Nelson de Oliveira
Vida: modos de brincar
0. “Me odeiam! Me odeiam e o que eu fiz? Só cuidei da vida deles por
eles!” “Calma. Não é sua culpa.” Delia fungou e fitou as placas do
teto: “Então de quem é a culpa?” “Deles. Não, não é deles. Não é de
ninguém.” “Tem que ser de alguém.” “A culpa não é deles, Delia! Eu
não vou dizer o que você quer ouvir. É que nossa geração… veio assim
de fábrica.” “Ah! Geração. Como veio essa de nos classificarem por
idade? Isso se chama horóscopo, Yuri, é sistema pra ler nosso
futuro.” (No shopping, Simone Campos)
1. Em meados do século XX, Fernando Ferreira de Loanda organizou o
Panorama da nova poesia brasileira. Essa antologia foi o primeiro
balanço da Geração de 45. Na nota do antologista, as palavras
bombásticas: “Somos na realidade o novo estado poético, e muitos são
os que buscam o novo caminho fora dos limites do modernismo.” De
fato, a poesia desse grupo era a renovação da tradição
parnasiano-simbolista contra a qual, trinta anos antes, reagira a
Semana de 22. Os pontos em comum entre os diversos poetas eram de
ordem estética: a penumbra psicológica, a aversão ao prosaico, a
dicção nobre e os cuidados com a métrica. Mas os pontos incomuns
também não eram poucos. Para saber quais eram, basta cotejar a
poesia de Péricles Eugênio da Silva Ramos com a de João Cabral de
Melo Neto, a de Alphonsus de Guimaraens Filho com a de Manuel de
Barros, a de Paulo Mendes Ramos com a de José Paulo Paes. A
diferença de postura entre esses poetas hoje salta aos olhos.
2. Por mais espantoso que possa parecer, Hilda Hilst, Renata
Pallottini e Carlos Felipe Moisés já foram citados, na juventude, ao
lado dos poetas da Geração de 45. Espere aí, espantoso por quê? Não
é próprio da juventude a movimentação, o ziguezague elétrico? Então,
nada mais natural que os jovens escritores ora estejam aqui ora ali.
Ora dentro ora fora das órbitas que eles mesmos ajudam a traçar.
3. Na década de 90, como nas décadas anteriores, quer você tivesse
sorte ou não, era muito difícil conseguir ser editado.
Principalmente se você ainda nem sequer havia estreado. O alto custo
de produção dos livros fazia os editores pensarem duas vezes antes
de lançar a coletânea de contos, de poemas ou o romance de autores
jovens e desconhecidos. Com o advento da informatização, o custo de
produção do livro caíu, o número de editoras cresceu, assim como o
número de coletâneas de contos, de poemas e romances publicados.
Hoje, caso não tenha a paciência necessária para suportar o lento
processo de seleção das editoras, com mil dólares qualquer novato
publica seu livro de estréia. Livro com cara de gente grande, livro
que sai da gráfica com a mesma qualidade que o das grandes editoras.
A explosão de títulos, cujos estilhaços impressos e encadernados não
param de passar, é o resultado da massificação dos meios de
produção. Será que no coração dessa nuvem de fogo e faísca está se
formando o movimento que no futuro será chamado de Geração Zero
Zero?
4. De que maneira as gerações se formam? É necessário que além de
professarem a mesma fé os autores queiram pertencer a uma geração,
para que esta passe a existir? Ou, ao contrário, basta que
apresentem semelhanças ideológicas e literárias para que,
independente da sua vontade, sejam incluídos em uma? O concretismo,
por exemplo. Ninguém nunca se referiu à Geração Concreta, apesar de
dezenas de poetas das mais diferentes procedências e idades terem
seguido à risca as normas estabelecidas por Augusto e Haroldo de
Campos e Décio Pignatari. Mas todos falam na Geração Mimeógrafo. Ou
na Geração Beat. Outra dúvida: o recorte meramente cronológico é
suficiente para se definir as gerações? É legítimo, no âmbito do
conto brasileiro, falar na Geração 90 ou na Geração 70?
