A antiga aspiração a uma História da Literatura sem
autores, constituída apenas do fluxo da produção criadora
de várias épocas, reacende-se em mim todas as vezes que me
proponho proceder à apuração das differentiae abonadoras
de juízo de valor sobre determinada obra, ou sobre a realização
global de um certo escritor.
Estou convencido de que os apanhados biográficos, os aperçus
sobre o tecido de vínculos que todo artista contrai com as correntes
culturais de sua época, os bosquejos, em suma, histórico-sociais
ou de natureza confessional que, de hábito, se desdobram aos olhos
do leitor como um aperitivo à fruição dos produtos
estéticos, representam fator nada desdenhável que responde
pelas falhas perceptivas das peculiaridades dos mesmos.
Isso porque o conjunto dos dados extrínsecos previamente oferecidos,
sobre suscitar maléfico diversionismo em detrimento da inteligência
e gozo direto das fontes, nutre o equívoco de que basta estabelecer
certas correspondências, mesmo fortuitas, entre alguns informes cartorários
ou ambientais, de um lado, e a substantividade dos textos, do outro, para
dar-se por concluída a captação de sua fisionomia
congênita.
Pode parecer até impertinente a insistência na autonomia da
obra, mas não há fugir o imperativo de configurá-la
como objeto de enfoque e de técnicas de análise ditados tão-só
por sua estrutura e organização, embora seja lícito
retrair-se momentaneamente de seu espaço em busca de conteúdos
caucionadores desta ou daquela hipótese de trabalho.
O que se atesta irremissível, contudo, é sujeitar-se indefinidamente
uma escrita ao leito de Procusto de fórmulas não mais do
que contingentes, sem jamais produzir-se o empenho de adentrar-se na intimidade
mesma dos processos que culminaram da edificação de um específico
monumento da linguagem, e não doutro.
A mim não interessam imersões em franjas diluidoras; reclamo
as diferenças que escavam a própria individuação.
As falácias apontadas vêm incidindo há muito na produção
de Da Costa e Silva, poeta cujo centenário de nascimento se comemorou
no ano de 1985.
Todos os que lhe têm consagrado o seu interesse são acordes
em proclamar a consumada arte do Mestre, mas, com raras exceções,
parecem deduzir-lhe a perícia artesanal e recursos inventivos da
circunstância de haver transcorrido parte considerável da
atividade de seu espírito num clima de simbolismo e parnasianismo
tardios, bem como do seu enlevo com a natureza.
Tornou-se um lugar-comum a porfia na determinação do quantum
da estética das duas correntes se pode surpreender em seu instrumento
lírico. Não é de admirar, assim, que nessa estimativa
de teor aurífero, haja o emprego mais freqüente da balança
do aferidor, do que dos esquadros e do metrônomo do crítico.
Houve até quem o incluísse na "categoria dos poetas hugoanos"!
E quem dissesse que o Autor se voltara, a certa altura, "para os motivos
inspiradores da natureza agreste, da paisagem natal" e descerrara "as janelas
ensolaradas que revelavam a natureza brasileira", observações
sem o mais mínimo interesse para o pesquisador da morfologia
expressiva.
A acidentes, também, da vida do poeta é atribuída
tal ou qual mutação no afeiçoamento do seu estilo
líril. É usual afirmar-se que a exigente subjetividade
e a sublimação de seu quinto livro, Verônica, decorrem
diretamente do desenlace, devido a infortúnio de parto, de sua primeira
mulher, Alice.
Quanto aos rótulos de adepto de tendências em voga no seu
tempo, a nenhum título valem ser invocados para substanciar as inalienáveis
conquistas de sua dicção. Costumo dizer que compromissos
que tais constituem a "escolaridade" de todo escritor em formação,
não engendrando nexo apreciável de causa e efeito com a qualidade
dos escritos de ninguém. Ponho mesmo de quarentena o enquadramento
da poesia de Da Costa e Silva na chave simbolista. Não encontro
em nenhuma de suas páginas um genuíno poema dessa corrente.
