessoa, com sua invulgar 
            capacidade de despersonalização ( a de ser múltiplo sem deixar de 
            ser um ), viveu intensamente todas as gamas do conhecimento e das 
            sensações que se lhe ofereciam à inteligência e à experiência 
            sensível.  
            E quando dizemos "viveu", estamos nos referindo quase exclusivamente 
            ao plano da criação ou da produção intelectual. Como todo homem de 
            gênio ou de mente superior, Fernando Pessoa criou muito mais do que 
            "viveu" ( no sentido comum que se dá ao termo). Daí a "verdade" 
            existente naquelas "palavras de pórtico".  
                                                                        
          
            Tudo o que já se 
            escreveu sobre sua vida e obra ( bem como o que ele próprio disse de 
            si... ) deixa bem claro o contraste entre o prosaismo ou a 
            semi-obscuridade de sua vida concreta, exterior, e a surpreendente 
            diversificação de interesses, a altura e originalidade da produção 
            caudalosa que o poeta deixou por herança aos seus contemporâneos. 
            Mas, o que significa realmente criar poesia? No caso específico de 
            Fernando Pessoa ( e dos grandes criadores... ), corresponde a criar 
            pela palavra poética modos de ver, ouvir, sentir, pensar... pois 
            eram essas, basicamente, as atitudes a serem redescobertas pela Arte 
            em mutação.  
                                                                        
          
            Em última analise é 
            isso que a Poesia ( ou a Arte em geral ) nos dá, para além do prazer 
            ou da emoção de sua expressão peculiar: pode revelar ao homem os 
            seres e coisas que o rodeiam, o espaço que o situa e o tempo que o 
            transforma... o também o homem ao próprio homem.  
            A respeito de Fernando Pessoa, poderíamos dizer que mais do "viver 
            para criar", ele criou para viver, tal foi o grau de entrega de seu 
            ser à tarefa poética. A nosso ver, à essa opção de vida ( assumida 
            conscientemente pelo poeta ),que precisa estar presente no espírito 
            daquele que se disponha a conhecer esse multifacetado universo 
            poético. Sem um mínimo de "sintonia" com as inquietudes que 
            dinamizara a criação fernandina, o eventual leitor se arrisca a 
            "passar ao largo" de sua essencial beleza e significação. Poesia e 
            Filosofia nela se reúnem, em um excepcional fenômeno poético que 
            tem, em suas raízes, a crise do Conhecimento que eclode em nosso 
            século, desde os primeiros anos.  
             
             
            O CONHECIMENTO EM CRISE  
  
                                                                        
          
            E aqui tocamos em um 
            dos "nervos" centrais desse intrigante organismo poético-filosófico 
            que é a obra fernandina: os modos de conhecer. Poeta do século XX, 
            tal qual seus companheiros de geração ( os "grandes" Ezra Pound, 
            T.S.Eliot, Valery, cubistas, futuristas, surrealistas ... ) e em 
            diferentes graus, Fernando Pessoa foi um obsessivo investigador do 
            Conhecimento. Ou melhor, das novas possibilidades ou 
            impossibilidades de um conhecimento objetivo do 
            homem/palavra/mundo/Deus, em um universo em acelerada transformação.  
                                                                        
          
            Pode-se dizer que é 
            esse o fulcro filosófico que unifica ou identifica, na origem, seus 
            diversos heterônimos ( Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de 
            Campos ) ou os semi-heterônimos ( Bernardo Soares, Barão de Teive, 
            Vicente Guedes, José Pacheco, Antônio Mora... ). Por diferentes que 
            se mostrem entre si, igualam-se todos por um impulso de raiz: a 
            ânsia de conhecer.  
                                                                        
          
            É natural que em 
            face de um mundo cujos valores, definições, limites e certezas ruíam 
            irremediavelmente, a arte se voltasse para as possibilidades de um 
            novo conhecer. Nesse sentido, duas diretrizes se abrem para as 
            buscas: a que investiga os próprios meios de expressão ( a que faz 
            da própria Arte o objeto da obra ) e a que investiga o "eu" através 
            do qual a Arte se realiza ( o sujeito do conhecimento estético ).
             
            Fernando Pessoa está entre os que foram atraídos por esta segunda 
            diretriz. Sua multifacetada obra é um dos frutos mais significativos 
            da crise do conhecimento acessível ao eu, que se manifesta no início 
            do século, nos rastros da revolução kantiana e do avanço da ciência. 
            Dentre as várias revoluções que o nosso século tem conhecido no 
            campo do Conhecimento, sem dúvida, a que mais afetou a criação de 
            Fernando Pessoa foi a interrogação basilar: como posso eu conhecer o 
            Real? E o além-Real?  
             
            Fernando Pessoa — "Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela  
                                                                        
          
                                             
            E oculta mão colora alguém em mim."  
                                 
            "Emissário de um rei desconhecido  
                                 
            Eu cumpro informes instruções de além  
                                 
            E as bruscas frases que aos meus lábios vêm  
                                 
            Soam-me a um outro e anômalo sentido..."  
  
                                                                        
          
            Alberto Caeiro —       
            "O mistério das coisas, onde está ele?  
                                  
            Onde está ele que não aparece  
                                  
            Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?  
                                  
            /.../  
                                  
            Porque o único sentido oculto das coisas  
                                  
            É elas não terem sentido oculto nenhum."  
             
            Álvaro de Campos — "Tema de cantos meus, sangue nas veias da  
                                 
            minha inteligência,  
                                 
            Vosso seja o laço que me une ao exterior  
                                 
            pela estática,  
                                 
            Fornecei-me metáforas, imagens, literatura,  
                                 
            Porque em real verdade, a sério, literalmente  
                                 
            Minhas sensações são um barco de quilha pró ar,  
                                 
            Minha imaginação uma âncora meio  
                                 
            submersa,  
                                 
            Minha ânsia um remo partido,  
                                 
            E a tessitura dos meus nervos uma rede a secar  
                                                                        
          
                                             
            na praia."  
             
            Ricardo Reis —        "Sábio é o 
            que se contenta com o espetáculo do  
                                                                        
          
                                            
            mundo,  
                                
            E ao beber nem recorda  
                                
            Que já bebeu na vida,  
                                
            Para quem tudo é novo  
                                
            E imarcescível sempre."  
  
                                                                        
          
            Aí estão as vozes de 
            Fernando Pessoa — ele mesmo, Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e de 
            Ricardo Reis, diferentes nas respostas vislumbradas, mas iguais no 
            empenho de "conhecer", tal como surgem em contraponto nesse 
            fascinante mundo fernandino, que é um dos grandes desafios lançados 
            à Crítica pela poesia contemporânea. E desafio, não porque seu 
            discurso poético se emaranhe em processos de composição que 
            acarretem a obscuridade da fala. Muito pelo contrário, com exceção 
            de certa poesia experimentalista inicial, tudo é direto e nítido em 
            seu dizer. Fiel ao postulado de que a "obra de arte, 
            fundamentalmente, consiste numa interpretação objetivada duma 
            impressão subjetiva", Fernando Pessoa repudia as abstrações.  
            Fácil é verificar, mesmo por uma primeira leitura, que não é o 
            processo de dizer em si o que o preocupa basicamente, mas sim o que 
            dizer. Daí que o experimentalismo formal só o tenha atraído na 
            medida em que expressava o modo de ver de determinado sujeito. 
            Assim, por sua preocupação com a nitidez da palavra poética, tratou 
            sempre de maneira absolutamente objetiva a "coisa" a ser expressa, 
            mesmo as mais obscuras ou incertas à apreensão lógica ( como 
            acontece em sua poesia esotérica ). Daí a facilidade com que se lê e 
            se "entende" a quase totalidade de seus poemas.  
                                                                        
          
            O desafio que sua 
            poesia representa, para o leitor interessado, está na genialidade 
            com que o retira da visão estável do mundo (como é, em geral, a 
            visão do cotidiano rotineiro), para levá-lo a perceber, com 
            inquietação, uma existência-outra, ainda desconhecida, e que se 
            pressente abissal e decisiva. Lida em conjunto e em confronto, sua 
            produção poética contraria, de imediato, a nitidez de enunciado que 
            lhe é peculiar, pois seus poemas se abrem em leque ( ou em 
            labirinto? ), se diferenciando entre si, não apenas pela dicção 
            poética que os individualiza, mas porque cada uma delas enuncia uma 
            maneira distinta de sentir e conhecer o mundo. É como se 
            "corporificando" em distintas personalidades os diferentes e 
            conflitantes modos de sentir/conhecer o mundo e a vida, Fernando 
            Pessoa tivesse conseguido "neutralizar" os desequilíbrios e 
            angústias que, fatalmente, apareceriam se uma só personalidade ( 
            Fernando Pessoa ele-mesmo ) vivenciasse tais conflitos. A 
            multiplicidade de cosmovisões é, pois, o que de imediato avulta na 
            produção poética fernandina.  
                                                                        
          
            E essa aparente 
            diversidade de raiz que se tem colocado para a crítica como um dos 
            problemas iniciais dessa poesia, pois sabe-se, à saciedade, que o 
            que define, singulariza e dá o valor definitivo à obra de um grande 
            escritor ( ou do grande artista em geral ) é a unidade, a coerência 
            de sua consciência-de-mundo... Sendo assim, como poderemos 
            compreender essa "diversidade" de problemática em um gênio como 
            Fernando Pessoa? Onde estaria a sua "unidade"?  
            Foi esse o ponto de partida da maioria dos estudos que se têm 
            elaborado sobre a sua poesia, desde a obra pioneira de Jacinto do 
            Prado Coelho ( "Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa - 1950" ) 
            que chega, afinal, a demonstrar que a "unidade essencial implícita 
            na diversidade das obras ortônimas e heterônimas" está na 
            "inquietação metafísica de Pessoa, no modo angustiado como viveu o 
            problema do conhecimento, — logo, os problemas da apreensão do eu e 
            da sinceridade profunda."  
                                                                        
