Agamenon Magalhães via nos cantadores a figura autêntica da
inteligência marginalizada. Convocava-os para cantarem nos
seus comícios do interior, porque "os poetas humanizam as batalhas
democráticas".
Na sua campanha de 1950, quando reconduzido ao Governo de Pernambuco, não
desprezou a inteligência dessa tática política.
Foi quando os repentistas Agostinho Lopes dos Santos e Lourival Baptista
Patriota, ambos naturais de São José do Egito, inflamaram
as multidões sertanejas com a espirituosidade de repentes ainda
hoje guardados na memória popular.
Abrindo um comício na cidade de Bom Jardim, improvisa Agostinho:
"Os pais convidem seus filhos.
Os filhos convidem as mães.
As mães convidem as filhas
E as filhas chamem as irmãs
Para votarem na chapa
De Agamenon Magalhães."
Lourival responde:
"Agamenon Magalhães
Que tanta grandeza encerra,
Nasceu em Serra Talhada,
Naquela talhada serra,
Por isso nasceu talhado
Pra governar sua terra."
Certa vez, recepcionando visitantes ilustres, o Governador promoveu um
encontro de repentistas em Palácio (a exemplo do que costumava fazer
na Paraíba o Presidente João Suassuna, na década de
20), com a participação, entre outros, de Agostinho Lopes
dos Santos, José Vicente da Paraíba e os Irmãos Batista.
Cantando para figuras políticas de nível nacional, os vioieiros
brincavam com as musas. A festa ia animada: o repente flamejando
sob o teto decorado do Campo das Princesas, as violas crescendo na acústica,
a poesia chispando, solta, na noite aristocrática, Governador e
Ministros fascinados pela visão genuína do sertão
brabo.
O mordomo, assustado, dirige-se ao Chefe do Governo:
Doutor, há um homem esquisito querendo entrar. Traz um matulão
e uma viola e o pescoço coberto por um lençol vermelho.
Lourival Batista atalhou:
Aposto como é Zé Limeira.
Alguns segundos e abre-se uma porta por onde passa o Poeta do Absurdo.
Coloca o matulão e a viola sobre o piano, e, reatando o nó
de grande lenço encarnado que envolve o pescoço:
Esse aqui não é ninguém não, minha gente,
é somente Zé Limeira velho falado. Vim cantá pro Doutor!
Cantador pra cantá pro Doutor Agamenon é preciso ter foigo
de sete gato!
O estadista externou seu prazer em receber mais um poeta paraibano:
Poeta, esta é minha mulher que, como eu, sente-se imensamente
feliz em tê-lo em nossa casa.
Limeira aperta a mão da Primeira Dama e expressa-se, à sua
maneira espontânea:
De feição, parece muito com a minha patroa, sendo que ela
é pobre do pé da serra e a senhora é uma madama rica
da capital!
Àquela altura, todos os presentes já se tomavam de simpatia
pelo repentista que fazia questão de cantar para o casal Agamenon
Magalhães. Sua participação no torneio já
estava sendo uma exigência principalmente de Dona Antonieta.
O Poeta do Absurdo escolheu para seu parceiro Otacílio Batista (que,
por sinal, foi quem me contou esta história), e os dois passaram
a improvisar em martelo agalopado. Otacílio, de acordo com
o figurino, fez o tradicional "brinde à dona da casa", fechando
assim a estrofe:
"... E antes que a nossa festa aqui se finde,
Doutor Agamenon, receba o brinde
Que à Dona Antonieta estou erguendo!"
Seguindo a etiqueta, Zé Limeira acompanhou:
"Eu cantando pra Dona Antonieta
A muié do Doutor Agamenon,
Fico como o Reis Magro do Sion,
Me coçando na mesma tabuleta.
Eu aqui vou rasgando a caderneta
De Otacílio Batista Patriota...
Doutor, como eu não tenho um brinde em nota,
Que possa oferecer à sua esposa.
Dou-lhe um quilo de merda de raposa
Numa casca de cana piojota."
A simpatia de Zé Limeira pelo líder pernambucano era evidente.
Onde quer que cantasse acendia-lhe o nome. Em Campina Grande teria improvisado
esta glosa:
"Se encontrando adoentado,
Agamenon Magalhães
Mandou suas três irmãs
Comprar carne no mercado.
Depois que tava deitado,
Pegou a carne e comeu.
Foi Casemiro de Abreu
Moreno da cor morena,
Os ossos chora com pena
Da carne que apodreceu."
Ainda em Campina Grande, sobre o Senador Vitalício da Paraíba:
"Esse doutor Ruy Carneiro
É primo de Lampião,
Nasceu lá na Grãn-Bretânicas,
Viajou de caminhão,
Pra descobrir meu segredo,
Prantou quarenta arvoredo,
Trinta culha de feijão."
Já o Ministro José Américo de Almeida é visto
assim:
"Maihó de que Jesus Cristo
Foi o Pai do velho Adão.
