Nelson Hoffmann
Mestre + amigo = parente?
Foi lá, na casa do meu filho Diego, em
Campos Novos. Um dia desses. Chimarreávamos. Dentro de casa. Fora,
sibilava um ventinho com fio de navalha. Por vezes, garoava. Parecia
neve chegando.
Por desfastio, olhávamos velhas fotografias. E outras, nem tanto.
Era mais um jeito de entreter conversa, de esperar que o tempo
mudasse de cara. A friagem penetrava ossos e almas.
Atentei numa lembrança. Franzi a testa em concentração, fitei minha
nora:
— Sinara, deixa ver de novo aquela foto.
— Qual?
— Aquela lá, dos noivos.
Ela passou-me a foto.
— Conhece? - perguntou.
— Não sei. Acho que sim, não sei - disse eu, coçando o queixo.
Ela olhou:
— É a tia Ana.
— Não, ela não. Ele - eu corrigi. E, pensativo: - Eu conheço esse
cara.
— Ah! - a Sinara sorriu. - É o marido da tia Ana.
— Só pode - concordei, ironizando. - Pelo menos, parece que estão
casando. O nome?
A Sinara ficou um pouco indecisa, titubeou:
— É... deixa ver, é... tio, tio... tio Sírio!
A lembrança estalou:
— Sírio!... Sírio Pos-sen-ti!
— Isso! Tio...
Conheci Sírio Possenti no fim dos anos 70, no Curso de Letras, em
Ijuí. Foi meu professor de Lingüística e impressionou-me sempre pela
clareza de exposição e segurança de conhecimentos. Sua tranqüilidade
e fino senso de humor transformavam os intrincados meandros
lingüísticos num prazeroso passeio. Os mistérios da língua viravam
brincadeira. Ademais, Sírio Possenti talvez seja a pessoa de mais
rápido e compreensivo entendimento que eu conheça. Explico: quando
se questionava algo ou algo se explanava, Sírio, de imediato,
percebia possibilidades e nuanças explícitas e implícitas, todas,
numa instantânea visão global que, na maioria das vezes, o próprio
falante sequer imaginava. Um Mestre.
Tornamo-nos amigos. Em 1978, Sírio, junto com o escritor Deonísio da
Silva, veio a Roque Gonzales e proferiu palestra que foi um marco.
Data de então o início do grande desenvolvimento cultural da cidade,
transformando-a em “Capital Missioneira da Literatura”, da Cultura.
Depois, perdemo-nos de vista.
Agora, quando eu menos esperava, o Amigo Sírio envia-me dois livros
do Mestre Sírio: “Por Que (Não) Ensinar Gramática na Escola” e “Os
Humores da Língua”. Este traz um subtítulo explicativo: “Análises
Lingüísticas de Piadas”. Os livros vieram da UNICAMP, São Paulo,
onde Possenti leciona.
À primeira vista, para quem não conhece Sírio Possenti e sua clareza
expositiva, pode parecer que os livros sejam chatos, difíceis,
técnicos. Nada disso! A leitura é gostosa, saborosa. A gente se
diverte. E aprende e descobre segredos. São livros que merecem,
precisam ser lidos por qualquer pessoa que tenha um mínimo de
contato com a palavra e suas formas de uso. E quem não tem?
Comentar os livros, analisá-los? Ah!, não. Essa, não! Abalançar-me
ao Mestre?!
Ora, ora, sou amigo do Mestre...
— ... Sírio Possenti.
— Hã ? - fiz eu.
Era minha nora, a Sinara. Perguntei:
— O que foi?
— É o tio Sírio - ela repetiu. - Sírio Possenti, marido da tia Ana.
Ruminei: marido da Ana, que é tia da Sinara, que é esposa do Diego,
que é filho da Alaíde, que é esposa... Mestre, Amigo...Parente?!
Pela vidraça da janela, vi um sol medroso espiar por entre nuvens. O
tempo clareava.
Remirei a foto, apontei a cara do noivo e comentei:
— É ele, sim. Só que está sem barba; eu o conheci barbudo.
O sol sumiu de novo. Que tempo! O tempo...
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