          
            Nestes trinta anos 
            que se passaram desde a primeira publicação desse estudo basilar 
            para o conhecimento de Pessoa, muitas outras esclarecedoras e 
            perspicazes analises têm iluminado os mais diferentes campos do 
            universo fernandino. Um dos mais recentes e inteligentes, Pessoa 
            Revisitado de Eduardo Lourenço, leva mais fundo a análise para 
            provar magistralmente não apenas a "unidade" da poesia fernandina, 
            mas a totalidade que abarca os aparentes fragmentos heterônimos. E o 
            problema central apontado continua a ser o do conhecimento. Não 
            fosse ser esse o grande problema do nosso século, para o pensamento 
            reflexivo, para as artes e... para a vida.  
                                                                        
          
            Já foi sobejamente 
            analisado e provado que um dos índices básicos da Modernidade é a 
            consciência de que o "eu" pessoal, empírico ( disciplinado pelo 
            mundo dos conceitos consagrados e das relações sociais ) era o 
            grande obstáculo entre o poeta e o verdadeiro conhecimento do mundo 
            e das coisas ( exatamente ao contrário do que exigia o romântico). 
            Nessa ordem de idéias, o "eu" do artista passa a ser visto ( ou 
            desejado...) como um fulcro de despersonalização, que devia servir 
            de fundamento para uma nova apreensão de mundo e conseqüentemente a 
            uma nova linguagem.  
                                                                        
          
            Vista pelo prisma 
            dessa modernidade, a heteronímia criada por Fernando Pessoa não se 
            apresenta, pois, como um fenômeno isolado ou absolutamente insólito, 
            mas antes, corresponderia, a uma imposição geral dos novos tempos. 
            Responde ela à mesma causa que levou Baudelaire a tentar eliminar o 
            "pessoal" de sua voz poética e a criar a "teoria das 
            correspondências"; a mesma que também está na origem da "alquimia do 
            verbo" buscada por Rimbaud. Ou ainda a que levou Mallarmé a 
            perseguir a "magia da linguagem" Enfim, é a cisão moderna entre 
            Homem e Real que se agudiza, em nosso século, como 
            consciência-de-mundo e como crise de linguagem, exigindo novas 
            respostas às interrogações de sempre: quem sou eu? de onde vim? para 
            onde vou? quem ou o que justifica minha existência? e determina os 
            valores que regem o mundo dos homens? como posso eu conhecer o Real? 
            e ter certeza da autenticidade desse conhecimento? em que medida a 
            minha palavra traduz a "verdade" desse Real entrevisto ou 
            pressentido? etc., etc.  
                                                                        
          
            A diversidade de "eus" 
            do universo fernandino tentam, em última análise, dar algumas das 
            várias respostas plausíveis... uma vez que já não era mais possível 
            ao homem-século-XX qualquer resposta unívoca...  
                                                                        
          
            Para compreendermos 
            melhor não só a natureza da poesia fernandina, mas também a 
            atualidade, hoje, da complexa consciência de mundo nela 
            concretizada, tentaremos situar o poeta entre seus companheiros de 
            geração.  
             
             
            FERNANDO PESSOA 
            O MOMENTO HISTÓRICO E O ESPAÇO CULTURAL  
  
                                                                        
          
            Embora tenha sido 
            publicado, divulgado e conhecido amplamente, apenas no pós-guerra — 
            45, Fernando Pessoa pertence à geração dos "Ismos", que tumultuou a 
            Europa dos anos 10/20. Foram seus contemporâneos, pintores, como 
            Picasso, Braque, Kandinski, Mondrian, Larionov, Natalia Goncharova... 
            ; músicos como Schönberg, Stravinsky...; ficcionistas como Henri 
            James, Joyce, Jorge Luis Borges, Virginia Woolf, Kafka, Hermann 
            Hesse, John Dos Passos, E.E.Cummings... e poetas como Apollinaire, 
            Mallarmé, Marinetti, Max Jacob, Ezra Pound, Valery, T.S.Eliot, 
            A.Breton, Maiacovski, Gertrude Stein, Vicente Huidobro, Oswald e 
            Mário de Andrade, Mário de Sá Carneiro, Almada Negreiros...  
                                                                        
          
            Nascido em 1888, em 
            Lisboa, Fernando Pessoa fez parte daquela juventude que, sofreu em 
            sua formação cultural o primeiro impacto da revolução-evolução , em 
            marcha. Através dos estudos, ela foi disciplinada por um sistema de 
            pensamento e valores ainda rigorosamente estruturados ( o sistema 
            tradicional europeu e no caso especifico de Fernando Pessoa , o 
            britânico ), logo em seguida, quando começava seu momento de 
            produção artística, ou de atuação no plano da vida prática, é 
            abalada pela rebelião cultural-política que se manifesta na Arte, 
            com os "Ismos"; e na Política, com a Guerra de 14 e com a Revolução 
            Comunista de 17.  
                                                                        
          
            Em 1896, 
            circunstâncias familiares ( o casamento de sua mãe viúva com o 
            cônsul português na África do Sul ), levam o menino Fernando, com 8 
            anos incompletos, a viver e a estudar em Durban, Colônia de Natal, 
            onde permaneceu até os 17 anos de idade. É, portanto, nesse período 
            vivido fora de Portugal, que se realiza a formação cultural básica 
            de Fernando Pessoa , e sob o influxo da língua, do pensamento e 
            cultura inglesa, diretrizes que, afinal, o poeta nunca abandonara 
            por completo, apesar de sua profunda consciência de portucalidade.  
                                                                        
          
            O quanto essa 
            formação básica foi decisiva para o desenvolvimento posterior de seu 
            pensamento crítico-reflexivo e para sua criação poética ( e talvez 
            para seu próprio sentimento de nacionalidade ), o prova a 
            persistência com que Fernando Pessoa usou a língua inglesa para 
            expressão de seu pensamento. São, em inglês, os primeiros poemas que 
            ele decidiu publicar em livro (plaquete), Antinous-1918 ( escrito em 
            1915 ); como o são, também, a quase predominância dos textos em 
            prosa, em sua produção de teoria e crítica ( =filosofia e estética ) 
            deixada inédita e publicada parcialmente até o momento. Obviamente, 
            não poderíamos, neste breve espaço, tentar estabelecer quaisquer 
            relações ou "confluências" entre a natureza de sua poesia e a de 
            certos poetas ingleses ( por exemplo E.Pound ou Shakespeare ) que 
            Pessoa considerava geniais. ( Essas relações, sem dúvida 
            importantes, estão a merecer estudos detalhados que, talvez, em 
            breve alguém se disponha a realizar ).  
                                                                        
          
            Em 1905, de volta a 
            Lisboa ( de onde não sairá até sua morte, em 1935 ), Fernando Pessoa 
            ingressa na Faculdade de Letras que freqüenta durante dois anos 
            apenas e onde estuda Shakespeare e a filosofia alemã, em 
            Schopenhauer e Nietzsche. É desse período que datam seus primeiros 
            "textos filosóficos", cuja produção mais significativa ( a julgar 
            pelos dois volumes já publicados ) abrange mais ou menos dez anos ( 
            1906/1916 ). Essa preocupação com o conhecimento filosófico ( e 
            mesmo com a teorização literária ) precede o definitivo encontro de 
            Fernando Pessoa com a poesia.  
                                                                        
          
            Seu primeiro texto 
            publicado foi de teoria estética( "A Nova Poesia Portuguesa 
            Sociologicamente Considerada" in Águia, abril, 1912 ), enquanto o 
            primeiro poema publicado, "Páuis", é de 1913. A julgar pelas datas 
            apostas em seus textos ( e parece que Pessoa era particularmente 
            cuidadoso desse pormenor ) sua produção poética mais antiga é de 
            1911/1912 e é atribuída a Alberto Caeiro, muito antes, pois, desse 
            heterônimo terá aparecido ( 8/março/1914 ). Também de 1913 é a 
            publicação da "literatura dramática" Na Floresta do Alheamento, a 
            composição do poema em inglês "Epithalamium" e do "drama estático" O 
            Marinheiro. O verdadeiro nascimento de seus heterônimos se dá em 
            1914, época em que a maior parte de seus textos filosóficos já 
            estava escrita.  
                                                                        
          
            O que nos importa 
            observar nessas datas e tipos de produção é a tendência dominante em 
            Fernando Pessoa para o pensamento reflexivo e a simultânea atração 
            pelos vários gêneros literários: ficção, poesia, teatro e também 
            pela filosofia que ele considerava uma arte. Em seu afã de descobrir 
            a forma mais adequada à expressão do conhecer, Fernando Pessoa 
            tentou todos os gêneros, inclusive o conto policial ( o que confirma 
            sua preocupação visceral com o enigma ). É de se compreender, pois, 
            seu obsessivo interesse pela filosofia, onde é a própria 
            possibilidade do conhecimento, o fenômeno investigado.  
            Entretanto, apesar desse interesse, sua verdadeira realização se deu 
            apenas no campo da poesia. Em suas reflexões filosóficas, Fernando 
            Pessoa não chegou a nenhuma síntese. Como disse Benedito Nunes:  
                                                                        
          
              
                                                                        
          
            "0 pensamento de 
            Fernando Pessoa não foi filosófico no sentido 
                                                                        
          
            tradicional do 
            termo, porque foi, antes de tudo, uma arte do 
                                                                        
          
            
            paradoxo e uma 
            concepção lúdico-artística da filosofia."   
                                                                        
          
              
                                                                        
          
            E o próprio poeta 
            não se enganava com essa sua preocupação obsessiva: "Eu era um poeta 
            impulsionado pela filosofia, não um filósofo dotado de faculdades 
            poéticas."  
                                                                        
          
            Em seus Textos 
            Filosóficos encontramos menções a praticamente toda a gama de 
            filósofos. Desde os gregos até os modernos ( Heráclito, Parmenides, 
            Zenão, Górgias, Platão, Protágoras, Sócrates, Anaxágoras, 
            Aristóteles, Descartes, Kant, Leibniz, Berkeley, Vico, Nietzsche, 
            Pascal, Schopenhauer... ), Fernando Pessoa sondou praticamente todas 
            as possibilidades de posicionamentos do "eu" em face do mundo a ser 
            conhecido. Daí que sua poesia adquira um valor limítrofe ao da 
            filosofia: o que se abre para o Saber. Como ele próprio o diz a 
            certa altura de suas reflexões:  
                                                                        
          
              
                                                                        
          
            "Uma corrente 
            literária não passa de uma metafísica. Uma 
                                                                        
          
            metafísica é um modo 
            de sentir as coisas /.../ As metafísicas têm   
                                                                        
          
            gradações; são modos 
            mais ou menos intensos, mais ou menos 
                                                                        
          
            lúcidos de sentir o 
            Universo. O materialismo está no mais baixo 
                                                                        
          
            nível, representa 
            uma sensibilidade mínima perante o Universo, 
                                                                        
          
            um conceito estético 
            reduzido, porque não vive a vida das coisas 
                                                                        
          
            
            em grau superior. 
            Por isso não há grandes poetas materialistas."   
                                                                        
          
              
                                                                        
          
            Não esqueçamos que a 
            Arte do momento lançava-se contra o universo positivista que se 
            oficializara como o pensamento diretor da Sociedade, e assim 
            fechadas as vias de acesso às realidades não-científicas, a Criação 
            e a Metafísica viram-se em um "beco-sem-saída"...  
            Enfim, o que nos importa ressaltar aqui é que, não só Fernando 
            Pessoa, mas toda sua geração, estava no encalço de um novo 
            "conhecimento", de uma nova "abertura" para a vida. Em face de uma 
            cultura e de uma arte que se esfacelavam, recolocavam interrogações 
            sobre o Ser, o Estar-no-mundo e o Conhecer que os novos tempos 
            passaram a exigir.  
  
