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Nelson de Oliveira




Os caça-fantasmas


 

“Correio Braziliense, domingo, 26 de agosto de 1984. Engenheiro é encontrado morto. O engenheiro e escritor Samuel Rawet, de 56 anos, foi encontrado na noite de sexta-feira morto em sua residência, em Sobradinho, vítima de aneurisma cerebral. Segundo o laudo médico, Rawet já estava morto há quatro dias.” Esse fragmento de uma página policial e outros comentários registrados de maneira apaixonada estão na Rapsódia a Samuel Rawet, do Ezio Flavio Bazzo. Detalhe: o Ezio não conhecia quase nada do engenhoso engenheiro, quando sem mais nem menos decidiu rastrear o paradeiro do seu túmulo desaparecido. A investigação durou três meses. A investigação rendeu dezenas de anotações, anedotas, citações, divagações, rápidas entrevistas, recortes de jornal. Reunidas, essas anotações, anedotas, citações, divagações, rápidas entrevistas e esses recortes de jornal transformaram-se num livro de quase cem páginas. O porteiro do prédio onde Rawet morou antes de se mudar para a casa de Sobradinho: “No último ano em que viveu aqui, já estava completamente nervoso. Atirava ovos pelos corredores, falava sozinho e parecia muito agressivo. Devia ter hemorróidas, pois suas calças andavam sempre sujas no traseiro.” Dona Esmeralda, proprietária da casa onde o escritor foi encontrado morto: “Estava sentado no seu pequeno sofá, com uma tigela de sopa nas mãos. Quando os bombeiros arrombaram a porta e o viram, ficaram surpresos com a quantidade de velas e de pacotes de sopa Knorr espalhados pela casa.” Não resta dúvida. A história a seguir é a de um fantasma. E de seus caçadores. De um fantasma que teve o azar de desencarnar no mesmo instante que o do Truman Capote. Em vez do merecido Show de Samuel, tivemos na tevê e nos grandes jornais apenas o Show de Truman.

Não há estrangeiro que não seja estranho, que não estranhe a pátria de partida e, depois, a de chegada. Estranhos em terra estranha a literatura do século passado produziu aos milhares. Tanto no célebre romance de Camus quanto nas Vidas secas do nosso Graciliano, pra ficar só nesses dois exemplos, quem viaja sofre a desagregação física e psicológica imposta, à distância, pelo grupo abandonado e também pela nova comunidade à qual se entrega, tentando, sem sucesso, se integrar. Emigrar é desintegrar-se. Existiriam entidades mais estrangeiras do que essas sombras que partiram para sempre? Existiriam entidades mais estrangeiras do que essas silhuetas totalmente desintegradas, que não abandonaram determinado país ou continente, mas o planeta todo? O forasteiro mais estranho é sempre o fantasma que acaba de retornar. O fantasma que não é turista, que não está apenas de passagem, a assombração que voltou pra ficar.

André Seffrin, com o apoio do Flávio Moreira da Costa, desceu treze lances de escada e abriu a porta do purgatório. Outro fantasma escapou de lá. O fantasma do desagregado castelo da razão. O fantasma do Palácio da Alvorada, Samuel Rawet. Pra felicidade dos que sempre apreciaram os romances góticos e as histórias de assombração, agora essas almas penadas vêm aos montes, em fila indiana. A primeira a reaparecer foi a do Campos de Carvalho (Obra reunida, editora José Olympio). Depois veio a do Rosário Fusco (O agressor, editora Bluhm; ASA: Associação dos Solitários Anônimos, Ateliê Editorial). Em seguida a do José Agrippino de Paula (Panamérica e Lugar público, editora Papagaio). Hilda Hilst também não ficou de fora (Júbilo, memória, noviciado da paixão, A obscena senhora D e outros títulos seus foram relançados pela editora Globo). Recentemente na coleção Risco:Ruído surgiu do mundo dos mortos o inquietante ectoplasma do quase esquecido Jaime Rodrigues (Phutatorius, editora DBA). De súbito o mercado editorial acordou para os transgressores adormecidos. Hoje as editoras estão disputando a tapa o espólio dos autores que, reconhecidos em vida, depois de sua morte foram trancados no escritório silencioso dos indesejados, antipáticos, arrogantes e mal-educados. Fosse ela parida por jovens ou veteranos, até há bem pouco tempo eram raros os editores interessados na literatura mais perturbadora, com menor apelo comercial. De repente a situação mudou: o número de editoras dobrou e agora todos os bons autores, estreantes ou não, vendáveis ou invendáveis, estão encontrando a sua casa. Não falta muito para que outros fantasmas de fama subterrânea — estou pensando na Maura Lopes Cançado, no Holdemar Menezes e no Uilcon Pereira — voltem a circular entre os vivos. Editora interessada nesse tipo de ressurreição há, com certeza, principalmente porque o mercado acordou com fome. É necessário agora que os herdeiros façam a sua parte.

