Nilto Maciel
Airton Monte, contista
Toda história é
uma metáfora. Uma ou mais. Porque toda leitura implica uma
interpretação. Ocorre o contrário geralmente com as obras
consagradas pelos críticos. Na verdade, uma metáfora pode ser mais
ou menos perceptível. Assim, existe em razão da ótica do leitor.
Em O Grande
Pânico, de Airton Monte, são visíveis a olho nu três histórias
essencialmente metafóricas. Em “A Última Noite” até a personagem
principal tem nome simbólico – Cidadão. É o homem diante do medo
coletivo de desobedecer a norma ou o costume. Alguém tem de se fazer
ovelha negra e pintar a casa de azul, numa sociedade onde o costume
impõe o cinzento. Cor de cárcere, de prisão. O azul simboliza o
firmamento, a vastidão, a liberdade. A atmosfera é nitidamente
kafkiana nesse conto.
O traço marcante
do livro, no entanto, é outro: o drama do homem suburbano, do
marginal, da “gente chinfrim, ralé miúda”. Na mesma categoria estão
os loucos, os alcoólatras, as prostitutas pobres, os pivetes, os
fracassados de todo o gênero. Embora pertencendo todos ao mesmo
mundo, ao mesmo espaço marginal da sociedade, existe uma espécie de
muralha a separá-los. De um lado estão os profundamente angustiados,
os candidatos ao suicídio, os identificados como loucos, e são
personagens-narradores. Seus discursos não chegam a constituir
histórias, embora o contista afirme “que o homem é um ser sedento de
ouvir histórias”. Falam sempre de seus medos (“sou somente um
amontoado de medos”, em “Os Gritos Circulares”) e de seus desesperos
(“O barco vai afundar”, em "Diário de Bordo”).
Quase todos os
contos do livro são histórias bem contadas, dessas que o homem
sempre gostou de ouvir, sem hermetismos e sem rebuscamentos de
linguagem. Não quero dizer histórias pobres, meros “causos”. Pelo
contrário, algumas delas chegam a arrepiar, a causar assombro, de
tão magníficas. Assim são “Manuel Lombinho”, “Domingo, Futebol e
Cachaça” e “Ave Noturna”, sem as quais qualquer antologia brasileira
de contos poderá ficar capenga.
A primeira
delas, assim como “Mulher Só”, parece capítulo de romance. Os
personagens são os mesmos: o mascate Manuel, a puta Laura e
Urucungo. Não só isso: a vidinha miúda de um arraial onde prosperam
os coronéis e seus lacaios e onde se aviltam na miséria as putas, os
corcundas, os deserdados em geral.
Em “Da
Angustiante Espera Causada por um Simples Fenômeno Celeste” há uma
história subjacente. Ela emerge como música-de-câmera, misturando-se
às pequeninas histórias contemporâneas de cada personagem. É a
história do eclipse prestes a acontecer. Então a vida gira em torno
do fenômeno celeste, como se sem ele nada de novo pudesse acontecer
a um e a outro personagem.
Alguns contos
poderiam estar fora do livro: “Fábula algo Engraçada”, “Cotidiano” e
“Pega o Ladrão”. Os próprios títulos os denunciam. O primeiro é uma
historiazinha de pivetes, embora não lhe falte beleza poética. O
outro pode ser considerado apenas a reunião de quatro historietas
cujo tema é a morte. O terceiro, embora sátira do sentimento de
insegurança individual na cidade grande, não passa de história algo
engraçada.
Proposital ou
não, Airton Monte cometeu um deslize – o de utilizar duas vezes a
mesma idéia poética, a mesma figura, quase a mesma frase. Em “Os
Gritos Circulares” escreveu: "dentro da mala o passado dobrado em
dois como uma calça velha”, e na última história: “na mala surrada a
vida dobrada em dois como uma roupa usada”.
Encerra o volume
um conto longo, positivamente fragmentos de um romance: a quarta
parte do livro. Vale como história curta, mesmo dentro da concepção
do contista.
Apesar de tudo,
O Grande Pânico faz de Airton Monte não apenas um criador, mas um
escritor que sabe manejar a palavra, até mesmo o adjetivo.
Esse mundo à
parte, que habita os diários sensacionalistas, os bares, os cabarés,
as ruelas escuras, os subúrbios, os manicômios, é, na verdade, um
mundo dividido em si mesmo.
Nenhum
ficcionista cria tipos, inventa personagens. Se o fizesse, estaria
abstraindo o homem e fracassaria como escritor. O que realiza é,
primeiro, uma descoberta, porque o ser humano é sempre terra
desconhecida. Descobre o seu semelhante. Crê na sua existência, como
os navegadores antigos acreditavam nos mundos novos. E parte no seu
rumo. E o explora, sozinho. Penetra-o, confunde-se com ele.