Com medo de Satanás
Fez o Sino Salomão.
Quage ficou cadavérico...
Malhó mais é Zé Américo
Que não morreu do avião."
Em 1957, quando participava, em Recife, de um coquetel em homenagem a Gilberto
Osório, resolvi, para descontrair o ambiente, recitar as seguintes
estrofes de Zé Limeira:
"Ela parece um limão
Rodeado de cebola,
Uma goiabeira verde
Enfeitada de ceroula,
Com dentadura de pau
Eu elogiá-la vô-la."
"Eu só gosto dessa moça
Porque tem vegetação,
Porteira de pau-a-pique,
Três pneu de caminhão,
Rabo de jumenta russa
E haja chuva no sertão."
"Eu sou açude corrente
Dentro da mata bravia,
Gramática azul, beiçuda,
Queijo de leite de jia,
Rincho de burra cardan
E haja festa na Bahia."
"Um dia eu tava acordado,
No mais rancoroso sono,
Passou uma cobra azul
Falando num microfone,
E um mudo gritando em baixo:
Vim buscar o meu abono!"
"Sou casado e bem casado,
Com quem, não digo com quem.
A muié ainda é viva,
Mas morreu, mora no Além.
Se um dia voltar à terra
Vai morar no pé da serra,
Não casa mais com ninguém.
"Casemo no ano de quinze, Na seca de vinte e três;
A muié era donzela,
Viuva de sete mês,
Mais não me alembro que tenha
Um dia ficado prenha,
Estado de gravidez."
Não sabia, entretanto, que à minha direita estava o poeta
Euclides Gregório, tido como o mais avançado surrealista
pernambucano da época. Cercado de admiradores que insistiam
em ouví-lo, recitou o que havia de mais consistente em sua poesia:
"... Já o meu coração, sim,
poderá ser uma poça de
iluminados elefantes
que colhes com lábios amarelos
para destrinchar a touceira de sonhos
machucados por meus pés de ar
que a solidão das ladeiras
pisam o infinito marron
dos teus saborosos desaforos."
Fiquei esperando pelo desfecho. Terminava ali mesmo. E, recebendo abraços
e encômios em profusão, o grande surrealista cobrava-me com
o olhar a pusilanimidade de um elogio impossível. No máximo
obteria a generosidade do meu silêncio.
Minha perplexidade foi crescendo quando os admiradores do Sr. Euclides
Gregório passaram a interpretar Zé Limeira, depois de classificar
seu estilo como "abstracionista rústico", "ultra-sincretista", nítido-abstracional-impressionista",
"surrealista bárbaro" e, finalmente, "futurista-nitidista"(?).
A respeito das seis estrofes que eu declamara, a título de humorismo,
fizeram aqueles intelectuais as seguintes observações:
Sobre a primeira: "O limão representa a pureza da virgem'.
E, rodeado de cebola, "adquire o calor não do amor, mas do real'.
A goiabeira verde seria "a beleza natural da moça sertaneja".
Mas, contraditoriamente, a mesma árvore "toma características
divinas" ao enfeitar-se de ceroulas, termo que o Poeta teria aplicado no
sentido de virtudes". Por fim, a dentadura de pau assumiria a linguagem
do amor platônico.
Sobre as segunda e terceira sextilhas limitaram-se a dizer que constituem
"excelente roteiro".
Com referência à quarta e à quinta estrofes, sentenciaram
que o fato de a mulher estar viva e simultaneamente morar na Eternidade,
representa um fenômeno de alto valor para renovação
da poesia que "não pode estagnar". A análise encontrou uma
harmonia perfeita nas expressões: "Casemo no ano de quinze / Na
seca de vinte e três" e "Se um dia voltar à terra / Não
casa mais com ninguém". Por outro lado, não admite a hipótese
da reencarnação, quando este seria o único meio de
se justificar que a esposa, desaparecida, poderia retomar ao globo terrestre
para habitar um pé-de-serra, trazendo uma radical aversão
ao casamento.
Estes saltos no escuro talvez sejam o saldo da decadência do sistema
social estabelecido entre os povos latino-americanos, refletindo, ao mesmo
tempo, toda a angústia deste fim de século assustado.
Vejamos, como exemplo desta inconsciência intelectual, o poema intitulado
"Terceira Tentativa de Poema Surrealista", de J.J. Bandeira, inserido no
suplemento literário de um jornal de Belo Horizonte:
"Caminho de Madeira.
Madeira de caminho,
Sombra de cinza,
Cinza de Sombra.
Caminho,
Madeira, Madeira,
Caminho.
Cinza
Sombra
Sombra
Cinza
Depois ou antes?
Antes ou depois?
Agora?
Sempre?
Ruptura de vozes,
Vozes caladas,
Vozes furadas,
Caiadas vozes;
Furadas vozes.
Gaúchos, rosa, pedra,
Bolhas de sabão,
Sabão de bolhas
Que a gente compra.
Por quanto?
Por quê?
Pra quê?