                                                                        
          
             
            A REVOLUÇÃO KANTIANA E A CRISE DA MODERNIDADE
             
  
                                                                        
          
            Dissemos mais atrás 
            que essa "crise do conhecimento", em nosso século, se dá nos rastros 
            da revolução kantiana e do avanço da Ciência. Pelo muito que as 
            teorias de Kant parecem ter atuado no pensamento de Fernando Pessoa 
            e de sua geração, a tomaremos aqui, como ponto de apoio, para 
            tentarmos compreendermos, não propriamente o mistério do processo 
            criador fernandino, mas sim as idéias básicas que nele teriam 
            influído.  
                                                                        
          
            Em suas reflexões 
            filosóficas ou sobre estética, são inúmeras as referências do poeta 
            ao pensamento do grande filósofo alemão. Em uma delas escrita em 
            inglês, e com data provável de 1906, Fernando Pessoa registra:  
                                                                        
          
              
                                                                        
          
            "Conhecemos as 
            coisas, não como são, mas apenas como se nos 
              
                                                                        
          
            
            apresentam."(Kant) 
            Tant d'hommes — tant de sensations.   
                                                                        
          
              
                                                                        
          
            A sociedade 
            vulgarizou a sensação. A vulgaridade de nomenclatura e do sentido de 
            sensação adquirida são as causas dos nossos pensamentos e 
            sentimentos serem todos parecidos.  
                                                                        
          
            A matéria existe 
            —como matéria. Existe por intermédio dos nossos sentidos. Para o 
            rústico, uma árvore é uma arvore; para um poeta é mais o que uma 
            árvore. É mais ou menos assim que vemos a matéria com a nossa falta 
            de percepção espiritual. Assim como aquelas montanhas que, vistas de 
            longe, parecem escarpas despidas e áridas, mas que vistas de perto 
            não mostram rochas nem nenhuma aridez, antes pelo contrário vales e 
            grandes extensões de terra lavada.  
            Somos fracos espiritualmente, isto é, somos somente capazes de uma 
            compreensão material, a não ser que usemos os nossos poderes mais 
            vastos e profundos.  
                                                                        
          
            No entanto, trazemos 
            em nós o poder de aprender a verdade — não verdade fenomenal, mas 
            verdade numenal. Afirmo agora, e afirmarei sempre, que ao homem 
            escapou o mistério do universal somente por falta de vontade de 
            pensar profundamente."  
                                                                        
          
            Aí temos, expresso 
            em linguagem reflexiva, o núcleo problemático de toda produção 
            poética fernandina e, em maior ou menor grau, de toda literatura 
            modernista dos primeiros anos do século: Obviamente, seria 
            ingenuidade ou tolice, qualquer tentativa de se isolar o fenômeno 
            responsável pela crise da Cultura e da Arte que eclode abertamente 
            nesse momento. Bem sabemos que a teia das causas e efeitos ou o 
            imbricamento dos fenômenos é de tal ordem que jamais poderá ser 
            deslindado em seus vários componentes isolados. Essa impossibilidade 
            não impede, porém, que o espírito crítico continue tentando iluminar 
            diferentes aspectos do fenômeno global, em busca de possíveis 
            explicações. É o caso do pensamento kantiano.  
                                                                        
          
            Sem pretendermos 
            entrar nos meandros do lastro filosófico que pode ser encontrado na 
            poesia de Fernando Pessoa ( e de seus companheiros de geração... ) 
            não resistimos, porém, ao impulso de cotejá-la com a teoria que, 
            nitidamente, lhe serviu de ponto de partida. Assim, da complexa 
            "revolução copernicana" ( expressão usada pelo próprio filósofo ao 
            definir suas próprias descobertas... ), operada por Kant a partir do 
            século XVIII, interessa-nos, aqui, apenas um aspecto: o que trata da 
            possibilidade ou impossibilidade de um conhecimento objetivo do 
            universo ( homem/mundo/Deus ).  
                                                                        
          
            Em que consistiu, 
            basicamente, essa "revolução" que está na base da renovação 
            romântica; que se aprofunda em crise, a partir dos "poetas malditos" 
            (Baudelaire, Rimbaud, Verlaine...), até explodir na iconoclastia dos 
            "Ismos"... é o que procuraremos sintetizar adiante, para chegarmos à 
            multiforme experiência poética de Fernando Pessoa.  
  
                                                                        
          
             
            A "SENSAÇÃO" COMO MEDIADORA DO CONHECIMENTO E 
            O SENSACIONISMO DE FERNANDO PESSOA  
  
                                                                        
          
            É principalmente na 
            criação do Sensacionismo, atribuído a Álvaro de Campos que está, a 
            nosso ver, a realização poética mais próxima das premissas 
            filosóficas de Kant. Aliás, essa produção "sensacionista", produzida 
            e publicada nos anos 1915 e 1916, corresponde a um dos pontos mais 
            altos da poesia fernandina, como expressado mundo contemporâneo, 
            isto é, o mundo construído pela Civilização da Técnica e da Máquina, 
            —onde as sensações humanas parecem explodir, tal o grau em que são 
            provocadas. Referimo-nos, precisamente, aos poemas: "Ode Triunfal" (publ.1.Orpheu-l.lºtrim.1915); 
            "Ode Marítima" (publ..2.Orpheu-2ºtrim.1915) "Saudação a Walt 
            Whitmann" (escrito em junho,1915); "Passagem das Horas" (escrito em 
            maio, 1916) e "Casa Branca Nau Preta" (escrito em out.1916). Neste 
            último poema, já existe uma outra atmosfera, melancólica, 
            desalentada, que contrasta com a euforia vital que predomina nos 
            primeiros e indica que o "sensacionismo" de Álvaro de Campos estava 
            se esgotando, ou pelo menos iria enfatizar outros aspectos da 
            possível apreensão do Real.  
            Nesses poemas, aparece de maneira indiscutível a intenção básica do 
            processo Poético de Fernando Pessoa: consumar a alquimia do verbo, 
            ou melhor transubstanciar em Palavra a "verdade"do Real, intuída 
            pelas sensações.  
                                                                        
          
            Obviamente, não será 
            por acaso que, nos anos 1915 e 1916, quando aqueles poemas eram 
            publicados ou escritos, Fernando Pessoa registrava também, em seus 
            manuscritos soltos, reflexões filosóficas e estéticas que indicam 
            com clareza a intencionalidade criadora que orientava, no momento, 
            sua produção poética. Para se compreender melhor o quanto a poesia 
            fernandina foi "programada" ou era "intelectualizada" ( como ele 
            mesmo tantas vezes afirmou ) parece-nos bastante esclarecedor um 
            cotejo de textos. Vejamos, por exemplo, um fragmento de seus "textos 
            filosóficos", cuja data provável é dos anos acima mencionados 
            (1915-1916).  
                                                                        
          
              
                                                                        
          
            "Tudo é sensação. 
            /... / O espiritual em nós é a potência para sentir e o sentir é a 
                                                                        
          
            sensação, o ato. /.../ Tudo o que existe é um fato mental, isto é, 
            concebido. /.../ 
                                                                        
          
            Criar, isto é, conceber uma coisa como em nós, mas 
            não em nós, /... / é concebê-la 
                                                                        
          
            como feita da nossa própria 
            substância conceptiva, sem ser essa mesma 
                                                                        
          
            substância."  
                                                                        
          
              
                                                                        
          
            Aí temos enunciada 
            de maneira óbvia uma explicação das relações entre eu e mundo, tendo 
            em vista o sentir, pensar e conhecer, de lastro kantiano. Tal lastro 
            aparece também em certas reflexões pessoais ( recolhidas em Páginas 
            Íntimas... com data provável de 1916, mas que talvez sejam 
            anteriores à publicação dos poemas em questão ), onde Fernando 
            Pessoa analisa teoricamente o que Álvaro de Campos realiza 
            poeticamente na diretriz do Sensacionismo, e com isso nos dá as 
            "chaves" mais adequadas para compreendermos a natureza da alquimia 
            verbal ali pretendida pelo poeta. Diz Pessoa:  
                                                                        
          
              
                                                                        
          
            "Nada existe, não 
            existe a realidade, apenas sensação.  
  
                                                                        
          
            As idéias são 
            sensações, mas de coisas não situadas no espaço e, por vezes, nem 
            mesmo situadas no tempo. A lógica, o lugar das idéias, outra espécie 
            de espaço. /.../ A finalidade da arte é simplesmente aumentar a 
            auto-consciência humana. O seu critério é a aceitação geral ( ou 
            semi-geral ), mais tarde ou mais cedo, pois é essa a prova de que, 
            na realidade, ela tende a aumentar a auto-consciência entre os 
            homens.  
                                                                        
          
            Quanto mais 
            decompomos e analisamos as nossas sensações em seus elementos 
            psíquicos, tanto mais aumentamos a nossa auto-consciência. A arte 
            tem, pois, o dever de se tornar cada vez mais consciente."  
                                                                        
          
            Aí temos pelo menos 
            três importantes premissas que alicerçam o universo poético 
            fernandino:  
            — a importância basilar das sensações na apreensão do mundo das 
            relações: homem X mundo exterior;  
            — a diferença de natureza entre "sensações" (ligadas à intuição) e 
            "idéias" ( ligadas à inteligência, à lógica, à razão ) e  
            — a finalidade pragmática da arte: tornar a humanidade 
            auto-consciente das realidades que lhe são essenciais à evolução...
             
