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4.12.1999 |
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de Poesia |
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Osmard Andrade Faria
Rua Luís Pasteur, 100
88036-100 - Florianópolis, SC
oafaria@floripa.com.br
LVI
“Estive doente, doente de tudo;
dos olhos, da boca, dos nervos até.
Dos olhos que viram mulheres perfeitas,
da boca que disse poemas de brasa,
dos nervos manchados de fumo e café.
Estive doente, doente de tudo;
estou em repouso, não posso escrever.
Eu quero um punhado de estrelas maduras,
eu quero a doçura do verbo VIVER!” (*)
Foi ontem que vim?
Os dias não contam, são todos iguais.
É a mesma mesmice que vem e que vai.
Se a porta se abre meus olhos se lançam
nas frestas de sombra em busca do Sol.
E bebem paisagens com sofreguidão.
Se ao menos soubesse onde estou. E porque...
Há homens de branco que passam discretos.
Há moças caladas, fechadas em cruz.
Há longas paredes.
Há portas cerradas e grades pintadas de preto na luz.
Não sei se estou morto.
Nem sei na verdade se ao menos vivi.,
Há gente que passa e repassa e não pára,
e passos que param sem nunca passar.
Foi ontem que vim?
Se todos morreram, que culpa me cabe?
Porque me condenam se tudo morreu?
Matei-os a todos?
Bem sabem que não!
Apenas cansei-me das minhas angústias, do meu desconsolo,
do meu desespero, dos meus ais-de-mim.
Foi ontem que vim?
Se lembra de Stela?
Que linda que era! Que boa que era! Que pura que era!
Que olhos que tinha!
Seus olhos falavam, pediam, choravam,
sorriam, gritavam, gemiam, rezavam.
Seus olhos sofriam, cantavam, morriam;
seus olhos me amavam!
Os olhos de Stela eram tudo que Stel´inda era na vida.
Se lembra de Stela?
De Stela menina?
Stela criança, brincando no parque,
correndo na areia, pulando no muro,
dançando na grama, saltando na ponte,
pezinhos pequenos correndo, bem ágeis,
subindo, descendo, dançando, correndo,
correndo, correndo...
Stela criança brincando no parque, correndo na areia,
seus seios brotando!
E a pernas vibrando, fremindo, saltando,
jogando, correndo, nadando, vivendo!
As pernas de Stela, que vida que tinham!
E agora, onde estão?
E eu mesmo, onde estou?
Foi ontem que vim?
Se lembra de Stela?
De Stela crescida?
Stela correndo nas praças de esporte,
saltando na lide, vencendo barreiras, galgando montanhas;
as pernas de Stela que o povo aplaudia,
que a imprensa exibia, que a vida endeusava,
que a gente invejava, que o mundo cantava!
As pernas de Stela!
As pernas de Stela, que lindas que eram,
que vida que tinham!
As pernas de Stela valsando na festa dos seus quinze anos;
as pernas de Stela marcando o compasso do samba dolente;
as pernas de Stela vibrando na graça do ritmo quente;
as pernas de Stela na ponta dos dedos, girando e saltando,
e dançando e cantando, e marcando o balanço
do ardente balé!
As pernas de Stela descendo do carro
na porta da igreja,
subindo os degraus, andando bem lentas
na marcha do amor,
trazendo o seu beijo aos meus lábios de amante.
Se lembra de Stela?
Do corpo de Stela?
Que foi que fizeram das pernas de Stela?
E agora, onde estou ?
Foi ontem que vim?
Quem são esses homens que passam de branco,
discretos, sombrios, calados, ouvindo?
E as portas cerradas,
e as grades pintadas de preto na luz?
Porque essa gente que passa e repassa
não pára e me diz se foi ontem que vim?
Se lembra de Stela?
Dos olhos de Stela?
Seus olhos falavam, choravam, gritavam, rezavam,
me amavam!
Seus olhos pediam, sorriam, gemiam, morriam,
Viviam!
Os olhos de Stela eram tudo que Stel´inda era na vida!
E os braços de Stela?
Seus braços meninos, fininhos, rosados,
brincando agitados nos montes de areia,
ninando bonecas, vibrando adeusinhos,
chorando sorvetes, bulindo nas coisas,
mãosinhas nervosas quebrando, rasgando,
treinando letrinhas, riscando paredes,
lambidas de balas, lavadas de terra,
juntinhas rezando na hora do sono!
Os braços de Stela,
crescidos agora.