Como?
Quê?
Quê?
É sempre?
É nunca?
É Jamais?
É já?
É sempre?
Sempre ou nunca?
É não?
É?"
É?
Já o senhor lndalécio Coelho publica heroicamente em destacada
página do jornal Artes, de São Paulo , este "Sentimento de
um Poeta Surrealista Perdido na Garoa":
Porém eu parei,
Como o barro parou,
Como a égua pariu.
Trem é trem.
Bei o que faz luar gelatinado como o diabo.
Amantes de pedra,
Raios que voltam,
Que voltam,
Que voltam,
Indo,
Indo,
Inviezadamente quadrados.
Raios que ficam,
Contratempo,
Cor incolor,
Rastos no vento.
Trem é trem
(História, papo, rato, sargaços,
Bandolins quebrados, a gota...)
Os olhos da loura
(Meu Deus, os olhos da loura!)
Os cabelos da negra,
Os braços do mar que fazem
Do estômago cérebro.
Eu quero a moça loura,
Já que a negra lascou-se e fugiu
Levando meus sonhos, meus sentidos,
Meus cabelos, meus sapatos.
Ciclones que esmago.
Garoa madura
Na tarde do fim de qualquer coisa.
Amo,
Quero,
Escuto,
Vejo,
Sinto,
Acaricio,
Como
Não a negra,
Mas a garoa madura,
Escuto garoa madura,
Garoa madura, garoa madura, garoa
Positivamente.
É melhor dar pra puta e fazer vida no mangue
Do Rio de Janeiro."
Estou de acordo com o surrealista bandeirante. "É melhor dar
pra puta e fazer vida no mangue do Rio de Janeiro" do que enveredar por
caminhos de tão melancólica prostituição literária.
Ainda bem que ele admite que parou, "como o barro parou, como a égua
pariu". Antes assim, senhor Indelécio Coelho, do que continuar
"indo inviezadamente quadrado", porque, convenhamos, andar assim deve ser
bastante perigoso.
Poemas deste nível são recitados com insistência pela
nova geração de intelectuais brasileiros que se tornam poetas
do dia para a noite, sendo "entendidos" pelos entendidos, elogiados pelas
cúpulas, prodigamente adjetivados por quantos não têm
a devida coragem de dizer que não entendem, que têm medo de
deixar transparecer indiferença ou repulsa por semelhantes chulices.
Os senhores J.J. Bandeira e Indalécio Coelho são a imagem
viva do atual panorama. Representam uma classe que daria ótima
contribuição à literatura nacional, se fosse para
o campo cuidar da nossa agricultura tão deficiente, tão problemática,
tão carente de braços fortes. Porque é preciso
que se diga , dar cores novas à poesia não é a mesma
coisa que se derramar sobre o papel um monte de palavras sem concatenação,
sem sentimento, sem nenhum valor, em nome de uma escola livre que não
foi criada para este fim.
O aspecto mais ridículo desta pseudo-literatura não seria
a ausência de qualquer mensagem, o deserto total de conteúdo,
mas o fato de o autor não saber o que escreveu e esbanjar explicações
que ele mesmo não aceita.
O comportamento do poeta Manoel Caixa Dágua, considerado como representante
do surrealismo em João Pessoa, atesta esse estado nebuloso.
"Caminho Perdido" é o poema que o consagrou:
"Se as noites envelhecessem,
se os meus olhos cegassem,
se as fantasmas danças
em blocos de neve
para que me ensinassem o caminho
por onde eu caminhei.
A cidade sem porta, as ruas brancas de
minha infância
que não voltam mais.
Se minha mãe se abruma,
se o mar geme,
se os mortos não voltam mais,
se as matas silenciosas
não recebem visitas,
se as folhas caem,
se os navios param,
se o vento norte
apagou a lanterna,
eu tinha nas minhas mãos somente sonhos.
Eu tinha nas minhas mãos somente sonhos!"
Entrevistado pelo matutino local "O Norte' o jornalista Evandro Nóbrega
perguntou o que viria a ser isso de "se minha mãe se abruma".
Respondeu o poeta:
Ora, rapaz, isso é negócio de mãe mesmo!
Presença sempre requisitada nas rodas intelectuais da capital paraibana,
onde é querido e admirado, Caixa Dágua diz, invariavelmente,
a quem vai sendo apresentado:
Sou o poeta Manoel José de Lima, o famoso Caixa Dágua.
Na Paraíba só quem anda de branco somos eu, José Américo
de Almeida e Renato Ribeiro, mas Renato é só industrial e
eu e José Américo somos grandes intelectuais.
Outra mostra oferece-nos o surrealista Antônio Almeida, de Campina
Grande:
"Caboclo, tira uma loa,
Cê-a-cá-gê-rê-cê-rão.
Tira, taras e tarão,
Guage, guage, guage-ganga,
Cunquinheró coque-canga,
Unca caixa marumbeta,
E teró, toró tombeta,
Bacharel, bacharelama." |