O primeiro livro de contos de Juarez Barroso intitula-se Mundinha
Panchico e o Resto do Pessoal (1969), ganhador do Prêmio José Lins
do Rêgo, do ano anterior; o segundo, Joaquinho Gato (1976). São
narrativas longas quase todas, algumas com feição de novela. Nelas,
assim como no romance Doutora Isa, predomina a linguagem oral do
campo e, em menor escala, dos subúrbios. Em conseqüência, a maioria
dos dramas se localiza no meio rural (Serra de Baturité). Em uns
poucos (naqueles situados em Fortaleza, ou seja, nos contos da
segunda parte – “Os Hereges” – do primeiro volume) o ambiente é
urbano. Os personagens são sempre tipos, quase todos serranos:
pequenos proprietários rurais, mulheres fortes, homens valentes e
vingativos. Também os tipos suburbanos, como as prostitutas, os
operários, os cachaceiros, carecem de profundidade. As histórias
apresentam dramas pessoais e familiares quase sempre trágicos, mesmo
quando o humor se faz presente.
A linguagem oral do campo irá se manifestar em maior escala no
segundo livro, cujos narradores são protagonistas ou testemunhas. No
primeiro livro predomina o ponto de vista de narrador em terceira
pessoa. Em “Estória de Seu Armando e de Seu Amor” a oralidade da
linguagem matuta se revela apenas nos diálogos. Na novela “Estória
de D. Nazinha e de Seu Cavalo Encantado” também nas falas dos
personagens a linguagem oral do campo é visível: “Taí” (Está aí),
“Dextá” (Deixa estar), “Jouviu?” (Já ouviu?). Em “Um Tal de Pedro
Amorim”, do segundo volume, a oralidade é mais evidente. O narrador
onisciente narra e “deixa” os personagens falarem ou dá voz a eles.
As falas se superpõem, como no trecho seguinte: “Quantas vezes,
caboclo, quantas vezes?” (Fala de Seu Aprígio) (...). O narrador
retoma a palavra: “A ponta da faca à procura da goela, acelerando os
soluços, ai, ai, ai, que a confissão aí vem, pelo amor de Deus, Seu
Aprígio, foi só uma vez” (...), e sua fala se confunde com a do
outro personagem.
O primeiro livro é dividido em duas partes: “A Sagrada Família”,
composta de três histórias ou estórias, e “Os Hereges”, de seis.
Naquelas, o ambiente rural; nestas, o urbano (Fortaleza). Em
“Estória de Seu Armando e de Seu Amor” o primeiro ato se atém ao
velório do protagonista, em sua casa, num sítio. No segundo, em
flashback, são narrados momentos da vida de Armando: na cadeira de
balanço no alpendre olha para o baixio, o açude, a torre da igreja,
os telhados da cidade, a fábrica de cachaça, as moendas etc.
Referências a cidades do Ceará são freqüentes: Guiúba, Pacatuba,
Redenção. Em “Estória de D. Nazinha e de Seu Cavalo Encantado”
também: Palmeira, Pacoti, Cruz do Lajedo, Quixadá, “em baixo ou em
cima da serra”. E toda a trama envolve um cavalo de montaria em sua
vida no campo. Em “O Trato” vê-se um jumento pastando na praça de
uma cidadezinha. Um sapateiro bate sola. Homens jogam bilhar. Antes
“tudo era o sítio do Coronel Tomé, um mangueiral só, cortado pelo
riacho.”
A parte denominada “Os Hereges” traz a informação: (Sitiados na
cidade de Fortaleza). Vêem-se “ônibus lerdos”, um automóvel bonito,
fala-se em chatôs. Bairros da capital cearense são mencionados:
Benfica, Pan-Americano, Campo do Pio, Aldeota, Jardim América,
Montese, assim como logradouros: Rua Júlio César, onde vivia
Mundinha Panchico e o resto do pessoal, isto é, as meninas do chatô.
Clubes de futebol também: Ceará e Ferroviário. Nenhuma menção ao
Fortaleza.