Seus dedos correndo na angústia do som,
vibrando bordões, dançando nas cordas de mil violões,
batendo nas teclas as letras das cartas,
riscando agitadas, pintando aquarelas,
borrando de cores as telas da vida!
De músculos fortes, embora gracis,
levando no salto a leveza da bola,
pulando nas redes, cortando no soco,
lançando a raquete, nadando nas raias
em busca de marcas;
flechando nos alvos, puxando nas rédeas,
seus braços nervosos que nunca dormiam!
Seus braços na praça, na hora vadia,
trançados nos meus a vibrar de emoção.
Seus braços macios, envoltos de branco,
à espera, agitados, dos sonhos a dois.
Seus braços cansados, jogados de lado,
depois dos sublimes folguedos do amor!
Se lembra de Stela?
Se lembra do dia?
Saiu nos jornais!
Stela subindo nas grimpas do monte,
galgando os penedos, tirantes retesos,
os outros seguindo,
seus braços e pernas firmando, escalando,
guindados nas rochas, os cravos fincados,
os grampos cravados, mais cordas firmadas,
mais passos acima.
Stela subindo, vencendo as arestas, já quase chegando
nas beiras do cume.
Se lembra do dia?
E então, de repente, um cravo que quebra,
um cabo que solta,
um grito de angústia,
um corpo que cai!
Saiu nos jornais!
Que dia foi esse?
Tem meses? Tem anos? Será que foi ontem?
Foi ontem que vim?
O resto da história, não deu nos jornais.
Stela na cama, jogada, largada, parada, sem vida.
As pernas de Stela, brincando no parque,
correndo na areia,
pulando no muro, dançando na grama,
saltando na ponte,
as pernas de Stela não brincam, não pulam,
não dançam, não saltam jamais!
As pernas de Stela que o povo aplaudia,
que a imprensa exibia, que a vida endeusava,
que a gente invejava, que o mundo cantava,
as pernas de Stela não andam jamais.
Não andam, não giram, não dançam, não
valsam,
não vibram jamais!
Só os olhos de Stela me falam, me pedem, me imploram!
Só os olhos de Stela eram tudo que Stel´inda era
na vida!
E os braços de Stela?
Seus braços meninos, ninando bonecas,
vibrando adeusinhos, bulindo nas coisas,
quebrando, rasgando, riscando paredes,
não ninam, não vibram, não bolem, não quebram,
não rasgam jamais!
Não levam no salto, não cortam no soco,
Não nadam nas raias, não flecham nos alvos,
seus braços nervosos que nunca dormiam, não vivem jamais!
Stela na cama, nas horas iguais,
na mesma mesmice que vem e que vai,
não anda, não vibra, não fala, não
vive jamais.
Somente seus olhos, me olhando, me olhando...
Somente seus olhos gemendo, chorando,
implorando, pedindo...
Que culpa me cabe se fiz por amor?
E os homens de branco que passam discretos,
Por que me condenam?
E as moças caladas, fechadas em cruz,
Por que me lamentam?
Nas largas paredes há portas cerradas
e grades pintadas de preto na luz.
Não sei se estou morto,
Nem sei na verdade se ao menos vivi.
E a gente que passa e repassa e não pára,
já sabe que fiz o que fiz por amor?
Se lembra de Stela ?
Ela agora é feliz!
Foi por isso que vim?
Foi ontem que vim?(**)
“Estive doente, doente de tudo;
dos olhos, da boca, dos nervos até.
Dos olhos que viram mulheres perfeitas;
da boca que disse poemas de brasa;
dos nervos manchados de fumo e café.
Estive doente, doente de tudo,
estou em repouso, não posso escrever.
Eu quero um punhado de Stelas maduras,
eu quero a doçura do verbo MORRER!” (***)
(*) Poema escrito por um paciente da Dra. Nise da Silveira, internado
no Hospital Psiquiátrico D. Pedro II, Rio de Janeiro, aproximadamente
em 1942 e do qual muitos escritores, (internados do lado de fora) tentaram
assumir a autoria.
(**) Este poema foi publicado na antologia “Assim Escrevem os Catarinenses”,
da Editora Alpha-Omega, S. Paulo, no livro “A Batalha de Araranguá”
editado pela Associação Catarinense de Medicina e, parcialmente,
em prosa corrida, no livro “Eutanásia” da editora da Universidade
Federal de Santa Catarina.
(***) Adaptação não autorizada feita pelo Autor. |