Esta manifestação — a que o paraibano João Mendes
da Cunha deu o generoso batismo de “masturbação intelectual”
— foi editada pela Prefeitura de Natal, sob o rótulo de "Poesia
Concreta Dez Anos'. A publicação, de grande tiragem,
fez parte do "Plano de Extensão Cultural" do Governo Agnelo Alves.
Vale como mostra do processo de inversão de valores que se desenvolve
no Brasil. Sim, porque em vez de importar a poesia concreta de São
Paulo, o Programa reuniria, em coletânea, os próprios valores
do Rio Grande do Norte, poetas do nível de Antônio Mangabeira,
Otoniel Menezes e Renato Caldas, entre outros, mesmo como homenagem a um
passado ainda aceso por Nízia Floresta, Auta de Souza, Segundo Wanderley,
dentre inúmeros outros nomes que pesam na balança da literatura
brasileira.
Nem precisava ir muito longe. Bastava convocar Mossoró, onde
desponta uma alvorada de poesia na figura adolescente de Janiro Costa Rego,
de cuja sensibilidade jorram improvisos desta opulência:
"Modorra, um misto de preguiça e sono...
Sozinho, a espreguiçar-se sobre a areia,
Sonho um perfil longínquo de sereia
Na suave sensação deste abandono!
E penso se de ti sou mesmo o dono
E, enquanto a brisa sobre mim passeia,
Sinto-te a percorrer, veia por veia,
Todo o meu organismo de carbono!
Chora, aos meus pés, o manso mar de Olinda!
O corpo, lasso, entrega-se à madoma,
A alma absorve a tua imagem linda...
Desperto! E agora a solidão retoma!
E eu, absorto, busco em vão, ainda,
Teu corpo em flor por esta areia morna...
Outra opção que certamente teria atendido ao objetivo do
“Plano de Extensão Cultural” da terra de Veríssimo de Meio,
dentro desse espírito de importação de extravagâncias
poéticas: editar a obra do paraibano Stilong Wanzek, uma poesia
da linha limeiriana que tem pelo menos o mérito de divertir:
Os Três Poderes
“Quatro vacas brincavam no quintal,
Cinco burros dançavam no terreiro.
Dez navios no Rio de Janeiro
Navegavam pensando em Portugal...
Recordando a viagem de Cabral,
De Lumumba, Kruchove e Mubutu...
Iracema banhar-se no Ipu
Não pensava morrer de morte tal.
Lá nas margens do velho Rio Doce,
Um macaco tarado deu um coice
E Getúlio atirou no coração.
E Kruchove dizia a Salazar:
Nós agora podemos processar
Virgolino Ferreira—Lampião.”
Jumento Carnavalesco
O jumento ciscava no quintal,
Procurando pedaços de xerém.
Ao comer o xerém, não se deu bem,
Como não se deu bem, sentiu-se mal.
Lá por fora passava um carnaval
E o jumento correu, dando sopapo.
O xerém quis inchar dentro do papo,
E ele disse, bem alto, ao pessoal:
—Comi uma comida e me ofendeu.
Ensinem-me.um remédio para eu
Ficar bom da doença, que eu tomo.
Ensinaram a saúde das mulheres,
O jumento tomou trinta colheres,
Vomitou o xerém para o Rei morno!"
Vida Hodierna
Um velhinho bem velho, um ancião,
Fez de palha uma cama de aroeira.
Escorou-se na ponta dum ferrão
E deitou-se na verde capoeira.
De repente chegou-lhe uma soneira
E o pobre velhinho adormeceu.
Acordou-se nos braços de Morfeu.
Novamente dormiu a noite inteira.
Lá por fora cantava um passarinho
E na cama gemia. Era o velhinho:
— Quem eu era? Quem fui? Quem diabo sou?
Quem me dera u'a pitada de rapé!
— Um mosquito lambia um jacaré
E um soldado prendia um gigolô!'