Os personagens de Juarez Barroso são tipos comuns ao espaço rural
cearense e suburbano. Há também caricaturas ou tipos deformados. O
velho Armando Chaves, dono de fábrica de cachaça, em atrito com a
família, em razão de um relacionamento amoroso com uma cabocla
(“Estória de Seu Armando e de Seu Amor”). Dona Nazinha, seu cavalo
encantado e o marido humilhado, que se rebela e se vinga,
maltratando o animal durante uma noite inteira. Duda e Geraldo,
matadores de Pedro Lopes, em vingança pela morte do pai. Expedito
(“O Ex-Operário Expedito em Sua Maior Felicidade”) é talvez um dos
personagens mais bem pintados da obra de Juarez. Desde sua chegada
ao bairro onde morava, num belo automóvel de praça (antecessor do
táxi). O início da farra: “Bote toda a cerveja que você tiver aí pra
gelar e traga logo uma pra mim.” A chegada dos amigos e conhecidos.
O convite à bebedeira. A mão aleijada (“o corrupio da serraria lhe
cortara dois dedos”) sobre a mesa, aquela “jóia cara” que lhe
rendera uma fortuna (o seguro). Sim, ele, ex-operário, um homem
anormal, com apenas três dedos na mão, sentia piedade dos outros,
dos normais, dos não-mutilados, uns pobres-diabos: “O cabo era como
os demais, cinco dedos em cada mão, coitado.” A noite passa, os
convidados cochilam, vão embora, e ele, sozinho de novo, volta para
a casa pobre, a mulher preocupada com o aluguel atrasado, a conta da
bodega, as roupas dos meninos.
Um dos personagens mais estranhos de Juarez é Japi, de “Isaura, Japi
e o Marido”. Japi é criatura humana ou canina? “E sai Isaura com o
filho no colo, sentado em seu braço, menino, mas um menino
desajeitado, gordo, mole, espinha curva.” Para o narrador Japi é
humano. Batista, personagem secundário, o chama de cachorro, o que
irrita Japi: “Aquele bicho feio me chamou de cachorro, mamãe!
Cachorro pode ser o pai dele.” Japi tanto não se sente cachorro que
chama o outro de bicho. A fala de Japi pode ser uma voz representada
por Isaura, como o fazem adultos com crianças ainda sem fala e
animais. No entanto, a mulher é impedida de subir a um ônibus com
Japi: “Disseram que não conduziam cachorro.” Ou Japi é realmente um
cachorro ou se assemelha àquele animal. Entretanto, o “pai” parece
estar “ficando doido”, segundo a “mãe”. Ou é ela, Isaura, a louca?
Alguns personagens aparecem em mais de uma história. Mundinha
Panchico, dona de chatô em Fortaleza, é protagonista em “Cantar de
Amigo de Mundinha Panchico”. Em “Incursão na Vida Sentimental de
Alzira Ferreira Lima, Boneca na Intimidade”, apenas personagem
secundária ou mencionada. Dona Nazinha e seu marido, Capitão
Teófilo, são protagonistas em “Estória de D. Nazinha e de Seu Cavalo
Encantado”. Reaparecem, secundariamente, em “Joaquim Bralhador”.
Joaquinho Gato talvez seja o mais importante desses personagens, ora
como narrador, ora como testemunha.
Muitos são os tipos deformados na obra de Juarez Barroso, como o já
mencionado Japi. Merece destaque Joaquim Bralhador, protagonista do
conto homônimo. O narrador não identificado se dirige a um ouvinte
também oculto, chamado ora de senhor, ora de doutor. Depois de muito
falar da serra, do sertão, de sua bicicleta, de burras, em quase
três páginas, dá início à narrativa do homem-cavalo: “E por falar em
cavalo, só houve um vivente, neste mundo, que misturou as duas
naturezas, foi homem e cavalo a um tempo só” (...). A descrição do
personagem, ao longo na narração, é perfeita, precisa. O narrador
não se mostra apavorado ou não infunde pavor, talvez porque se
refira a fatos há muito ocorridos. A misteriosa vida de Joaquim não
é, na verdade, um fenômeno sobrenatural. A história não tem, pois,
ingredientes do fantástico. A deformação mental do personagem é
oriunda de uma doença infantil, “doença-de-menino”, razão pela qual
a narrativa não pode ser vista como uma fantasia, mas como uma
“realidade” natural, embora anormal.
Pequenos dramas pessoas e familiares, às vezes com pitadas de humor,
são a tônica dos contos de Juarez. Esse humor se manifesta mesmo nas
histórias em que a violência humana se apresenta em toda a sua
plenitude. Em “Riqueza” Artur lava a honra dos varões de Baturité,
ao provar a uma prostituta vinda de outras terras que ali havia,
sim, homem que desse em sua medida. O humor se confunde com o
anedótico.