5. Penso que sim. Penso que é legítimo falar na Geração 90 e na
Geração 70. Até mesmo na Geração Zero Zero. Por quê? Porque o
conceito de geração literária é algo tão amoldável, tão ajustável,
que nem é necessário lançar mão da liberdade poética para fazer
valer esses três casos. Aliás, é por ser tão amoldável, tão
ajustável, que esse conceito não deve ser levado muito a sério. No
frigir dos ovos o que vale é a qualidade literária, e só ela. Se tal
escritor pertence ao clube A ou B, isso é secundário. O alarido dos
que, sentindo-se ofendidos e ultrajados — “Não existe Geração 90!
Isso é bobagem!” —, atiraram pedra nas duas antologias que eu
organizei soou patético justamente por isso: muito barulho por nada.
Tempestade em copo d’água. O principal das antologias são os contos
e os contistas. O resto é mero capricho do organizador. Que, também
ele ficcionista, defenderá sempre o direito dos escritores de
misturarem fantasia e vida, vida e invenção. Literatura e liberdade
ficam bem, lado a lado. A questão da Geração 90 perde todo o charme
poético, toda a verve, quando é levada muito a sério. Quando a
polícia é chamada a todo o instante: “Não existe Geração 90! Isso é
bobagem!”. Nessa hora, concordo com Goethe: “Desconfie de todos que
possuem o desejo imperativo de policiar e punir.”
6. Voltando à vaca fria: é necessário que além de professarem a
mesma fé os autores queiram pertencer a uma geração, para que esta
passe a existir? Para mim tanto faz. Os componentes da Geração de
45, da Geração Beat, da paulista Geração 60 (dos poetas tocados pelo
surrealismo), da Geração Mimeógrafo, da Geração da Orpheu e da
Geração da Presença (estas duas em Portugal) faziam questão de
pertencerem aos seus respectivos clubes. Mas hoje ninguém se sente
muito à vontade vestindo a camisa seja de que time for. As formas do
individualismo foram se modificando ao longo das décadas. Mea culpa,
mea maxima culpa. Se dependesse exclusivamente da vontade dos seus
integrantes a Geração 90 jamais existiria. Mas ninguém vai me
impedir de exercer a minha liberdade criativa, seja na elaboração de
um conto seja na de um movimento literário.
7. Então, fazendo uso do direito que todo escritor tem de criar o
seu próprio mundo, a sua própria realidade paralela, passo agora a
rascunhar a Geração Zero Zero. Faço isso de maneira
descompromissada. Por puro deleite. Correndo o sério risco não de
quebrar a cara — isso seria dramático demais —, mas de inventar algo
que de fato já existe. A roda. O café expresso. Ou a própria Geração
Zero Zero.
8. A prosa produzida pelos jovens escritores, por essa moçada que
estreou em livro depois da virada do século, é bastante
diversificada. Nunca se publicou tanto e tão bons livros. Ao ler A
morte sem nome, do Santiago Nazarian, ou Ainda orangotangos, do
Paulo Scott, ou Além da rua, do Rogério Augusto, ou os Contogramas,
do Flávio Viegas Amoreira, ou o Corpo presente, do João Paulo Cuenca,
ou os Dentes guardados, do Daniel Galera, ou o Encarniçado, do João
Filho, ou o Húmus, do Paulo Bullar, ou o Mal pela raiz, do Jorge
Cardoso, ou a Morte porca, do Wir Caetano, ou O cheiro do ralo, do
Lourenço Mutarelli, ou O estranho hábito de dormir em pé, do Paulo
Sandrini, ou O trágico e outras comédias, da Veronica Stigger, ou Os
opostos se distraem, do Rogério Ivano, ou as Ovelhas que voam se
perdem no céu, do Daniel Pellizzari, ou o Pressentimento do umbigo,
do Leandro Salgueirinho, ou a Regurgitofagia, do Michel Melamed, ou
Subitamente agora, do Tiago Novaes, a surpresa e o espanto brigam
com a mais pura inveja. Os novos autores têm apresentado, hoje,
coletâneas e romances de estréia muito superiores aos dos estreantes
da década passada.