A expedência de Giovani Papini sintetiza, em dimensões mundiais,
o Apocaiipse da poesia:
“Renunciei, desde algum tempo, a todas as minhas atividades de direção
e participação em indústrias, para comprara coisa
mais caraem sentido econômico e morab-do mundo: a liberdade.”
“Mas, quando alguém se entregou, durante tantos anos, ao vício
dos negócios, é quase impossível fugir de uma recaída.
Deu-me na veneta, no ano passado, criar uma pequena indústria, só
para subtrair-me às tentações de voltar a ocupar das
grandes e pesadas. Queria que fosse absolutamente nova e que não
requeresse demasiado capital..”
Lembrei-me, então, da poesia. Esta espécie de ópio
verbal ministrado em pequenas doses de linhas numeradas, não é,
decerto, um artigo de primeira necessidade, mas o fato é que muitos
homens não conseguem passar sem ela. Ninguém, contudo,
pensou em organizar, de um modo racional, a fabricação de
versos. Foi sempre abandonada aos caprichos da anarquia pessoal.
A razão desse negligência reside, provavelmente, no fato de
que uma indústria poética, embora florescente, proporcionaria
utilidades bastante modestas, já pela dificuldade (não digo
impossibilidade) de adoção de máquinas, já
pelo escasso consumo dos produtos.
“Para mim, porém, não se tratava de uma questão de
lucros, mas, de curiosidade. O financiamento necessário era
mínimo, os gastos de instalação quase nulos.
Sabia que era preciso recorrer, para esta nova empresa, a skilied workres,
mas tais indivíduos eram numeroslssimos, sobretudo na Europa.
Dediquei-me a procurá-los.”
“Consegui contratar cinco, todos jovens, menos um, e discípulos
das mais modernas escolas.”
“Instalei a primeira oficina em minha vila da Flórida, com dois
criados negros e duas datilógrafas. Fiz montar uma pequena
gráfica e esperei os primeiros frutos da minha iniciativa.
Os cinco poetas eram alimentados, alojados e servidos; desfrutavam de um
pequeno ordenado mensal e tinham direito a uma determinada porcentagem
sobre os lucros eventuais; o contrato durava um ano, mas era renovável
por igual período.”
"Transcorridos seis meses, fiz, como estabelecia o contrato, minha prímeíra
visita à oficina da Flórida e convoquei meus poetas, um após
outro, para prestar informações. O primeiro a se apresentar
na saia da direção foi Híppolite Cocardasse, francês,
desertor da escola Dada e pescado, naturalmente, em Montpamasse."
“— O senhor nos encomendou a mim e aos meus colegas-disse -que criássemos
um tipo novo, adaptado ao gosto da poesia moderna no mercado internacional...”
Cocardasse me apresentou algumas laudas de grande tamanho, com um sorriso
e uma deferência. O título da primeira poesia era "Gesang
of a perduto amour."
E li os primeiros versos:
"Beloved carinho, meín Waltschmerz
Egorge mon âme en estas soiedades
My tired heart, Raju presvétíeyj
Lieber himmel, castillo e los dioses
Quaris quot durerá this fun desespere?
Drévno zizni.. Tanctasa deis '
"Minha ignorância lingüística impediu-me de continuar."
"Compreendi que era inútil discutir com tal imbecil" "Despedido
Cocardasse foi introduzido Otto Mutterrnann" de Stuttgart.
—Ao senhor ofereço o resultado de meus trinta anos de penoso noviciado
no caminho da perfeição.
E dizendo isto, depositou na mesa um papel Olhei-o. No meio da página,
traçada com letra elegante, havia esta palavra:
Entindung
Nada mais. O resto da folha estava em branco. O terceiro poeta,
Canos Canamaque; era um uruguaio e procedia da escola ultraísta:'
—Leia, como ensaio, este madrigal.
Não tive outro remédio senão ler:
“Lienzo, sombra, suspiro,
Amarillas, mistérios, desierto.
Huella, palabra, doliente, Tiro.