Revela-o. O ficcionista é um revelador. De mundos reais e quase
sempre ignorados.
Airton Monte
aproxima-se mais do ficcionista revelador do que do falso criador.
Como Dostoievski. Delineia a psicologia dos tipos descobertos. Como
Machado de Assis. Veja-se Felizbelo. E quase todos os personagens de
Homem Não Chora. Seres humanos desesperados no amor
impossível, em “O Enforcado”. Farrapos humanos que teimam em viver
ou perdem toda e qualquer esperança. Cegos, mendigos, prostitutas
decaídas, cornos, devoradores de moscas, tarados, velhos,
solitários, assassinos arrependidos e idiotizados, loucos, como
Berta, todos loucos, pois a loucura não é senão sentir-se sem rumo,
sem esperança, sem saída.
Apaixonado pelas
pessoas, Airton Monte apaixona-se também pelas suas personagens. A
umas dedica a mais mordaz antipatia. E as torna feias, monstruosas,
irracionais. De outras, sente a mais santa piedade. Por serem também
miseráveis, criaturas sem eira nem beira, catrevages de carne e
osso. Mesmo quando o personagem-narrador se identifica com ele,
quando narrador e protagonista se confundem, e o texto se transforma
num choro de bêbado, num grito de aflito, num discurso de
angustiado.
O narrador, como
o poeta, é um curioso, um escavador, um repórter. Um vagabundo à
cata de aventuras, de pessoas, de fatos. Para disso extrair a
matéria-prima de suas “criações” ou “criaturas”. Os outros não
percebem nada, porque, no máximo, vêem. Ou não vêem, porque não
buscam ver. Nunca verão Felizbelo. No entanto, Airton Monte o viu,
porque o procurou, o descobriu, o revelou. Delineou-o por dentro e
por fora, feito um deus.
Não se revela o
homem, porém, com a linguagem jornalística, seca, sem vida, sem
paixão. Pois a linguagem de Homem Não Chora é poética,
ritmada, ondulante, viva, apaixonada. Como no conto “Velho ao
Telescópio”, talvez um dos mais poéticos e inventivos contos da
literatura brasileira.
É quase certo
tenham sido os contos reunidos em Homem Não Chora escritos ao
longo de alguns anos. Nuns, o contista parece deixar com que as
palavras se esparramem sobre o papel, como numa confissão, numa
elegia, num pranto poético. Noutros, se adstringe a um enredo e faz
narrativa. É o caso de “Atrás de Cada Porta Tem um Sonho”. Aliás, o
mais longo do livro. E, como no primeiro livro de Airton Monte –
O Grande Pânico –, alguns contos são profundamente metafóricos,
repletos de simbolismos. Em “Os Mercadores” vislumbra-se a
importância da tragédia grega na sua formação. Em “O Sábio Haroldo”
os personagens se locomovem num ambiente kafkiano, que tanto pode
ser um asilo de loucos como uma micro sociedade totalitária, onde se
fabricam loucos, feras ou simplesmente se adaptam indivíduos a uma
brutalidade instituída. E desde o lar, passando pela escola e
chegando ao local de trabalho, o que tem sido a nossa sociedade?
Um dos contos
mais estranhos do livro intitula-se “Pequeno Interlúdio para o
Desespero”. E por que estranho, se todo o livro é isso que diz esse
título? O tempo parou para Maria. De repente todos os de sua casa
viraram estátuas. E também ela. Esse conto vale por todos os
protestos e gritos feministas.
Em outras
histórias do livro encontramos situações igualmente estranhas, a
exigirem do leitor reflexões mais demoradas. Num deles o contista
fala mais metafisicamente do homem: “Compreende, afinal, e quase
fica louco, que existem vitrines separando as pessoas entre si e
somos todos manequins se olhando em silêncio, impassíveis
testemunhas e cúmplices.” (“Vitrines”, p. 14). De uma simples
atitude, embora própria de um alienado, revela Airton Monte um tipo
e, a partir dele, discute a condição humana. Em apenas duas páginas.
Incrédulo diante
do homem, o contista vasculha as vísceras de uma sociedade
embrutecida e revela criaturas que os mais crédulos pensavam
existirem apenas no reino da fantasia. Embora o cachorrinho de
madame de um dos pareça mais mitológico do que real. Nele Airton
Monte se revela um criador. Ou um recriador, porque nem assim se
confunde com os falsos criadores, os que nunca viram de perto, de
bem perto, o ser humano.
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