Nicolau Saião
Algumas palavras
Apeteceu-me
começar esta breve introdução com – para título – uma frase mais ou
menos assim: bichos, meus semelhantes. Ou assim: os
bichos, nossos irmãos de mundo. Meus irmãos, teus irmãos, leitor
que me esquadrinhas a prosa. Mas tive receio de ser mal
interpretado. Ou antes: não tenho vontade de que algum dos que me
lêem me considere de alto a baixo com uma expressão desconfiada.
Irmãos? Semelhantes? E me dirijam depois uma interpelação acerba:
porque no rol está o porco e a barata, o macaco e a serpente, o
rinoceronte e o porco-espinho – ao pé de outros mais estimáveis ou
mesmo respeitáveis como a carriça, o porquinho-da-índia, a águia, o
elefante, o leão…
Apesar, por outro
lado, de eu ter de saber que o verdadeiro leitor é sempre uma mescla
de aventureiro mental e de homem de brios, com todos os sentidos
alerta para aquilo que lhe chega dos quatro pontos cardeais.
À puridade vos
digo e vos juro que pelo que me diz parte não me caem os parentes
na lama, expressão lusitana que evidentemente significa que com
isso não me sinto diminuído por algum bicho ou algum homem de letras
me colocar ao nível dum animal. Tenho um cão a quem chamo
frequentemente filho – provocando, quando pela primeira vez
disso se deu conta – o riso admirado e algo jocoso de minha neta
Mariana – ou meu lindo menino. E todavia garanto-vos que não
sou um maníaco dos animais, não partilho com a personagem do grande
Stefan Zweig no seu admirável “Três paixões” o amor exaltado dos
bichos de companhia. E se o caso do meu cão é um caso particular
(coisas de parentesco profundo, digamos) também vos asseguro uma
coisa: tenho meditado muitas vezes, comovidamente, naquela frase de
Axel Munthe onde ele refere a imensa solidão dos animais.
Esses que estão no mundo sem saberem que estão no mundo, esses que
vêem o Homem apenas como ameaça ou tempestade ou então como amigo um
pouco vago, um pouco disperso nas horas que eles vão cumprindo sem a
consciência da morte.
Bestiários há
muitos e tem-nos havido sempre: na pintura e na escrita, de foto
avulsa ou mais completa, de Justin von Lennep a Nicolas Guillén.
Passando pelos bestiários fantásticos onde oficiaram desenhadores,
pintores, prosadores – muitas vezes para submeterem os seus modelos
a exemplaridades pouco exemplares: estou a lembrar-me duma dessas
cadernetas de cromos que os garotos coleccionam, que uma vez vi na
adolescência, onde apareciam vestidos como pessoas cães, camelos,
tigres, ursos, catatuas. Um pequeno museu de horrores…
Sem ser a este
propósito estou a lembrar-me igualmente dum grande contista, o belga
Jean Ray, que imaginativamente muito frequentou o mundo animal. Mas
poderia citar-vos outros autores que aos animais foram buscar o
proveito e o retrato, fotografia a cores ou a preto e branco de
realidades cintilantes para epigrafar conceitos ou esculturas
interiores.
Em Renato Suttana
o bicho, esse animal de muitas faces e muitos reflexos, aparece-nos
como um ser quotidiano. Está ali porque foi de sua condição existir
daquela maneira e não doutra. Como um homem por extenso, o animal
bipes implume da antropologia, os bichos de Suttana têm as suas
características muito peculiares, muito próprias e estão sujeitos ao
olhar do poeta que lhes descobre o segredo. Têm também o seu
mistério muito deles, para o dizer desta forma. Têm, na
verdade, quase um destino, além de terem quase que um perfil de
cidadãos. Digamos que o poeta, duma forma contida e simultaneamente
exaltante, os revela no seu autêntico ser e, assim, lhes devolve a
dignidade: mesmo que a cobra morda, a barata desagrade, o
rinoceronte ataque cegamente e o leopardo devore à falsa-fé.
Participantes que eram dum teatro de sombras, aí estão eles agora a
existir no nosso mundo – que é o mundo que o Homem pensa e em que se
pensa, o mundo em que até uma pobre carriça pode ter voz pessoal ou
uma trajectória biografada. E não era Rimbaud que nos dizia que o
Homem fala não só por si mas também pelos animais?
Plasmados para a
nossa ilustração e a nossa memória, transfigurados mediante o poema,
eles como que se apresentam e nos saúdam no dia dia, na noite noite,
e nos endereçam um aceno de esperança: porque é ao entendermos o
Outro (e que outro mais outro pode haver que um animal, um
bicho?) que melhor nos vemos, nos descriptamos e nos conhecemos, nós
que para todos os efeitos somos seus companheiros de planeta, tantas
vezes seus algozes, esperemos que um dia seus irmãos de viagem pelos
tempos do grande Tempo em que alcançámos rosto e trajectória
finalmente dignificada.
Casa do Atalaião de Portalegre, Junho de
2004
Leia Renato Suttana
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