Não se credite isso a deficiências do artista piauiense, antes
à atipicidade do simbolismo brasileiro, mais docilmente configurável
como mero cromatismo wagneriano — muita verve orquestral e escassa densidade
da tessitura polifônica — do que como uma busca da perfeita magia
evocativa suscetível de capturar na natureza as correspondências
que enlaçam o universo numa totalidade e, ao mesmo passo, conjurar
les symboles que encarnam o absoluto em si mesmo. Nenhum dos nossos simbolistas
— Cruz e Sousa, Alphonsus de Guimaraens e, em Portugal, Eugenio de Castro,
Camilo Pessanha — se votou àquela ultrapassagem do mundo das aparências
rumo à esfera dos puros arquétipos, segundo os avatares da
metafísica idealista, para a expressão do que se reclamava
uma alquimia, cujos agentes mais eficazes eram a vidência e a alucinação
(Rimbaud, Gerard de Nerval).
Alguns, como Cruz e Sousa e Camilo Pessanha, margearam o abismo. O mergulho
mesmo, porém, nunca foi dado.
Já o parnasianismo do nosso autor é mais indigitável.
Não resta dúvida de que há um bom número de
poemas, em particular sonetos, plasmados consoante aos princípios
estéticos da escola.
Volto, contudo, a insistir em que não é a maior ou menor
obediência a tais preceitos que decide dos valores ostentados pela
arte representativa da poesia de Da Costa e Silva.
Ele foi parnasiano porque na época era impossível esquivar-se
à pressão do grupo cultural com supremacia na área
das letras. Os ditos simbolistas opuseram resistência, mas não
lograram romper jamais a marginalidade.
Não se pode, por sua vez, emprestar maior peso à "sinceridade"
lírica de Da Costa e Silva no trato de certos conteúdos ideoafetivos
oriundos de sua vivência familial ou grupal. Tenho para mim que,
no caso já mencionado da feição distintiva que assumiu
o livro Verônica, houve cruzamento do episódio infausto com
um dos períodos de mais consumada perícia expressiva então
atingida pelo Mestre. O lineamento sui generis que acabou por individuar
a obra — a inflexão do irreparável, a sutileza reflexiva
de amplo espectro, o despojamento a lindar com a imaterialidade — se teria,
aventuro, reproduzido em textos permeados por motivações
e motivos de ordem todo diversa.
Vale trazer à colação o depoimento que o próprio
poeta prestou, em carta à mulher, sobre a conveniência de
ser tida por mero "fingimento" a mensagem sombria veiculada pelo soneto
"Esperança", incluído entre os "Documentos" das Poesias
Completas. Tranqüilizava ele: "Não cuides ser isso um estado
d'alma; é um soneto que não passa de mera fantasia, pois
foi escrito de propósito para, ao lado de "Argos", que figura no
Sangue, formar com outros uma parte de meu novo livro". (Realces de O.
M.) Note-se que "Argos", também um soneto, tomou o título
de "Nau Errante" na Antologia publicada ainda em vida do Autor.
É de bom aviso, pois, não acolher muito ao pé da letra
o estrato significativo das produções de um criador verbal.
A credulidade não é bússola muito prestante para tomarmos
o rumo dos valores estilísticos. De preferência à fidelidade
à emoção, os desvelos do poeta iam para o eixo de
simetria que deveria reger alguns de seus poemas. Na elaboração
de um livro há imperativos outros que privilegiam exigências
insuspeitadas, como, por exemplo, as de natureza
tectônica.
Nesta ordem de idéias, me proponho um procedimento diametralmente
oposto. Ao invés de takes esporádicos numa filmagem
de fora para dentro, aspiro a internar-me nos veios subterrâneos
da linguagem de Da Costa e Silva, numa tentativa de mapear a evolução
de sua geologia expressiva. Meu alvo não será, claro está,
uma biografia do poeta, usando como subterfúgio a sua obra, mas
uma estilografia nutrida por seus textos assentes nos poderes de imaginação
que o notabilizaram.
Sangue, o seu livro primeiro, já denota invulgar domínio
formal.
Não há perplexidades, irresolução no modo de
plasmar a exata matéria que se coadune com a sua energeia
expressiva. Embora tivesse apenas vinte e três anos por ocasião
da estréia, o volume não lhe deve ter brotado da mente como
Minerva da cabeça de Júpiter: ex nihilo. Tudo faz crer que
o jovem escritor, ou por severa disciplina ou ao aceso de suas intuições,
assimilou o que pôde dos vários estratos do vernáculo,
lavrando insofrido a textura fônica, com sua instrumentalização
acentual e desenvolvimento melódico; a camada do travamento sintático
e a da urdidura referencial; o plano das invenções tropológicas,
já a singrar o argento do imaginário, na vertigem das figurações.
