Nilto Maciel
As irreversíveis lavas do Vesúvio
Nunca consegui
esquecer essa mulher que se grudou em meus olhos feito uma cegueira
e tomou o lugar de todas as outras. De minha mãe, das santas de
papel e gesso, das mocinhas fugidias, das heroínas dos compêndios de
História, das personagens de romances, das vedetes do cinema, das
cantoras mortas, daquela com quem vivi quase uma vida. Dentro de
mim, essa mulher ora me acalanta, ora me espreita, ora me sufoca.
Doutras feitas ora se mostra engrandecida, ora se faz sofrida, ora
se enche de vida. Mais além é mero fulgor de sons, quando não me
reclama ou não me espanta.
Depois de tanto
tempo, agora, é como se eu e ela fôssemos o mito eterno e incriado
de uma dor indefinível frente ao desespero ilimitado. No sonho, na
vigília, na dimensão incompreendida da recriação.
Examinei-lhe o
cadáver e persiste ainda em mim a vaga noção de tê-la viva – a mesma
criatura daquele único, passageiro e casual encontro. Como se nos
víssemos para além da vida e da morte – mitificados.
Seu corpo
desfigurado pelo fogo me apavorou sempre, naquele dia, depois,
agora. A mim, acostumado a conviver com mortos vindos das mais
variadas formas de morrer. Não por reencontrá-la defunta,
semicarbonizada, mas por tê-la conhecido.
Desvendei-lhe a
vida do embrião à sepultura, numa investigação de celerado. Como se
chamava, onde e com quem vivia, o que fazia e deixava de fazer, seus
brinquedos, suas manias, seu jeito. Anos e anos dedicado a uma
criatura sem biografia. E nada daquilo importava, a não ser para
rebuscá-la inutilmente. Qual a importância de seu relacionamento com
aqueles cabeludos que vagavam por ruas e estradas? Que significado
tem a sua pouca fala sobre paz e amor, os hindus, Sidarta?
De tudo, talvez
só o seu diário valha a pena ser preservado. E para mim, hoje, quem
sabe apenas a última anotação:
“Não sei onde
anda o meu amigo, nem onde dormiu. Pode estar morto a estas horas,
ou preso mais uma vez.”
Sua derradeira
referência ao rapaz com quem andava, seu irmão de solidão, de quem
eu nunca soube o paradeiro.
“De manhã vendi
meu isqueiro a um desconhecido. Toquei-lhe o braço e fiz a oferta.
Disse-me que não fumava e tratou de desvencilhar-se de mim. Tive
ódio e comigo mesma chamei-o de porco, cachorro, miserável.
Procurava com os olhos alguém que me ajudasse, quando ele voltou e
perguntou por que eu queria vender o isqueiro. Olhava para mim com
curiosidade, como se eu fosse um bicho estranho. Durou alguns
minutos nossa conversa e pude observar como se vestia bem, todo de
branco, parecendo ser médico ou enfermeiro. Roupa limpa, corpo
limpo, cheiroso. Senti desejo de abraçá-lo, beijá-lo. E ri de mim
mesma, de minha tolice.
Falei de minha
fome, da necessidade de dinheiro para comprar comida. Não pensasse
besteiras, podia confiar em mim, o isqueiro me pertencia de verdade,
não costumava roubar. Meu lema era só paz e amor. Disse ainda uma
porção de coisas, enquanto ele apenas ouvia, metia as mãos nos
bolsos, perguntava quanto eu queria pelo isqueiro. Notei sua pressa
e tratei de fechar o negócio. Pedi muito, esperando uma reação dele.
Para minha surpresa, no entanto, ele me passou o dinheiro pedido,
recebeu o isqueiro, disse adeus e retirou-se.
Ainda agora
estou pensando no desconhecido. E também no dinheiro que ele trocou
por um isqueiro. Nada mais me restou, porque o dinheiro eu o dei aos
mendigos. E a fome passou. Quero só pensar em mim mesma.”
Termina aí o
diário. E não há qualquer explicação para o suicídio, ocorrido ao
escurecer.
Cabe a mim
completar a história – essa pequena história vivida por ela e por
mim.
Ao deixá-la,
guardei o isqueiro no bolso e, enquanto caminhava para o carro, por
uns dois minutos ainda me lembrei dela.
Ao chegar ao
instituto, desfiz-me do maldito isqueiro. Ofereci-o a uma colega. Um
mal-estar qualquer me indicava ser preciso apagar do espírito as
imagens daquela menina.
Depois de
jantar, informaram-me que me aguardava “um caso estúpido”. Lembro-me
de ter perguntado se havia algum caso delicado naquela porcaria.
“Uma garota se matou, tocou fogo às roupas”, completaram. Nem me
passou pela cabeça a moça do isqueiro. Porém ao ver o cadáver, tomei
um susto. Seu rosto, sua cara apavorada, parecia me dizer: “Cidadão,
quer comprar este isqueiro?”
Enquanto
examinava a defunta, recordei o encontro da manhã. Eu me havia
compadecido daquela pobre criatura e em nenhum momento olhei para
ela com olhos de cupidez. Pareceu-me muito infeliz, não por andar
suja, despenteada, faminta, mas por vender um isqueiro, como se
vendesse o próprio corpo, para matar a fome.
Não tive
palavras de conforto, de ajuda, de socorro, embora haja pensado em
falar das injustiças sociais, do desamparo à infância, à juventude,
às pessoas em geral, fazer um discurso ético e político. Depois
achei por bem apenas ouvi-la e aceitar a sua oferta.
Em determinados
momentos senti que ela desejava uma aproximação maior, vender-me seu
corpo, em vez do isqueiro, tal como está no diário. Ou simplesmente
oferecê-lo de graça, tanta me pareceu sua solidão. Seu olhar
transmitia isso. Eu, no entanto, nenhum desejo senti, não por
repugnância ao estado de seu corpo ou qualquer outro escrúpulo, mas
por estar cheio de outros sentimentos.
Ao constatar o
vazio de seu estômago, tive ímpetos de chorar, gritar, acordá-la,
dar-lhe vida. E me senti impotente, inútil, frágil, como se eu mesmo
estivesse morto.
A partir
daquele dia, ela não mais me deixou e, onde quer que eu esteja, ela
me acompanha, minuto a minuto, hora a hora, dia a dia. Aquele último
dia dela cai sobre mim feito o Vesúvio – lavas irreversíveis.
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