            Essas premissas podem ser rastreadas em todo o universo poético 
            fernandino (ortônimo ou heterônimo ); e é através dessa perspectiva 
            ( a de o poeta tentar decompor e analisar suas sensações até o fundo 
            de seus componentes psíquicos, para aumentar sua auto-consciência do 
            Real que deve ser objetivado no poema ), que compreenderemos melhor 
            o ritmo torrencial dos poemas sensacionistas. Em "Ode Triunfal", por 
            exemplo:  
  
                                                                        
          
            "A dolorosa luz das 
            grandes lâmpadas elétricas da fábrica   
                                                                        
          
            Tenho febre e 
            escrevo.   
                                                                        
          
            Escrevo rangendo os 
            dentes, fera para a beleza disto,   
                                                                        
          
            Para a beleza disto 
            totalmente desconhecido dos antigos   
                                                                        
          
            O rodas, õ 
            engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!   
                                                                        
          
            
            Em fúria fora e 
            dentro de mim. 
                                                                        
          
            
            ..........................................................................................
             
  
                                                                        
          
            Mais do que a 
            euforia futurista de Marinetti ( a primeira a tentar encontrar o 
            ritmo e a atmosfera própria à civilização da máquina ); mais do que 
            a adesão à "vitalidade transbordante", ao "belo feroz" ou "à força 
            sensual" do universo poético de Walt Whitmann, os poemas 
            sensacionistas de Álvaro de Campos expressam a experiência quase 
            apocalíptica do poeta contemporâneo, ao pretender expressar um mundo 
            que ultrapassou sua capacidade normal de apreensão, um mundo 
            "totalmente desconhecido dos antigos"... mas resultante irredutível 
            destes últimos.  
                                                                        
          
            O poeta tenta ( e 
            praticamente o consegue ... ) nos comunicar suas sensações in totum. 
            Não, a epidérmica visão do babélico mundo moderno que os futuristas 
            ofereciam, mas uma apreensão global, abrangente, que sugere o mundo 
            como um continuum vital, em que presente/passado/futuro se amalgamam 
            na alquimia do verbo, tal como na realidade cósmica as vivências 
            estão amalgamadas.  
  
                                                                        
          
            "Canto, e canto o 
            presente e também o passado e o futuro   
                                                                        
          
            Porque o presente é 
            todo o passado e todo o futuro   
                                                                        
          
            E há Platão e 
            Virgílio dentro das Máquinas e das luzes elétricas   
                                                                        
          
            
            Só porque houve 
            outrora e foram humanos Virgílio e Platão."  
  
                                                                        
          
            Com uma funda 
            consciência da metamorfose, como processo fundamental da vida, 
            Fernando Pessoa, tal como os grandes criadores, seus contemporâneos, 
            introjeta o passado no presente, como algo vivo, que ocultamente 
            dinamiza as realidades.  
                                                                        
          
            ( É da mesma origem, 
            o impulso que levava E.Pound, naquele mesmo momento, a criar suas 
            Personae e seus Cantos, onde ( pelo processo da intertextualidade ) 
            vozes poéticas do passado são absorvidas pela voz "poundiana" que, 
            assim, expressa o Presente como uma voragem, que o ontem dinamiza, e 
            onde já se gera o amanhã. )  
                                                                        
          
            Esse é um dos 
            aspectos fundamentais da poesia contemporânea, bem como da 
            fernandina: a diluição das fronteiras entre os "tempos" que regem 
            nossa vida concreta, para revelar o Tempo infinito que tudo engloba 
            e que permanece desconhecido dos homens.  
                                                                        
          
            Mas não é só dos 
            "tempos" que se anulam as fronteiras. Na palavra de Pessoa há uma 
            grande ânsia de fundir "espaços" distintos e distantes em um só 
            espaço abrangente e perene. Como há também a ânsia de expansão da 
            Individualidade, para que seja alcançada a Totalidade do ser ou uma 
            plenitude de sentir e ser, quase cósmica, na qual pressentimos uma 
            grande identificação com o fenômeno de nossos dias, o "mutante 
            cultural", ao qual voltaremos mais adiante, quando falarmos da 
            atualidade de Fernando Pessoa.  
                                                                        
          
            Entretanto, no geral 
            da poesia fernandina, essa ânsia de expansão da Individualidade 
            desemboca na perda da identidade do "eu" e, conseqüentemente, na 
            despersonalização.  
  
                                                                        
          
             
            A CRISE DA MODERNIDADE E A DESPERSONALIZAÇÃO
             
  
                                                                        
          
            Foi exatamente no 
            início deste século que certas interrogações, provocadas pela 
            evolução das premissas kantinas, se avolumam e se tornam obsessivas 
            ou angustiantes: como posso saber se minha sensibilidade, sensações 
            ou minhas intuições têm realmente "formas a priori" que fundamentem 
            em verdade o ser-das-coisas? como saber se essas "formas" foram 
            intuídas e não, simplesmente inventadas por mim? quem me garante que 
            estou expressando corretamente a minha intuição? e que não estou 
            dando uma forma falsa à coisa-a-ser-conhecida? até que ponto meu 
            "entendimento discursivo", minha "palavra" expressam com 
            autenticidade meu pensamento?  
                                                                        
          
            Obviamente, as 
            dúvidas quanto à possibilidade ou não de conhecimento, que vem 
            desafiando o homem pós-Kant, desde fins do século passado até hoje ( 
            homem pressionado por mil descobertas nas mais variadas áreas da 
            Vida e da Cultura ), não se colocam assim de maneira direta e 
            simples ( ou ingênua ). Mas para nosso objetivo aqui, tal enunciado 
            é suficiente. E de certa maneira, podemos dizer que nessas 
            interrogações está uma das marcas mais flagrantes de modernidade que 
            vai distinguir a poesia tradicional da poesia contemporânea a 
            despersonalização na qual a perda de identidade do eu vai 
            desembocar.  
                                                                        
          
            Pode-se dizer que 
            essa perda de identidade do eu é o denominador comum que, para além 
            das enormes diferenças individuais, identificou os integrantes do 
            grupo "Orpheu" como uma geração literária. Não foi outro, o elemento 
            apontado por Almada Negreiros quando, em 1965 ( 509 aniversário da 
            revista Orpheu ), escreveu:  
                                                                        
          
              
                                                                        
          
            "Ainda hoje 
            desconheço felizmente a identidade dos inesquecíveis 
                                                                        
          
            companheiros do 
            "Orpheu" /... / que foram os meus, 
                                                                        
          
            precisamente por nos 
            ser comum uma mesma não identidade. 
                                                                        
          
            Éramos em realidade 
            muito estranhamente diferentes uns dos 
                                                                        
          
            outros, e todos 
            suspensos do mesmo fio de nos faltar território. E 
                                                                        
          
            
            assim nasce o 
            profundo da palavra "companheiro".   
                                                                        
          
              
                                                                        
          
            O que Orpheu se 
            propunha ser ( conforme o diz a Introdução de Luiz de Montalvor ) 
            era esse "território" comum, onde se encontrariam os exilados de si 
            mesmos e do mundo. Não é outra a "tecla" desde sempre percutida por 
            Mário de Sá-Carneiro, em poesia ou prosa. Em poemas de Indícios de 
            Oiro, publicados no Orpheu 1 (1915), lemos:  
  
                                                                        
          
            "A ponte levadiça de 
            Eu-ter-sido   
                                                                        
          
            Enferrujou — embalde 
            a tentarão descer...   
                                                                        
          
            /.../   
                                                                        
          
            Percorro-me em 
            salões sem janelas nem portas,"   
                                                                        
          
            "Esta inconstância 
            de mim próprio em vibração   
                                                                        
          
            É que me há transpor 
            às zonas intermédias,"   
                                                                        
          
            "Eu não sou eu nem 
            sou o outro,   
                                                                        
          
            Sou qualquer coisa 
            de intermédio:"   
                                                                        
          
            "— Ó pântanos de Mim 
            — jardim estagnado..."  
  
                                                                        
          
            Também Ronald de 
            Carvalho, nesse mesmo número inaugural de Orpheu, escreve:  
  
                                                                        
          
            "Fujo de mim como um 
            perfume antigo foge ondulante e vago de 
                                                                        
          
            
            um missal e julgo 
            uma alma estranha andar comigo."   
  
                                                                        
          
            Note-se ainda que 
            Fernando Pessoa escolheu para esse importante numero inicial da 
            revista( que deveria identificá-los como nova geração ), não poemas, 
            mas o "drama estático" O Marinheiro, cujo eixo problemático é 
            exatamente a sondagem do "quem somos?". ( Observe-se que a primeira 
            proposta de comunicação entre as três donzelas veladoras da.donzela 
            morta é entreterem-se contando umas às outras o que foram, apesar de 
            saberem que esse contar "É belo e é sempre falso." )  
                                                                        
          
            Enfim, fácil é 
            verificar que esse estranhamento ou esse desconhecimento de cada um 
            a respeito de si próprio ( e do mundo à volta ) era a tônica comum a 
            essa geração de artistas e escritores, nos primeiros anos do século. 
            Diz Almada:  
  
                                                                        
          
            "Era a arte que nos 
            juntava? Era. Arte era a solução. A nossa 
                                                                        
          
            
            solução comum. Era o 
            neutro entre nós."  
  
