Nelson de Oliveira
Fortuna
O primeiro livro que eu comprei hoje está sujo e amarelado. O
primeiro livro.
Está.
Sujo e amarelado. Como isso é possível?! Então os livros não são
eternos, é isso? Essa é a verdade da existência: livros não duram
pra sempre?
Comprei esse meu primeiro livro porque me disseram que seria bom pra
mim. Os livros abrem a mente das pessoas, disseram. Não barganhei,
não pedi pra parcelarem a dívida. Tirei a carteira e paguei com
dinheiro vivo. Meu primeiro livro. Em dinheiro.
Isso já faz o quê, vinte, vinte e cinco anos?
As pessoas têm o hábito de escrever o nome na página de rosto dos
livros. Às vezes também anotam a data em que o livro foi adquirido.
Eu não fiz isso e agora não sei mais quando foi que comprei meu
primeiro livro. É, esse aí, sujo e amarelado.
É bom que vocês saibam, que não se iludam, com o tempo a bunda
murcha, os peitos caem, o pau não levanta mais, as rugas tomam conta
do corpo todo e os malditos livros ficam sujos e amarelados.
Comprei meu primeiro livro porque me disseram que livros são
fundamentais. Eu não tinha muito dinheiro na época, por isso comprei
só esse aí, o mais barato que encontrei.
Ainda hoje não tenho muito dinheiro. Tudo o que ganhei nesses vinte,
vinte e cinco anos, eu gastei em livros. Tenho mais de trinta mil
livros e só agora me dei conta de que estão todos sujos e
amarelados. Metade deles já começou a feder.
Me disseram que livros são muito, muito importantes, por isso gastei
todo o meu dinheiro comprando livros. Minha mulher me deixou, levou
as crianças com ela, isso foi ótimo porque assim sobra mais espaço
para os livros.
Só não me disseram que. Ninguém me avisou. Não me disseram que.
Sujos e amarelados.
E mais fedidos do que gato morto.
Depois do meu primeiro livro vieram mais trinta mil. Gastei todo o
meu salário neles. Trinta mil não é muita coisa. Trezentos milhões
sim me deixam de pau duro.
Olhem lá. Já viram construção mais imponente?
Observem a solidez da estrutura, a elegância do pórtico, a leveza
das colunas. Viajei seis mil quilômetros só pra conhecer esse
prédio.
É a Biblioteca, né, a Biblioteca Nacional, não é? Ah, pára com isso,
é sim. Eu tenho muitas fotos.
Mais de trezentos milhões de livros, não sei como as quadrilhas
desta cidade ainda não levaram tudo. Bandido não pensa. Essa fortuna
dando sopa e os babacas assaltando banco, traficando droga.
Eu trouxe duas granadas, seis bananas de dinamite, uma escopeta e um
rifle AR 15. Trouxe tudo isso mas vim sozinho. Não gosto de dividir
nada com ninguém, muito menos livro.
Olha só que beleza, que riqueza. Nem a Casa da Moeda guarda fortuna
maior do que essa. Trezentos milhões. Assim não há cobiça que não dê
as caras.
Isso era o que eu imaginava até hoje de manhã.
Foi quando vi que o meu primeiro livro. Foi hoje de manhã, no quarto
do hotel.
No quarto do hotelzinho sujo e amarelado, de paredes sujas e
amareladas, de cortinas sujas e amareladas, o café fede, o pãozinho
fede, a manteiga suja e amarelada fede.
Idiotas.
Trezentos milhões de livros.
Será que toda essa gente que dá o sangue aí dentro não sabe? Será
que não percebem?
Olha só meu rosto, olha só minha pele. Fiquei sujo e amarelado,
estou fedendo mais do que gato morto. Trinta mil livros não me
salvaram do mofo. Trinta mil livros que comprei com o suor do meu
rosto.
Vocês aí, palhaços. Deixem de ser otários, pra que esse nariz
empinado? Trinta mil livros não me salvaram do câncer, do derrame,
do enfarto agudo do miocárdio. Não me salvaram do mau hálito, do
chulé, da frieira.
Estão vendo este rosto sujo e amarelado, estas hemorróidas?
Trezentos milhões de livros não vão salvar o rabo erudito de
ninguém.
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