Chegado à velhice, Seu Armando se revolta com os filhos que não
admitem a sua paixão pela negra Assum-Preto. Um desrespeito à mãe
deles. Não se iniciasse a narrativa com o velório do velho, o leitor
se deleitaria o tempo todo com as esquisitices do protagonista. Dona
Nazinha, o Capitão Teófilo e um cavalo pedrês, adquirido a peso de
ouro, vivem uma estranha história de orgulho, com final trágico. A
longa cena da humilhação imposta pelo homem ao animal é das mais
pungentes. Em “O Trato” dois irmãos vingam a morte do pai. Nada de
mistério, tudo muito real.
Em alguns contos situados no campo, o real social pode ser visto
pelo leitor metropolitano como extravagância do escritor ou simples
recriação de anedota folclorizada. O real natural, no entanto, pode
espantar esse leitor, pela crueldade de alguns personagens, como o
já mencionado Teófilo, Seu Aprígio e familiares (no ato de castração
de um homem) ou Seu Zezé, o matador de cururus.
Nas narrativas urbanas, localizadas em Fortaleza, os personagens
vivem dramas de amor, de desavença familiar e pobreza. Em “Seu
Mozart e o Povo da Rua” se narram conflitos de uma família pobre,
seu cotidiano de discussões e bebedeiras. Na história do ex-operário
Expedito mais uma vez a pobreza, o alcoolismo, o dia-a-dia no
subúrbio. O humor permeia as páginas de “Primeira Comunhão de Filha
de Pobre”. Mais brigas, mais bebedeiras, mais confusão, a presença
da polícia. Em “Cantar de Amigo de Mundinha Pachico” o conflito vai
além da família: a protagonista é acusada de abrigar em seu chatô
“uma menor”: “Há tempos que um freguês levava uma menor para lá
quase todos os dias. Mas ninguém sabia que o diabo da menina era
menor, não.” Conduzida numa rádio-patrulha, a caftina é presa, para
alvoroço do povo da Rua Júlio César. Era no tempo em que nas ruas
ainda não se via asfalto: “Lá fora, a areia da rua pegava fogo.”
Personagens do sub-mundo da prostituição também compõem o conto de
Alzira Ferreira Lima.
No segundo livro novos conflitos familiares, talvez mais pungentes
do que os do primeiro. Em “Um Tal de Pedro Amorim (Cantiga de
Joaquinho Gato)” quatro homens se reúnem para supliciar e castrar um
amante de Zila, mulher de Seu Aprígio. O narrador se esmera nos
mínimos detalhes das ações. Aliás, são diversos os narradores, que
se sucedem ao longo da narrativa. Qual o conflito de “Cururu”,
história essencialmente naturalista? No saco da Serra do Rato,
homens capturam sapos, conduzem-nos em caçuás e os vendem a Seu
Zezé. Outros homens se encarregam de extirpar-lhes o couro. É um
primor a narração do ato de crucificar o animal e, em seguida, ainda
vivo, retirar-lhe, a canivete, o couro. No entanto, a simples
narração da morte dos cururus não constituiria um conto. Juarez
Barroso consegue, porém, fazer do narrador um personagem mais
humano, ao pôr um sapo em sua rede.
A presença de animais é fundamental nas histórias em análise. Além
dos sapos de “Cururu”, os cavalos são “personagens” de maior
relevância, como o pedrês de Dona Nazinha. Há, porém, um personagem
muito mais significativo: Joaquim Bralhador, o homem-cavalo. Ainda
menino, após um “febrão”, passou a ficar “feito abestado diante dos
burros e dos cavalos”. Passava horas “numa carreira pulada, trocando
as passadas, de dois em dois, a moda de um galope, pototoco,
pototoco, pototoco.” Sentia-se animal e ao mesmo tempo homem. Com o
tempo, porém, “as duas naturezas começaram a se estranhar, a se
cansar uma da outra”. Até morrer tragicamente, feito “cavalo de lote
que morre estrepado”, “espetado pela barriga, a ponta (de uma
estaca) quase lhe saindo pelas costas.”
Essa não-idealização da realidade, essa fidelidade ao real e ao
natural faz de Juarez Barroso um autêntico neonaturalista, apesar de
alguns traços de humor e até de fantástico em sua obra. Não somente
o real social, mas sobretudo o real natural, especialmente o do ser
humano.