                                                                        
          
            O que Almada diz aí 
            ,com respeito à "geração do Orpheu", pode ser estendido a toda a 
            geração européia e americana que nos anos 10/20 fez sua entrada no 
            mundo da Literatura e da Arte. Por diversos que fossem os gêneros 
            adotados por cada um ou a natureza de suas obras, identificava-os 
            uma mesma paixão: a da Arte em face a um espaço cultural vazio ou 
            agressivo, onde lhes "faltava território" para viverem em plenitude. 
            Esse "território" só a Arte, a Literatura podiam oferecer. Daí a 
            importância vital da forma a ser conquistada como expressão do novo, 
            então apenas intuído em meio ao "caos de sensações" oferecidas por 
            um mundo de valores em naufrágio e valores em gestação; daí, também, 
            o fragmantarismo como processo de composição e acima de tudo o 
            esforço de libertação de uma identidade pessoal/social limitadora e 
            a busca da despersonalização.  
  
                                                                        
          
             
            A HETERONÍMIA : DESPERSONALIZAÇÃO VERSUS 
            PERSONIFICAÇÃO  
  
                                                                        
          
            E aqui já nos 
            aproximamos dos heterônimos fernandinos, nos quais essa busca de 
            despersonalização se funde com diferentes impulsos de 
            personificação, resultando na expressão de distintos estados de 
            consciência que, por sua vez, expressam distintas cosmovisões.  
  
                                                                        
          
            "De quem é o olhar / 
            Que espreita por meus olhos?/ Quando 
                                                                        
          
            penso que vejo,/ 
            Quem continua vendo / Enquanto estou 
                                                                        
          
            pensando?/ Por que 
            caminhos seguem, Não os meus tristes 
                                                                        
          
            passos, / Mas a 
            realidade / De eu ter passos comigo? Às vezes, na 
                                                                        
          
            penumbra / Do meu 
            quarto, quando eu / Para mim próprio 
                                                                        
          
            mesmo Em alma mal 
            existo, / Toma um outro sentido / Em mim o 
                                                                        
          
            Universo — / E uma 
            nódoa esbatida / De eu ser consciente sobre 
                                                                        
          
            
            / Minha idéia das 
            coisas."   
                                                                        
          
              
                                                                        
          
            Para lã da conotação 
            esotérica ou ocultista que têm esses versos, está bem evidente a 
            obsessão com o conhecimento acessível ao eu.  
                                                                        
          
            Distendido na ânsia 
            do conhecer, o poeta sonda continuamente sua própria consciência das 
            coisas. Com esse gradativo aprofundar-se no eu, de quem se esperava 
            a revelação da verdade do mundo, o artista-criador viu-se cada vez 
            mais reduzido a si mesmo e, ao mesmo tempo, cada vez mais 
            distanciado de sua própria identidade.  
                                                                        
          
            Sê plural como o 
            universo." , diz Fernando Pessoa, reagindo à nova realidade 
            cósmico-social que se oferecia ao homem moderno da Sociedade 
            Tecnológica. Obrigado a apreender a caótica pluralidade de formas do 
            universo, o eu tende também a se pluralizar. Fragmenta-se, e aos 
            poucos desaparece aquele "eu" uno ( do Romantismo ) que se 
            apresentava como um centro fixo, nítido e que, acima de tudo, devia 
            ser sincero ao expressar seus sentimentos. E nesse sentido que se 
            pode entender os conhecidos versos de "Autopsicografia":  
  
                                                                        
          
            "O poeta é um 
            fingidor.   
                                                                        
          
            Finge tão 
            completamente   
                                                                        
          
            Que chega a fingir 
            que é dor   
                                                                        
          
            
            A dor que deveras 
            sente."   
  
                                                                        
          
            Pessoa apreende aí, 
            com nitidez, a dialética entre eu pessoal X eu poético que se impôs 
            ao poeta moderno, obrigado a distanciar-se do seu eu comum, preso na 
            teia social e rotineira do mundo cotidiano, para poder ouvir com 
            clareza o seu "outro" eu, o eu criador, sensível e intuitivo que 
            serviria de mediador entre o Conhecido e o Desconhecido.  
            A esse repúdio do "eu" pessoal, individualizado e poderoso ( que 
            está na base do mundo romântico ) corresponde a despersonalização 
            procurada a partir de então. Não se trata mais de dar voz ao eu real 
            do poeta, nem de lhe pedir "sinceridade de sentimentos"... mas sim 
            de entregar a experiência da criação à sua personalidade poética, — 
            personalidade fictícia, mas muito mais livre e verdadeira do que a 
            real, e muito mais capaz de estabelecer novos vínculos do Ser com o 
            Mundo e de dar forma ou concretude às novas realidades ( apenas 
            intuídas e ainda não conhecidas pela razão comum ).  
                                                                        
          
            Essa nova 
            experiência de criação, através de uma "personalidade poética" que 
            pouco ou nada tem a ver com a personalidade empírica do poeta e, 
            pois, a marca distintiva da "modernidade" que se instaura em nosso 
            século e que Fernando Pessoa procurou conscientemente, levar às 
            últimas conseqüências. Pela singularidade de seu gênio ou 
            temperamento, a "despersonalização" exigida pela modernidade assumiu 
            um feitio absolutamente invulgar. Nem as "personae" de Ezra Pound, 
            nem as "máscaras" de Eliot podem ser comparadas à organicidade 
            interna de cada. "personalização" assumida por seus heterônimos ou 
            semi-heterônimos... Conhecidos em conjunto, eles oferecem um 
            verdadeiro balanço da Poesia, desde seus primórdios registrados pela 
            História até o mundo-século XX, e também das diferentes 
            possibilidades de Ser e de Estar-no-mundo que o Conhecimento punha 
            em xeque naquele início da crise cultural, cujo processo se 
            desenvolve ainda hoje ...  
  
                                                                        
          
             
            O FENÔMENO DA HETERONÍMIA  
  
                                                                        
          
            É dentro dessa crise 
            cultural que as interrogações sobre a heteronímia fernandina podem 
            ser colocadas. Obviamente, o dado fundamental é a personalidade 
            singular do poeta que, desde menino, revelou uma tendência inegável 
            para a despersonalização, ou melhor, pelo desdobramento da própria 
            individualidade, como ele próprio o confessou em várias ocasiões. A 
            essa capacidade inata para a invenção, para a ficção, juntou-se, por 
            via cultural ( através dos estudos e da reflexão estética e 
            filosófica intensificada ) a influência da interrogação basilar da 
            época: como conhecemos? E Fernando Pessoa, nos rastros de Kant, 
            afirma:  
  
                                                                        
          
            "Não conhecemos 
            senão as nossas sensações. O universo é, pois, 
                                                                        
          
            
            um simples conceito 
            nosso."   
  
                                                                        
          
            Mas não é um "eu" 
            qualquer, comum... que poderá ter acesso a esse conhecimento 
            essencial. E pouco antes de Pessoa, Níetzsche afirmava:  
  
                                                                        
          
            "A história e as 
            ciências da natureza foram necessárias contra a 
                                                                        
          
            Idade Média: o saber 
            contra a crença. Contra o saber dirigimos, 
                                                                        
          
            hoje, a arte: volta 
            à vida! Matriz do instinto do conhecimento! 
                                                                        
          
            
            Reforço dos 
            instintos morais e estéticos!   
  
                                                                        
          
            É a um "eu" vivo, 
            liberto das deformações do saber estratificado, e alimentado pela 
            criatividade artística, a quem se entrega a responsabilidade de 
            redescobrir as novas formas de vida, e por conseguinte as novas 
            formas do conhecer. Conforme Pessoa o diz em outra ocasião:  
                                                                        
          
              
                                                                        
          
            "O problema do 
            conhecimento é a fronteira que, a um tempo une 
                                                                        
          
            e separa como toda 
            fronteira, a física e a metafísica. Postos Sujeito 
                                                                        
          
            e Objeto, e Relação 
            entre eles como, desde Kant se estabeleceu, o 
                                                                        
          
            último irredutível 
            abstrato da experiência depurada, a teoria do 
                                                                        
          
            conhecimento 
            metafísico, é a da relação essencial entre Sujeito e 
            Objeto."   
  
                                                                        
          
            No afã de 
            multiplicar as latentes possibilidades dessas relações essenciais, é 
            de se compreender que a multiplicação das personalidades poéticas 
            tivessem surgido como um recurso valiosíssimo. Uma vez que o "fato 
            fundamental do universo" é alguém ter "consciência dele", e uma vez 
            que todo trabalho mental versa sobre a Relação que se estabelece 
            entre Sujeito e Objeto, e essa "relação" se identifica com a 
            Realidade que julgamos conhecer... conclui-se que, mudando um dado 
            da "relação", isto é, o sujeito pensante também mudará o resultado 
            ou a natureza da mesma. Tantos "sujeitos" quantas "realidades". Daí 
            a multiplicidade incrível de verdades, conhecimentos, realidades que 
            se superpõem ou se desmentem reciprocamente em qualquer panorama 
            histórico-cultural, ou na vida cotidiana que cada um de nós conhece, 
            ou também no universo fernandino.  
                                                                        
          
            A ânsia de ser 
            plural, que é comum a praticamente todos os artistas desses 
            primeiros tempos do Modernismo, torna-se facilmente compreendida. 
            Sendo eu, um só ser , uma só possibilidade de percepção ( por mais 
            variadas que sejam as perspectivas, a partir das quais eu me coloque 
            ), não poderei ver, sentir, perceber e compreender o ambiente ou o 
            mundo que me situa, senão pelo meu prisma ... o que redunda 
            fatalmente em pobreza de visão, tendo em vista a multiforme dimensão 
            do universo a ser apreendido pelo conhecimento. A infinitude das 
            formas latentes à espera de serem descobertas, fatalmente me 
            escapam.( Daí a tentativa da "auto-abertura" que as várias técnicas 
            da psicologia atual oferecem para que o eu atinja uma interação 
            espontânea e harmoniosa com o espaço global a que ele pertence, e 
            que pela razão, só conhece fragmentariamente...) Daí, também, o 
            fenômeno que teria estado na origem dos heterônimos, — não 
            "personalidades" ou "sujeitos pensantes" criados ao acaso, mas sim 
            personalidades representativas de modos de ver, perceber e conhecer 
            fundamentais ... que se vem sucedendo no Tempo, pelo menos desde os 
            gregos ...  
                                                                        
          
            Que 
            consciência-de-mundo está presente em cada um deles?  
                                                                        