A impressão que domina ao perlustrar-se estas páginas é
de um autor dotado de ciência idiomática surpreendente em
alguém de tão tenra idade.
Glosando o famoso dito de Chklóvski, o sangue que circula no estupendo
poema de abertura não coagula, pois é genuína floração
da linguagem, recortada em ritmos insubstituíveis e tratada com
requintes de gala inventiva.
"Cântico do Sangue" mostra à saciedade que um poema não
é feito de outro plasma que as constelações de signos,
desferidos ao rodopio da ars combinatoria que a alucinação
do demiurgo incessantemente reativa.
Sangue! essência vital do sentimento,
Que, rubra, móvel, plástica, incendida
Sobe do coração ao pensamento,
Circulando nos vórtices da Vida.
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Essência misteriosa e procriadora,
Vida difusa a errar em frágeis veios.
Que as idéias inflama e os olhos doura:
— Orvalho níveo dos maternos seios.
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Sangue! fluido genésico e fecundo
Do sentimento que anda em mim disperso
— Rocio com que alento e com que inundo
As sementeiras rubras do meu verso.
Sem dúvida, influências nos fisgam a atenção
aqui e ali. Antônio Nobre em "Canção da Morte"; a necrofilia
de Baudelaire em "Ironia Eterna" e em "Esperança Atroz", bem como
seu sarcasmo alvar em "Ódio Bendito"; o odi et amo de Catulo ecoa
em "Ignota Dea"; há revérberos de Banville, de Théophile
Gautier, de Raimundo Correia, de Alphonsus de Guimaraens, Cesário
Verde e Antero de Quental.
O soneto, cuja forma o poeta cinzelará durante a vida inteira, já
encontra bela corporeidade em Ante Noctem, com seu consumado terceto final.
Foi neste molde escasso que Da Costa e Silva cunhou a peça
que haveria de granjear-lhe a notoriedade maior. Basta mencionar o seu
nome, para fazer escapar dos lábios de qualquer amante da poesia
a menção a "Saudade".
Não comungo, porém, com o parecer quase unânime
de que este é o soneto supremo que lhe fluiu da pena. Não
posso ocultar certa relutância em amortecer a prevenção
crítica, talvez excessiva, face à pequena jóia célebre.
Com mais franquias do que óbices, inclino-me a descobrir-lhe jaças,
eivas.
Orações gerundiais amiúde. Rimas de mesmo campo
lexiológico. O proverbial: "Saudade! Asa de dor do Pensamento!"
parece-me um pouco demais écriture artiste na concretização
forçada de um concetto sobremaneira vago. Por fim, implico com a
palavra "caburé", pouco eufônica e, até certo ponto,
um localismo, assim como com a metáfora de "O Parnaíba —
velho monge / As barbas brancas alongando..."
Naturalmente há a nostálgica melodia que transita pelos catorze
versos fazendo fremir todas as células fônicas. Sobreleva-se,
também, o efeito de distância estética que encontra
expressão máxima no fecho: " ... ... E, ao longe,/ O mugido
dos bois da minha terra..."
Encontro na obra de Da Costa e Silva muitos outros sonetos a salvo da mais
remota argüição, como, por exemplo, o lapidar soneto
IV da série "Sob Outros Céus", esse, sim, para mim a obra
prima, na espécie, do emérito artista. Mais para adiante,
terei ensejo de me aproximar dessa criação.
O livro seguinte do vate, Zodíaco, ostenta como epígrafe
um quarteto de Verhaeren e uma dedicatória — " ao meu longínquo
Piauí" — que apontam para duas direções divergentes
de seu espírito.
À semelhança de Verhaeren, que conhecera também igual
bifurcação, pois punha a coexistir a sedução
dos ritmos épicos das megalópoles modernas com o acendrado
apego à sua Flandres bucólica, sacrificando outrossim no
santuário da devoção conjugal, autor que foi de três
livros de amor à mulher —, Da Costa e Silva mostrava-se atraído,
ao mesmo passo, pela refulgência dos grandes centros culturais europeus
e pelo discreto sortilégio de sua Amarante interiorana, dotada,
não obstante, do poder de nele inflamar evocações
"divinas".
