Nicodemos Sena
Fortuna Crítica: Ronaldo Cagiano*
Um novo olhar sobre a Amazônia
(Jornal Opção Cultural,
13/07/2003, Goiânia)
Ganhador do Prêmio Lima
Barreto-Brasil 500 anos, da União Brasileira de Escritores (UBE) com
o romance “A Espera do Nunca Mais” (Editora Cejup, Belém, 1999, 874
p.), o paraense Nicodemos Sena estreou em alto estilo, demonstrando
o vigor e a consciência estética dos veteranos. Sua carreira
literária começa calcada em um referencial estético distinto.
Nesse caudaloso romance, que faz o
meio-termo entre a ficção e a realidade, o autor se esmera numa
linguagem que poderia ser caracterizada por alguns como simbólica do
regionalismo amazônico, nos moldes de transposição ou releitura
roseana da vegetação e dos rios do Norte. No entanto, qualquer
rotulação seria imprópria, em razão da particularidade de uma
proposta ficcional que tem elementos de saga heróica e de
quixotismo, na medida em que explora, numa linguagem tão densa
quanto poética, a realidade cabocla da selva, um sertão bastante
diferente da crueza e dos sofrimentos de regiões geográficas hostis
pelo clima e pela geografia, como aqueles contados por José Lins do
Rego, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa.
Na narrativa de Sena, a linguagem
resiste aos conhecidos clichês regionalistas e desloca-se, com
especial fluência e jorro imagético, para uma outra realidade
fática, em que o discurso desvia-se da retórica limitadora — e
muitas vezes pastichizadas — das prosas similares contemporâneas,
para projetar um outro sentido, um outro modo de escrever sobre a
vida e os costumes da região amazônica.
Em “A Espera do Nunca Mais” não é
o raquítico habitante da seca — sempre em fuga, em permanente
desacordo com a natureza e em constante êxodo — que está
representado neste romance de fôlego. Embora seja outra a gente, os
sentimentos que delineiam suas vidas são análogos, porque se aqueles
lutam contra a causticante realidade de privações buscando a
sobrevivência, aqui, Nicodemos Sena expõe personagens que se debatem
contra outras adversidades, na tentativa de sobreviver ao inferno
verde, a uma densa e rica massa vegetal que tanto os domina, quanto
desperta fascínio.
Não obstante a saga ocorrer numa
região cobiçada e motivadora de engajamento social, político e
ideológico, os personagens desse livro não carregam a limitação de
apólogos da luta ecológica ou porta-vozes do ideal de
sustentabilidade, que seria natural em obra desse jaez, com o perigo
de cair na pieguice sentimentalóide, e aí a literatura estaria em
segundo plano, cedendo espaço à sedução da denúncia e descambaria
para o enfoque histórico-sociológico. Há uma autonomia, um certo
grau de independência da narrativa, que coloca o homem e os
obstáculos da vida na floresta como leitmotiv.
Ambientando numa época em que a
consciência ecológica ainda engatinhava, o romance compreende os
anos simbólicos da década de 50 passada, encontra a ditadura militar
pós-64 e vai tecendo com habilidade e desenvoltura outras histórias
que se interpenetram, vão se amalgamando de uma maneira vertiginosa,
num fluxo de consciência e ação, cujos protagonistas fazem, na
verdade, uma interpretação do modus vivendi e das condições numa
região em que a pobreza não é tão contrastante com o fausto e a
riqueza dos bens e belezas naturais.
O que sobressai é o contraponto
entre culturas e valores. E numa época de transformações velozes, os
diversos agentes da história local se confrontam, motivados pela
urgência de uma sociedade em franco processo de evolução, sobretudo
com os tentáculos de uma nova era — a industrial e a eletrônica —
provocando um escalonamento brutal de valores. O caboclo, o índio, o
homem branco, o extrativista se vêem, lentamente, cooptados pelos
novos tempos e aí se firma um embate avassalador da tradição e do
arcaico com a modernidade e as mudanças. O autor registra essa
metamorfose, deixando entrever as repercussões sociais e humanas na
vida de um povo que, lenta e dolorosamente, presencia o enxerto das
novidades e a amputação de seus costumes. Traduz, às vezes com a
tinta da fantasia e do supra-real, um ambiente monumental, uma
atmosfera mítica e exponencialmente perturbadora, porque retrato do
homem em sua relação com seu mundo e suas transformações.
Nessa história de citações
belíssimas, poéticas e vertiginosamente realistas da Amazônia,
personagens como Gedeão e Diana traduzem fielmente essa geografia
humana e social com seus instigantes processos de relação. Diante de
uma paisagem que condensa mistérios arrebatadores, o homem cria seus
mundos e neles projeta-se oniricamente, expande fabulosamente seus
desejos materiais e afetivos.
A Região Norte continua intocada
em muitos pontos, mas o homem continua a abrir feridas na selva. Há
muito espaço para conhecer essa realidade marcada de nuances e
misticismo. Muitos têm tentado interpretar esse povo e sua região,
como Márcio Souza, Dalcídio Jurandir, Thiago de Melo e Ferreira de
Castro, que nos legaram obras antológicas sobre a região. Sem
demérito para eles, creio que Nicodemos Sena ousou na força da
linguagem e no desenrolar das tramas, com isso pretendeu (e alcançou
sobejamente) formular um diálogo com a natureza desafiadora de uma
região muito explorada (e agredida) pelo homem e pouco visitada pela
literatura. O autor abriu mais uma picada, numa perspectiva
reflexiva e conceitual sobre a realidade dos habitantes amazônicos,
ajudando-nos a desvendá-la e repensá-la, dentro de uma preocupação
humanista e sob um prisma questionador e filosófico, sem, contudo,
cair no desbunde alucinatório e exacerbado das lendas nem deixar-se
conduzir pelos estereótipos de um regionalismo mascarado.
*RONALDO CAGIANO é escritor mineiro
radicado em Brasília, autor de “Canção Dentro da Noite”, entre
outros.
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obra poética de Ronaldo Cagiano
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