          
            Alberto Caeiro é o 
            poeta ingênuo ( e pensador, embora não o admita ... ), para quem o 
            viver pleno decorre da adesão espontânea do homem as coisas, tais 
            como são, e no frui-las com despreocupada e alegre sensualidade.  
                                                                        
          
            Ricardo Reis é o 
            poeta clássico, da serenidade epicurista, que aceita o Fatum, de 
            olhos abertos e para quem o viver ideal depende de o homem aceitar 
            com calma lucidez, a relatividade e a fugacidade de todas as coisas 
            e assim, sem nada esperar de duradouro, se furtar à dor das perdas 
            inevitáveis.  
                                                                        
          
            Álvaro de Campos é o 
            poeta moderno da dialética fundamental: eu civilizado versus eu 
            poético, tentando conhecer as antinomias latentes no novo 
            ser-forjado-pela-civilização, quando posto em confronto com o 
            Absoluto.( Álvaro de Campos seria o novo embrionário que hoje vemos 
            aparecer, inconfundível, no "mutante cultural" dos nossos dias. )  
                                                                        
          
            Bernardo Soares, o 
            burocrata lisboeta, é o prosador poético em quem convive, 
            surdamente, sem angústias, o contraste de uma realidade cotidiana 
            estreita ( presa às necessidades materiais, e à rotina desgastante ) 
            e a certeza de que, embora ausentes, há ideais mais altos, aos quais 
            a vida devia ser dedicada, para se realizar com plenitude.  
                                                                        
          
            Vicente Guedes, 
            Antonio Mora, Rafael Baldaia, Barão de Teive, Alexander Search... 
            heterônimos ou semi-heterônimos, totalmente individualizados ou 
            semi-autônomos... cada um assume uma maneira especifica de ver, 
            pensar e falar.  
                                                                        
          
            E Fernando 
            Pessoa-ele mesmo, quem é? Teria existido esse "ele-mesmo"? Qual 
            seria sua face verdadeira? Ou melhor, seria plausível que 
            buscássemos essa pretensa "face verdadeira" quando sabemos que 
            Fernando Pessoa fugiu sempre da identificação pessoal? E só 
            confrontarmos as inúmeras justificativas ou explicações acerca dos 
            heterônimos, que ele deixou registradas em cartas pessoais, em 
            manuscritos soltos, em "prefácios" projetados para publicação de sua 
            obra, etc., etc., e nos daremos conta de que Fernando Pessoa tentou 
            enfatizar, de mil maneiras, o fenômeno fundamental que estava na 
            origem de sua heteronímia: o fenômeno da ficção, da invenção 
            essencial, exigida pela verdadeira poesia.  
                                                                        
          
            Portanto, quanto à 
            sua produção dita "ortônima", como explicar a diversidade que também 
            a caracteriza? Em qual de seus diferentes aspectos estaria o 
            verdadeiro Fernando Pessoa-ele mesmo? No poeta de tendências 
            simbolistas de "Hora Absurda"? no poeta do "interseccionismo 
            impressionista" de "Chuva Oblíqua"? ou no do "paulismo", o poeta 
            blasé em quem predomina o virtuosismo formal sobre a preocupação 
            espiritual? Ou no poeta esotérico da "Passos da Cruz"? Ou estaria no 
            poeta dramático? Ou ainda no poeta dos "poemas ingleses"? — aquele 
            que registra a perplexidade do homem diante do "cisma" que separou 
            pensamento e mundo sensível, e que perscruta o "abismo" que se 
            interpõe entre a consciência e o eu que sente? "Between me and my 
            consciouness / Is an abyss." Ou será o poeta épico-místico de 
            "Mensagem", o que acreditava que "O mito é o nada que é tudo."? e 
            que, por essa crença, ao escrever a "epopéia" moderna da 
            portucalidade, diluiu sua historicidade fugaz no húmus 
            mítico-místico de uma realidade perene, que transcende o 
            cognoscível, porque pertence ao mistério do destino humano.  
                                                                        
          
            Difícil dizer qual 
            desses é o "verdadeiro" Fernando Pessoa. Apenas, o que se percebe de 
            imediato é que todas essas diferentes faces assumem uma postura 
            igual: estão voltadas para uma determinada investigação do Real ou 
            do Mistério incognoscível. O que se impõe também como fato inegável, 
            é a importância que Fernando Pessoa atribuiu ao mito, ou à 
            consciência mítica para o poeta. E isso, não só porque tal 
            "consciência" aparece desde cedo em seus escritos ( o projeto de 
            "Mensagem" em já se encontra registrado em suas anotações, desde os 
            anos 1O ), mas principalmente pelo cunho de perenidade que tentou 
            imprimir a cada produção heterônima, com a matéria poética em grau 
            maior, com que as construiu passo a passo. Perenidade de mito, que o 
            poeta tentou, de certa maneira, neutralizar diante do leitor, pela 
            invenção das biografias, com que pretendeu fixar, no cotidiano, algo 
            que ele sabia pertencente ao intemporal. Note-se que, entre os 
            manuscritos de "Páginas Intimas", onde ele explica mais uma vez sua 
            "heteronímia" lê-se textualmente:  
  
                                                                        
          
            "Desejo ser um 
            criador de mitos, que é o mistério mais alto que 
                                                                        
          
            
            pode obrar alguém da 
            humanidade."  
  
                                                                        
          
            Se entendermos o 
            mito como uma vivência, gesto ou situação... que se perpetua no 
            tempo, por se alimentar de um conhecimento ou de um valor essencial 
            à cultura de determinado grupo humano, podemos ver nos heterônimos ( 
            e não só em Mensagem ) a intenção do poeta em criar, em cada um 
            deles, um pequeno universo mítico. Ou melhor, um "universo" que 
            representa uma determinada maneira de ver, pensar, fazer ou conhecer 
            que é essencial e verdadeira em-si-mesma, embora possa ser 
            conflitante com as maneiras representadas nos demais.  
                                                                        
          
            Embora verdadeiro e 
            válido-em-si, o universo do homem rústico, ingênuo e comum defendido 
            por Alberto Caeiro, se chocará com a "verdade" defendida no universo 
            de Ricardo Reis ou no de Álvaro de Campos, e vice-versa. No entanto, 
            facilmente se verifica que nenhum desses "universos políticos" 
            existe de maneira arbitrária ou lúdica, isto é, dependente apenas da 
            fantasia de seu autor. Mas, ao contrário, são autênticos "universo 
            de valores" construídos poeticamente, cujos fundamentos são 
            perfeitamente reconhecíveis como "verdades" atuantes em determinadas 
            épocas.  
                                                                        
          
            Seja valorizando a 
            concretude do Real e do visível, seja tentando sondar o invisível 
            ... a poesia fernandina é bem eloqüente como fenômeno de 
            modernidade: exacerbando a responsabilidade de conhecer e de dar a 
            conhecer que o Romantismo lhe impusera como tarefa, a linguagem 
            poética, neste século, empenha-se não mais em imitar ou representar 
            a realidade conhecida, mas em transfigurá-la, para que o novo que 
            nela está oculto, transpareça. Poesia, sendo expressão de vivências, 
            sensações ou de pensamento é, acima de tudo, um fenômeno de 
            linguagem.  
                                                                        
          
            Daí que aos 
            diferentes universos heterônimos correspondam diferentes processos 
            de composição poética e diferentes linguagens. A poética fernandina, 
            se aplica bem o que H.Lefebvre afirmou acerca de Baudelaire e 
            Rimbaud, como poetas da modernidade:  
  
                                                                        
          
            
            "(neles) a linguagem humana se quer mundo e a palavra, criadora 
                                                                        
          
            de mundo. A 
            poesia e o poema (enquanto objeto, —reunião de 
                                                                        
          
            palavras) se 
            dizem enigma revelado do mundo, ao mesmo tempo 
                                                                        
          
            humano e 
            sobrenatural. Acima da voragem do coração, acima dos 
                                                                        
          
            abismos cósmicos, 
            recusando uma beleza pré-existente, o poema 
                                                                        
          
            será o objeto 
            transparente, cristal que se basta e que, todavia, 
                                                                        
          
            
            resume o mundo refletindo-o na sua pureza.  
  
                                                                        
          
            A poesia proclama o 
            primado da linguagem, sua possível perfeição, auto-suficiência. Na e 
            pela linguagem criadora ( poética ), dualidade, cisão, dilaceramento 
            ( entre o ser e o real ) se resolvem. O ideal e o real, o abstrato e 
            o concreto separados, tradicionalmente, agora se encontram. O verbo, 
            enfim, vai-se fazer carnal e sensível, a carne e o sensível se 
            metamorfoseiam em verbo. É a magia, é a Alquimia do verbo."  
                                                                        
          
            Em essência, foi 
            essa a intencionalidade básica da poesia fernandina: consumar em sua 
            palavra a "alquimia do verbo", transubstanciar em palavra a verdade 
            do real, intuída por determinadas sensações. E, pois, o poema o que 
            importa, e não, a pessoa do poeta, sua identidade pessoal ou sua 
            pretensa verdade pessoal.  
  
                                                                        
          
             
            A "DESPERSONALIZAÇÃO" E A ABERTURA PARA O "SER 
            GLOBAL" : O MUTANTE CULTURAL  
  
                                                                        
          
            É nesse sentido, 
            também, que a despersonalização, como processo de criação 
            desempenhou um papel decisivo na "abertura" para o ser global, 
            ansiado pelo homem contemporâneo, e que, a nosso ver, no 
            sensacionismo de Álvaro de Campos encontrou a sua expressão mais 
            perfeita. Leia-se, por exemplo, "Ode Triunfal":  
  
                                                                        
          
            "Átomos que hão de 
            ir ter febre para o cérebro de Esquilo do 
            século cem,  
                                                                        
          
            Andam por estas 
            correias de transmissão e por estes volantes,   
                                                                        
          
            Fazendo-me um 
            excesso de carícias ao corpo numa só carícia a alma.  
                                                                        
          
            Ah, poder 
            exprimir-me todo como um motor se exprime!   
                                                                        
          
            Ser completo como 
            uma máquina!   
                                                                        
          
            /.../   
                                                                        
          
            Poder ao menos 
            penetrar-me fisicamente de tudo isto,   
                                                                        
          
            Rasgar-me todo, 
            abrir-me completamente, tornar-me passento   
                                                                        
          
            A todos os perfumes 
            de óleos e calores e carvões   
                                                                        
          
            Desta flora 
            estupenda, negra, artificial e insaciável!   
                                                                        
          
            Fraternidade com 
            todas as dinâmicas!   
                                                                        
          
            Promíscua fúria de 
            ser parte-agente   
                                                                        
          
            Do rodar férreo e 
            cosmopolita   
                                                                        
          
            
            Dos comboios 
            estrênuos."   
  