Neste ponto, porém, cessam as analogias. Na maturidade do poeta
belga a contradição se resolve pela adoção
de um socialismo utópico assente numa pretensa vocação
do homem à fraternidade, como transparece, em particular, em Les
Villes Tentaculaires.
Avesso à predicação ideológica, posto que mais
de uma vez contingências profissionais o houvessem compelido a arrostar
com absoluta inteireza moral dilemas políticos, o escritor brasileiro
optou, como ultrapassagem da bipolaridade em que se debatia, por um recurso
quase de todo imprevisível em pessoa como ele de identificação
tribal e localista tão pronunciada. Tenho em mente o cariz universalizante
que, a meu parecer, assinala de ponta a ponta Zodíaco, mesmo quando
o Autor, por exemplo, no belo políptico "Minha Terra", tematicamente
regionaliza.
Creio que laboram em desacerto os que vêem nestas páginas
a transposição poética das "paisagens, os fenômenos
naturais e os trabalhos dos homens de sua terra natal." É descabido
afirmar-se que os cenários virgens ali debuxados refogem a um processo
de idealização, confundindo-se, ao invés, com as
"formas do dia-a-dia que vê um rústico no Piauí", ou
se inspiram na "natureza agreste da paisagem natal".
O afinco na inteligência assim do substrato motivacional de Zodíaco
importa num empobrecimento a que afortunadamente este volume de opulência
expressiva incomum na poesia brasileira resiste soberanamente. Da Costa
e Silva trabalha, em essência, com imagens primordiais, com resíduos
psíquicos: o enraizamento nativo (Amarante), a identificação
materna, a recorrência imagética do rio Parnaíba são
expressões de arquétipos: as águas primevas, a mulher
prototípica, o mito edênico.
Os traços paisagísticos fazem parte dos dados esteticamente
indiferentes da linguagem — são 'material' e não estrutura
, na terminologia dos formalistas russos. Tem sua pertinência aqui
o juízo convergente do crítico norte-americano , Mark Schorer:
"A crítica moderna mostrou que falar em conteúdo como tal
não é em absoluto falar a linguagem da arte, mas da experiência.
É somente quando falamos em conteúdo plasmado (conquistado)
— achieved content — a forma da obra de arte como obra de arte, que
falamos como críticos." (" Technique as Discovery", in Approaches
to the Novel — Robert Scholes, org.)
Julgo ainda que foi atribuída demasiada importância
ao projeto "simétrico" de Zodíaco. A qualidade captável
nos poemas aí contidos não está em qualquer
relação de dependência da montagem geral do livro.
As Songs of Innocence and of Experience, de William Blake, são também
rigorosamente homólogas, mas, a não ser a expectativa temática
que suscitam devido à polaridade, não retiram dessa feição
qualquer outro dividendo.
Ao dizer-se que, com Zodíaco, o vate tinha em mira escrever um poema
único sobre a "máquina da natureza", corre-se o risco de
supor que nos vamos defrontar com um novo Trabalhos e Dias (Hesíodo)
ou De Natura Rerum .
A obra não é mais do que o ensejo ao poeta de experimentar
verbalmente a sua sensorialidade inigualável. A motivação
pode ter sido aquela, mas o que resultou foram estudos plásticos
de virtuosismo tal que faria inveja aos luminares do Impressionismo na
pintura e na música.
Iniciando-se com os dezesseis admiráveis quartetos de "A Escalada",
um importante poema com a natureza por pretexto, mas, na realidade, soberba
construção arquitetônica na sucessão ciclorâmica
de épuras e planos cada vez mais escampos, o livro logo instiga
o leitor mediante a apresentação de três hinos — ao
Sol, ao Mar e à Terra — de transparência e exaltação
mediterrâneas.
O fecho de "Hino ao Mar" — "Bêbedo sem beber, / Na embriaguez do
enjôo, / Como a ensinar / Que a bebida / É a Vida, / Mar!"
— lembra o famoso verso de Goethe: Jugend ist Trunkenheit ohne Wein. (
"A juventude é embriaguez sem vinho".)
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