1929 foi o ano em que Rawet nasceu, na Polônia. 1936 foi o ano em que veio para o Brasil, passando a morar no Rio de Janeiro. 1953 foi o ano em que se formou pela Escola Nacional de Engenharia, como engenheiro de cálculo de concreto armado. Para inúmeros críticos, 1956 foi deveras marcante. Sobre esse breve período de tempo Wilson Martins escreveu: “Se 1956 foi o ano de Mário Palmério (Vila dos Confins), de Bernardo Élis (O tronco), de Geraldo Ferraz (Doramundo) e Guimarães Rosa (Corpo de baile e Grande sertão: veredas), foi também o ano de Campos de Carvalho (A lua vem da Ásia), cujas experiências narrativas mostravam que havia nas vinhas do Senhor veredas muito mais numerosas e variadas que as de Rosa, e, aliás, inteiramente diversas.” 1956 foi também o ano da estréia em livro do calculador de concreto e concretudes, Samuel Rawet. As narrativas reunidas nessa obra de estréia vinham sendo publicadas desde 1951, principalmente no suplemento do Diário Carioca. Pois bem, de 1951, ano da publicação do primeiro dos Contos do imigrante, a 1984, ano da sua morte, Rawet foi um prosador magistral e marginal. Apesar das críticas positivas, seus livros vendiam pouco e, com o passar do tempo, os editores pararam de se interessar por eles. E por sua produção teatral. E pelos seus ensaios. E pelos seus poemas. Mais para o final da vida o autor se desfez de um apartamento em Brasília para bancar a edição dos seus livros.

Como todo marginal autêntico, na pele arredia e desconfiada de Rawet escondia-se um moralista. Por isso foi marginalizado: porque subvertia, contestava, desfigurava e traía a tradição literária e social, judaica ou não. Mas nenhum autor, nenhum artista consegue ser marginal para sempre. Cedo ou tarde, como aconteceu com todos os malditos da História, o tempo e a sociedade encarregam-se de condecorá-lo. Ou de condená-lo para sempre. A condecoração domestica a sua força destruidora. A condenação apaga totalmente seu nome da memória. Então, quando certos demônios retornam do além-túmulo, é inevitável que cheguem aqui meio enfraquecidos, meio diáfanos. Inevitável e compreensível: escaparam da extinção e encontram-se em via de assimilação. Sua transparência se deve a esse processo de canonização, que os converterá de estrangeiro em vernáculo. O processo é mecânico e matemático, não depende da boa nem da má vontade de ninguém. É como se o destino perguntasse: “Vocês querem de volta o Rawet, sabendo que não será o mesmo Rawet dos bons tempos, ou posso descartá-lo definitivamente?” Não, não pode! Nós o queremos de volta assim mesmo.

Danilo Gomes, para quem o Rawet não parecia ser exatamente do tipo caladão e arredio, certa vez perguntou: “Como você se vê? Como gosta de estar no mundo?” A resposta: “Indefinição, incoerência, atitude anticartesiana. Espanto, como elemento positivo, não diante do absurdo, mas diante da boçalidade maciça e da estupidez, esteja onde estiver. Pavor das ideologias no sentido restrito da palavra, pelo que contêm de mistificação e alienação. Literariamente, profissional, isto é, amador por excelência, não vivo de literatura. Acho o escritor profissional o verdadeiro amador. O profissional é o fabricante de livros, o que nada tem a ver com a literatura. Creio hoje que literatura e poesia são sinônimos, são a vocação imposta por determinada atitude diante da vida, isto é, diante da morte.”