                                                                        
          
            Para além do novo 
            ritmo ou da nova velocidade que o homem tenta alcançar para se 
            sentir em sintonia com o mundo que ele mesmo construiu ( e que agora 
            o ultrapassa ), o que se faz patente, nesse fragmento de "Ode 
            Triunfal", é a ânsia de expansão e fusão que caracteriza o "eu" 
            contemporâneo. Não mais a dicotomia "corpo" e "alma" ou corpo/mente, 
            mas um só corpo-soma: "parte-agente" deste universo espantoso: "Nova 
            Revelação metálica e dinâmica de Deus.", como diz o poeta mais 
            adiante, nessa mesma ode.  
                                                                        
          
            A idéia mais próxima 
            que nos ocorreu, ao tentarmos "diagnosticar" o contemporâneo em 
            Fernando Pessoa ( principalmente, o espetacularmente registrado em 
            Álvaro de Campos ) foi a do "corpo somático" que, nestes últimos 
            anos, vem sendo investigado por fenomenólogos, psicólogos e 
            cientistas de várias áreas ... Por ser uma relação inesperada e 
            insólita que se nos apresentava à reflexão, resolvemos investigar 
            sua possível legitimidade e retomamos o caminho de análise que 
            vínhamos seguindo: o de como Fernando Pessoa resolveu, em poesia, o 
            problema do Conhecimento colocado por sua época. Nessa atitude 
            basilar, víamos ( e vemos ) a principal razão da absoluta atualidade 
            da poética fernandina, hoje, há mais de sessenta anos de distância 
            de seu início.  
                                                                        
          
            Ao perseguirmos, 
            novamente, o esforço inventivo de Fernando Pessoa, para se fazer 
            mediador do universo, através de suas próprias sensações, acabamos 
            verificando que ele se identifica com aqueles pensadores/criadores 
            revolucionários que Tomas Hanna analisa como profetas ou arautos do 
            "mutante cultural" de nossos dias: Kant, Nietzsche, Freud, Darwin, 
            Marx, Kierkegaard, Husserl, Sartre,etc. 
                                                                        
          
            Tendo-se dedicado à 
            leitura e estudos de quase todos esses pensadores ( como suas notas 
            e reflexões o atestam ), Fernando Pessoa expressa em sua produção 
            poética os elementos básicos da evolução-mutação para a qual cada um 
            deles contribuiu de uma maneira. E isso, evidentemente, não porque 
            os tenha lido, mas porque ele próprio foi um desses 
            super-perceptivos que se anteciparam aos tempos.  
            Lida à luz dessa evolução-mutação, veremos que novos aspectos da 
            poesia fernandina podem ser iluminados. E a certa altura, 
            pareceu-nos sobremaneira fecundo ( para posteriores estudos ) que 
            tentássemos compreender essa singular poesia como uma daquelas vozes 
            que, desde o início do século, "profetizaram" o mutante que, nesta 
            segunda metade do século, singulariza o nosso panorama cultural. E 
            assim nos decidimos por esta abordagem, colocando de início a 
            pergunta fundamental: em que consiste esse "corpo somático" que 
            caracteriza o "mutante cultural" deste século, e que já vemos 
            pressentido por.Fernando Pessoa?  
                                                                        
          
            Analisando o 
            fenômeno, T.Hanna diz:  
  
                                                                        
          
            "À medida em que se 
            chega ao fim deste último terço do século 
                                                                        
          
            XX, estamos 
            assistindo ao final de um imenso período da cultura 
                                                                        
          
            humana, e 
            simultaneamente, estamos experimentando uma 
                                                                        
          
            brusca e acelerada 
            mutação em direção a uma cultura humana 
                                                                        
          
            radicalmente 
            diferente. A chave para a compreensão desse 
                                                                        
          
            acontecimento 
            evolutivo é o fato de que fomos bem sucedidos na 
                                                                        
          
            construção de uma 
            sociedade tecnológica. /... / Não a 
                                                                        
          
            conhecíamos 
            anteriormente, nem sonhávamos com ela, mas agora 
                                                                        
          
            que a estamos 
            vivendo, sabemos que quando ocorrem mutações 
                                                                        
          
            culturais em alguma 
            coisa tão inteiramente nova na história 
                                                                        
          
            humana (como a 
            sociedade tecnológica), elas ocorrem 
                                                                        
          
            rapidamente: a 
            mudança evolutiva, em lugar de ser vagarosa e 
                                                                        
          
            imperceptível, 
            torna-se uma mudança revolucionária./.../ 
                                                                        
          
            gerações sucessivas, 
            vivendo nesse ambiente transformado, irão 
                                                                        
          
            elas mesmas 
            transformar-se. Esses mutantes, em termos gerais, 
                                                                        
          
            parecerão os mesmos, 
            mas não sentirão da mesma forma (porque 
                                                                        
          
            os seus corpos 
            estarão respondendo a um novo ambiente) e 
                                                                        
          
            obviamente não irão 
            comportar-se da mesma maneira (pois 
                                                                        
          
            estarão adaptados à 
            nova forma pela qual eles vêem e sentem o ambiente).  
                                                                        
          
            E isto tem sido o 
            impacto inicial da adaptação evolucionária 
                                                                        
          
            revolucionária: os 
            protomutantes são considerados, pela 
                                                                        
          
            sensibilidade dos 
            tradicionalistas culturais, como tendo "mau 
                                                                        
          
            comportamento" /... 
            / Mas enquanto existir a sociedade 
                                                                        
          
            tecnológica, mais e 
            mais mutantes aparecerão a cada geração e 
                                                                        
          
            eventualmente 
            chegarão a dominar. Serão em número suficiente 
                                                                        
          
            para controlar as 
            instituições políticas, econômicas e 
                                                                        
          
            educacionais. Já 
            estão trabalhando. Começam a criar uma cultura 
            humana."   
  
                                                                        
          
            T.Hanna desenvolve, 
            a partir daí uma esclarecedora análise do atual "conflito de 
            culturas" ( não mais, conflito de gerações ), que estamos vivendo. 
            Inicialmente põe em questão os conceitos de moralidade/imoralidade ( 
            tão vivamente presentes na poesia fernandina e que são, sem dúvida, 
            o ponto nevrálgico do conflito social de hoje ), e chega enfim à 
            "novidade" da mutação em processo: o corpo humano. E, a partir de 
            uma cuidadosa e inteligente revisão das "descobertas" filosóficas e 
            científicas que, desde o século XIX, vieram preparando a atual 
            mutação, T.Hanna chega ao "soma" que deve resultar da 
            evolução-revolução em marcha, — um "Eu, ser corporal" em inter-ação 
            com o novo espaço/tempo, e que sentimos muito vivo no eu-que-fala no 
            Álvaro de Campos sensacionista.  
                                                                        
          
            Conforme T.Hanna: 
            "Soma não quer dizer "corpo", significa "Eu, ser corporal"/.../ Os 
            somas são os seres vivos e orgânicos que você é nesse momento, nesse 
            lugar onde você está. O soma é tudo o que você, pulsando dentro 
            dessa membrana frágil que muda, cresce e morre, e que foi separada 
            do cordão umbilical que unia você — até o momento da separação — a 
            milhões de anos de história genética e orgânica desse cosmos. Somas 
            somos eu e você, querendo sempre a vida, e sempre em maior 
            abundância. Somas somos eu e você, irmãos em um envoltório 
            membranoso comum, em uma comum mortalidade, em um ambiente comum, em 
            uma confusão comum e uma oportunidade comum, agora, de descobrir 
            muito mais do que já soubemos a respeito de nós mesmos. /.../ O novo 
            mundo a ser explorado pelo Século XXI é o imenso labirinto do soma, 
            da experiência corporal e viva dos indivíduos humanos. E nós, do 
            último terço do século XX, fomos nomeados descobridores e 
            cartógrafos desse continente somático. Durante as próximas gerações, 
            os indivíduos humanos deixarão de pensar em si mesmos como mentes ou 
            espírito ( em oposição aos corpos ) precisamente no grau em que eles 
            começam a descobrir-se na imediaticidade dos seus somas."  
                                                                        
          
            Isolando os elos 
            mais próximos da complexa cadeia-em-reação que desemboca na mutação 
            atual, T.Hanna analisa o pensamento de Heidegger com a "questão do 
            Ser"; de Nietzsche e a "nova consciência do Super-Homem ou o Homem 
            Total"; de Freud e o "trauma do ovo"; de Marx e a "comunidade dos 
            corpos", etc., etc. E dá ênfase especial à "revolução copernicana" 
            realizada por Kant, como sendo a primeira manifestação da cultura 
            somática que o nosso século está construindo. E conclui :  
  
                                                                        
          
            "... as várias 
            falhas específicas de Kant não são nada em 
                                                                        
          
            comparação com a 
            revelação e a revolução que ele provocou no 
                                                                        
          
            nosso entendimento 
            de nós mesmos e do mundo externo que 
                                                                        
          
            experimentamos. 
            Antes de Kant, havia apenas o mundo: 
                                                                        
          
            soberano, onipotente 
            e magnificente, enquanto jogava luz nas 
                                                                        
          
            humildes câmaras 
            fotográficas humanas, tão dependentes e vazias 
                                                                        
          
            (Descartes). Depois 
            de Kant, a pequena caixa negra já não estava 
                                                                        
          
            vazia nem colocada 
            em humilde dependência: tornara-se plena, 
                                                                        
          
            viva e palpitante de 
            estruturas inexploradas, processos e 
                                                                        
          
            possibilidades. 
            Emmanuel Kant tinha descoberto o soma humano."
             