9. A atmosfera comum a toda essa prosa exclusivamente urbana é a do
bizarro. Que, tendo em vista apenas a estrutura formal, aparece das
mais diferentes maneiras: ora em linha reta, ora em ziguezague, ora
fragmentada, ora pulverizada e misturada, mas sem jamais perder a
sua consistência bizarra. Isso logo de saída resolve o
cabo-de-guerra entre lírica e sociedade, conforme discutido por
Adorno e tantos outros. A propensão para o nefasto, para o sinistro,
para o agourento, afasta desses novos autores o dilema sofrido pela
maioria dos artistas desde que o mercado editorial se estabeleceu:
produzir para as massas ou para a elite? Vender trezentos mil
exemplares ou só trezentos? Todos eles, consciente ou
inconscientemente, escrevem para a pequena elite intelectual da qual
eu e você, querido leitor, fazemos parte. Porque escrever para o
leitor médio, ingênuo e de gosto pouco apurado, está fora de
cogitação.
10. Em todos os livros citados quem dá as cartas é o grotesco, o
perverso, o escabroso, o hediondo. Nesse mundo desconcertado não há
heróis nem grandes exemplos de conduta, há apenas figuras física e
moralmente malformadas, mutiladas, debilitadas, abortadas,
aberrantes, doentias, demoníacas. A alucinação, a demência, a
malemolência, as obsessões, a falta de caráter e os piores vícios
minam o espírito, destroem a harmonia, corrompem a sociedade. Os
seres humanos, quer vivam na periferia quer nos bairros nobres, são
criaturas pequenas, tolas, criminosas, ignorantes, sempre
massacradas pelos instintos mais baixos. Pela ganância, pela
luxúria, pela cólera. A absoluta convicção de que tudo é vão, de que
tudo é vazio, de que as pessoas são só marionetes, de que as suas
angústias, as suas alegrias e as suas ações são apenas fatias de
pesadelos, é a única convicção nesse mar de insegurança e dúvida.
Tanatos, senhor dos suicidas, encampou todo o território de Eros,
que, acuado, resume-se agora ao sexo violento, frenético,
insaciável. Se há beleza e equilíbrio no mundo, isso não é para nós.
É para os hamsters, as iguanas, os animais do zoológico. Porque no
momento em que nos tornamos seres racionais tudo desandou. Um filtro
cinza se interpôs entre nós e a realidade, que se tornou estranha,
corrupta, traiçoeira. Ao menos é o que esses jovens autores se
esforçam em demonstrar.
11. Essa é a minha Geração Zero Zero. A geração do bizarro. Quem não
estiver satisfeito, que crie a sua. Ou desconverse, mude de assunto.
Pra que perder tempo com isso? Como eu já disse, esse passatempo
beira a total irrelevância.
12. Hoje a maior plataforma de lançamento de novos autores são os
blogues e as revistas eletrônicas. Muitos dos jovens, cujos livros
fazem sucesso entre os críticos e os leitores refinados, começaram
publicando primeiro na internet. Essa constatação possibilita outra
linha de raciocínio, outra forma de juntar os pontos no céu noturno.
Seguindo os links mais instigantes, não é difícil fazer surgir a
constelação da Geração Web, da qual fazem parte Alexandre Soares
Silva, Cardoso, Cecília Gianetti, Clarah Averbuck, Jorge Rocha,
Índigo, Mara Coradello, Simone Campos e tantos outros.
13. A capacidade de subverter as próprias idéias, de rir dos outros
mas principalmente de si mesmo, era bastante louvada entre os sábios
da China antiga. Sorte nossa que ainda há gente que valoriza os bons
trocadilhos. A idéia nasceu na Mercearia São Pedro, depois de muitas
garrafas de cerveja. Na roda, Marcelino, Joca, Bressane, Ivana… A
idéia: uma coletânea de contos ambientados nos botecos de São Paulo,
escritos pela ala marginal e boêmia da Geração 90. O título da
coletânea? Geração nojenta. Oswald de Andrade não teria feito
melhor.
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