No mundo moderno há dois tipos de escritor alienado do sistema capitalista: o boêmio, que foge das obrigações da sociedade tecnocrata escondendo-se nos botecos e nos puteiros, e o emigrante, que foge dessa mesma sociedade refugiando-se em terras distantes e exóticas. O nosso judeu errante pertencia ao segundo time, vagava e divagava em Kelevins, Haifas e Lisboas. Contos e novelas reunidos apresenta sete livros e sessenta e nove narrativas do Malba Tahan do Planalto, do Homem que Calculava nascido em Klimontow. O primeiro conto do conjunto, O profeta, inicia-se com o algazarra no cais causada pela chegada dos gringos melancólicos. Gente que chega de longe, gente desbotada, gente atrelada ao inútil idioma natal. Quatrocentas e tantas páginas depois, no final da curta novela intitulada Viagens de Ahasverus, o protagonista metamorfoseia-se em cão, em seu duplo, em árvore, em riacho, em pedra e em Samuel Rawet. E na pele de Samuel Rawet escreve as Viagens de Ahasverus. E na pele de Samuel Rawet passa a sondar a realidade. Como é fácil notar, praticamente toda a obra ficcional desse solitário caminhante do mundo trata dessa sondagem em movimento. Os protagonistas de Rawet nunca estão parados, jamais permanecem muito tempo no mesmo lugar. Pra quem ama a inércia e detesta viajar, como eu, esses contos tão cheios de coletivos, rodoviárias, ônibus, trens, vaivém extremado, cidades exóticas, estradas, hotéis, movimento veloz, representam desconforto extra. “Cada qual com seu caminho. Malas, sacolas, embrulhos, capas, cestas, tudo amontoado à espera da saída. Na pista, manchas de óleo e sulcos de pneu no asfalto” (A fuga). “Caminhou com firmeza mas sem saber para onde ia. A necessidade de movimento projetava-o como se estivesse bem determinado em seus propósitos” (Crônica de um vagabundo). “O automóvel surgiu bruscamente à frente do seu. Choque. Hospital. A morte da mulher e da filha. O vôo do pombo, o deslocamento do pardal” (A trajetória).

Aliás, é a deambulação por ruas, avenidas e praças do Rio de Janeiro ou de certas cidades egípcias, por Pequim ou pela península a leste do país dos Rujuks, que aproxima os protagonistas de Rawet dos de outros iconoclastas da literatura brasileira: Rosário Fusco, Lúcio Cardoso e Jaime Rodrigues, por exemplo. Essas figuras andantes, essas almas nômades querem tocar e desvendar o mundo, são entidades práticas (emigrantes externos), são o negativo das entidades estéticas (emigrantes internos), que se isolam em bolhas artificiais para evitar o contato com a grosseria de seus semelhantes. Até mesmo o Rawet ensaísta é o andarilho que colhe aqui e ali, nas mais diversas e contraditórias doutrinas — Sócrates, Nietzsche e Sartre —, as pedras de toque com as quais constrói seu mosaico filosófico. Opúsculos como Alienação e realidade, Homossexualismo: sexualidade e valor (edição artesanal, publicada pelo selo Puta que o Pariu) e Angústia e conhecimento: ética e valor apresentam textos tão provocadores quanto os contos e as novelas reunidos pela Civilização Brasileira. São ensaios com jeito de ficção, pós-modernos até a medula, em que biografia e articulação conceitual jogam pingue-pongue com mesa, rede, raquetes e bolinha invisíveis.

Fico feliz em constatar que o interesse dos caça-fantasmas chegou inclusive às universidades. Duas mesas dos Encontros de Interrogação, realizados recentemente no coração econômico do Brasil — a avenida Paulista —, trataram da rixa que sempre existiu entre a crítica acadêmica e a crítica jornalística. Por usarem cronômetros diferentes (o acadêmico trabalha com meses e anos; o jornalista, com horas e dias), as duas esferas sempre se estranharam, a primeira preferindo trabalhar com o cânone e a segunda, com os lançamentos da semana. Mas há visíveis sinais de fumaça, que não são só de fogo de palha, de que a situação está mudando. Sobre a obra do Campos de Carvalho tenho comigo duas dissertações de mestrado e duas teses de doutorado. Sobre a da Maura, duas dissertações de mestrado. Sobre a do Rawet, três dissertações de mestrado e uma tese de doutorado defendida nos Estados Unidos. Aleluia, os portões do cemitério estão abertos! Quê? Que cara é essa? Eu sei, eu sei… A exumação do vampiro é uma estaca de duas pontas. Sim, esse movimento todo finalmente retira o autor maldito do quarto escuro e úmido que ocupava no grande galpão do mercado editorial. Porém nas nossas fantasias mais secretas o fantasma de hoje se apresenta menos apavorante do que o morto-vivo de ontem. Mas não há alternativa: ou isso ou nada.
 

 

 

 

18/03/2005