                                                                        
          
              
                                                                        
          
            E neste momento 
            voltamos a Fernando Pessoa.  
                                                                        
          
            Realmente não parece 
            ser muito difícil identificarmos aquela ânsia incontida de 
            expansão/fusão do Eu com a Totalidade do Espaço/Tempo, que vimos 
            mais atrás, com a preocupação nuclear do pensamento em nossos 
            tempos, que T.Hanna chama de "mutação somática".  
                                                                        
          
            Mais uma vez 
            provando a superioridade da arte em relação à filosofia, na intuição 
            das novas realidades, Fernando Pessoa ( da mesma forma que Joyce, 
            Pound, Eliot, J.L.Borges, surrealistas, etc., etc. ) antecipa, em 
            sua poesia a mutação humano-cultural: a fusão eu/Mundo, hoje 
            abertamente procurada e já em processo de concretização. Essa ânsia, 
            ele a afirmou de mil maneiras.  
                                                                        
          
            Em suas reflexões 
            filosóficas:  
  
                                                                        
          
            "Tudo é sensação. 
            Sensação compõe-se do objeto sentido e da   
                                                                        
          
            sensação 
            propriamente dita." "Arte é a auto-expressão forcejando
              
                                                                        
          
            
            por ser absoluta." 
  
                                                                        
          
            E em sua poesia, 
            como em "Saudção a Walt Whitmann":  
  
                                                                        
          
            "Abram-me todas as 
            portas   
                                                                        
          
            Por força que hei-de 
            passar!   
                                                                        
          
            /.../   
                                                                        
          
            Sou EU, um universo 
            pensante de carne e osso, querendo passar,   
                                                                        
          
            E que há de passar 
            por força, porque quando quero passar sou 
                                                                        
          
            Deus!   
                                                                        
          
            /.../   
                                                                        
          
            Meus versos saltos, 
            meus versos pulos, meus versos espasmos   
                                                                        
          
            Os meus 
            versos-ataques-histéricos   
                                                                        
          
            Os meus versos que 
            arrastam o carro de meus nervos.   
                                                                        
          
            
            Aos trambolhões me 
            inspiro.  
  
                                                                        
          
             
            MAL FERNANDO PESSOA, A DIALÉTICA DE SER  
              
                                                                        
          
            E os meus versos são eu não poder estoirar de viver.
              
                                                                        
          
            /.../   
                                                                        
          
            Não quero intervalos no mundo!
              
                                                                        
          
            Quero a contiguidade penetrada e material dos objetos!
              
                                                                        
          
            Quero que os corpos físicos sejam uns dos outros como as almas
              
                                                                        
          
            
            Não só dinamicamente, mas estaticamente também!"
              
              
                                                                        
          
            Nem é preciso análise para se encontrar nessa torrente verbal, a 
            ânsia de expansão/fusão do Eu com o Mundo, com o Todo, — ânsia que, 
            impossível de ser vivida concretamente, é vivenciada pela palavra 
            poética.  
                                                                        
          
            Um ser em metamorfose, mais pleno, mais completo é pressentido pelo 
            poeta, como aquele que deve e pode corresponder as novas dimensões 
            do mundo-século XX, onde novas regiões se descobrem a cada passo. 
            Não será por acaso que, no poeta sensacionista, proto-mutante, a 
            principal força dinamizadora, desse desejo avassalador de 
            expansão/fusão, seja o erotismo que vibra através de todo o longo 
            poema. E, na verdade, que outra força existe, que dê maior sensação 
            de plenitude do que essa expansão/fusão erótica do eu com o outro ( 
            e consigo mesmo )? Talvez a força mística, que Fernando Pessoa 
            também desde o início de sua criação poética tentou vivenciar em sua 
            poesia esotérica.  
                                                                        
          
            Esta foi a outra via tentada pelo poeta ( e talvez mais importante 
            que a "sensacionista"), para "reconhecer" outras dimensões de ser e 
            conhecer, ansiadas pelo homem. Via essa que, embora se apresente 
            quase sempre brumosa, mostrando o corpo como exílio ou mergulhada na 
            pré-ciência de vidas anteriores, se identifica plenamente com o 
            romper dos limites procurado pelos proto-mutantes e que, um dia, 
            será natural nos mutantes. Nesse sentido é de-se crer que a 
            dramática dicotomia ( corpo-espírito-universo ) nos serão 
            desvendados, como a unidade essencial que, hoje, só a fé ou a 
            percepção mística podem dar.  
            Que Fernando Pessoa acreditava nessa unidade visceral ( que a 
            cultura somática um dia provará ... ) nos confirma um de seus mais 
            belos poemas, "Eros e Psiquê", onde o poeta desenvolve o conhecido 
            mito do mesmo nome, que nos mostra a Alma despertada pelo Amor. ( 
            Mito da Antiguidade Clássica que se vulgarizou na literatura popular 
            medieval e vive até hoje na literatura infantil na estória da "A 
            Bela Adormecida" ). Além de ser interpretado como uma teoria na 
            alma, o mito Eros e Psiquê tem sido compreendido por muitos 
            estudiosos, também como uma busca do conhecimento. Em Fernando 
            Pessoa, para além de seu sentido espiritualista e esotérico ( onde 
            aquelas duas interpretações confluem ) pode-se perceber claramente o 
            "pressentimento" mutante. 
                                                                        
          
            Leiamos o poema:  
  
                                                                        
          
            "Conta a lenda que 
            dormia 
            Uma Princesa encantada 
            A quem só despertaria 
            Um Infante, que viria 
            De além do muro da estrada. 
            Ele tinha que, tentado, 
            Vencer o mal e o bem, 
            Antes que, já libertado, 
            Deixasse o caminho errado 
            Por o que à Princesa vem. 
            A Princesa Adormecida, 
            Se espera, dormindo espera.  
            Sonha em morte a sua vida,  
            E orna-lhe a fronte esquecida,  
            Verde, uma grinalda de hera. 
             
            Longe o Infante, esforçado,  
            Sem saber que intuito tem,  
            Rompe o caminho fadado.  
            Ele dela é ignorado. 
            Ela para ele é ninguém. 
             
            Mas cada um cumpre o Destino 
            Ela dormindo encantada, 
            Ele buscando-a sem tino 
            Pelo processo divino 
            Que faz existir a estrada. 
             
            E, se bem que seja obscuro 
            Tudo pela estrada fora, 
            E falso, ele vem seguro, 
            E, vencendo estrada e muro, 
            Chega onde em sono ela mora. 
             
            E, inda tonto do que houvera,  
            A cabeça, em maresia, 
            Ergue a mão, e encontra hera,  
            E vê que ele mesmo era 
            A princesa que dormia. 
            (maio — 1934) 
  
                                                                        
          
            A 
            metaforização é clara, pois coincide com a "situação"narrada pelo 
            mito: a princesa adormecida que seria despertada pelo príncipe que a 
            encontrasse, e também todo o caminho da busca. Entretanto, a 
            inversão operada por Fernando Pessoa, no final transformando o 
            "Infante" na própria "Princesa encantada", altera por completo a 
            significação tradicional do mito, e abre uma outra possibilidade de 
            resposta para essa eterna busca do homem. A da expansão/fusão 
            somática que o eu mutante sem dúvida conhecerá ...  
                                                                        
          
            Todo o longo processo da procurarem que o homem está empenhado há 
            milênios, registra-se claramente nesse poema ( "Ele tinha que, 
            tentado / Vencer o mal e o bem" ). E também a certeza de que há o 
            caminho para o encontro final e decisivo ( "Mas cada um cumpre o 
            Destino / Ela dormindo encantada/ Ele buscando-a sem tino / Pelo 
            processo divino / Que faz existir a estrada." ), ao fim do qual as 
            eternas dicotomias se resolverão em síntese ...  
                                                                        
          
            O que resta de evidente, afinal, é que "a estrada existe" para que a 
            humanidade caminhe. Quem a faz caminhar? e para onde? são as 
            perguntas que há milênios vem sendo colocadas e obtendo as mais 
            diferentes respostas da Arte, da Filosofia, da Ciência e da 
            Religião... Na cultura somática ( ou qualquer nome que venha a ter, 
            afinal ... ) haverá, sem dúvida, a síntese que Fernando Pessoa ( e 
            outros como ele ... ) com sua Penalidade pressentiu ser possível.  
                                                                        
          
            Aguardemos que o tempo o revele ... Por enquanto, para meditarmos 
            nas respostas que Fernando Pessoa tentou encontrar, em todos os 
            minutos de sua vida, aqui temos a sua bela e desafiante produção 
            poética.  
                                                                        
          
            Fernando Pessoa foi um super-perceptivo e a preocupação com atingir 
            uma nova consciência-de-ser, de estar-no-mundo e de conhecer está 
            presente de ponta a ponta em sua poesia. Mas, tal como os demais 
            poetas ou pensadores entregues a tal problemática, ele sabia que 
            essa nova "consciência" ou "percepção" não dependia apenas de uma 
            aprendizagem intelectual, — não poderia ser ensinada ou aprendida 
            pela inteligência, mas que resultaria de um processo de 
            amadurecimento interior, de evolução ou mutação: a que resultara da 
            adaptação do homem ao novo ambiente cultural 
            (tecnológico/eletrônico) que ele próprio inventou, construiu e que 
            agora o desafia...  
                                                                        
          
            Tal como a consciência iluminada dos budistas ou zenbudistas, não se 
            trata apenas de um novo entendimento intelectual das coisas, mas 
            principalmente de uma nova vivência, uma nova mentalidade, nova "gestalt" 
            Será a revolução "somática", — a que ultrapassar de muito a 
            "revolução kantiana".  
                                                                        
          
            E para a preparação da auto-consciência que deverá iluminar o 
            caminho, a poesia é um dos grandes mediadores... Como disse Fernando 
            Pessoa: "A finalidade da Arte é simplesmente aumentar a 
            auto-consciência humana." Bem sabemos ( como ele também o sabia ) 
            que arte não é só isso... Entretanto, nestes tempos de mudança, e de 
            rebaixamento geral da cultura essencial ao ser humano, é bom que a 
            encaremos assim...  
  
                                                                        
          
              
                                                                        
          
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