Faraón, corazon, lábios, huerto.”
Minha capacidade de suportar, já posta a prova pelos outros dois
poetas, vacilou ao chegar a este ponto:
"E crê, senhor Canamaque, exclamei, que haverá bastante imbecis
no mundo para dar dinheiro em troca desta mixórdia de palavras?
Contrateí-o para escrever poesia e não extratos de vocabulários.
O senhor acredita poder enganar-me, mas aqui há motivo suficiente
para rescindir o contrato. Desde hoje não pertence mais à
minha empresa. Suma-se!"
"O quarto poeta que se apresentou diante de mim era um nisso, o Conde Fédia
Liubanoff."
—Eis aqui meu livro.
Abri-o e comecei a folheá-lo. Cada página continha,
na parte superior, um título. O resto estava em branco.
—Veja, esclareceu Liubanoff, quis reduzir ao mínimo a sugestão
do poeta. Cada poema meu se compõe exclusivamente do título...
Minha primeira poesia, por exemplo, se intitula “Sesta do Rouxinol Abandonado...”
Todos os elementos da eflorescência poética estão aí.
A sesta lhe dá a estação e a hora; o rouxinol evoca
toda música, todo o amor. E esse abandono lhe induz a tratar
os temas eternos da traição e da dor.
"Não tive sequer forças para enfurecer-me. Reconheci
lealmente que a experiência falhara, que a fábrica fora um
desastre. Nem ao menos quis ver o quinto poeta. Parti na mesma
noite e, no fim do ano, todo pessoal, os poetas inclusive, foi despedido.
É a primeira vez, na vida, que me falta tão vergonhosamente
o faro de ‘busíness’: Começo, afinal, a compreender porque
o velho Platão queria expulsar os poetas de sua República.
Neste negócio tive uma perda líquida de setenta e dois mil
dólares."
O senhor Washington Samargo se enquadraria perfeitamente no sistema, representando
a poesia concreta de Minas Gerais:
"Aí, aí não, meu amor
" " "
" "
" " "
" "
"
"
"
...
A propósito de Giovani Papini, foi a ele que Pablo Picasso confessou,
em carta datada de 1952:
"O artista pode exercer seu talento, tentando todas as fórmulas
e todos os caprichos de sua fantasia e todos os caminhos do seu charlatanismo
intelectual Na arte, o povo não encontra consolação
nem exaltação, mas os requintados, os ricos, os ociosos,
os destiladores de quinta-essência, nela buscam a novidade, o estranho,
o original, o extravagante e o escandaloso. Eu mesmo, desde o cubismo
e de muito entes, tenho contentado a todos esses críticos com todas
as brincadeiras que me ocorrem e que eles mais admiram quando menos as
entendem.
À força de exercer todos esses jogos, esses quebra-cabeças
e esses arabescos, tomei-me célebre rapidamente. A celebridade
significa, para um pintor, venda de quadros, fortuna, riqueza. Agora,
sou, além de célebre, rico. Mas, quando fico só
comigo mesmo, não posso considerar-me um artista no grande sentido
que esta palavra tem.
Grandes artistas foram Giotto, Ticiano, Rembrandt e Goya. Sou apenas
um brincalhão que tem compreendido seu tempo e sacado o possível
da imbecilidade, da vaidade e da concupiscência de seus contemporâneos.
Esse "charlatanismo intelectual" acentua-se mais na poesia do que propriamente
na pintura e na música, porque o erro está na insistência
em se fabricar poesia, como se fabricam peças de cerâmica.
A poesia não pode ser fabricada. A poesia acontece no poeta
que é um simples receptor. Inutilmente os artesãos
sacrificam-se na manipulação de versos, porque estes, forjados
sem o concurso da inspiração, jamais passariam de versos
sem poesia, sem substância, sem eternidade.
E o que está acontecendo, quase sem exceção, é
uma arrasadora poluição mental, porque já se convencionou
que exercera poesia livre é a mesma coisa que escrever aberrações,
a título de originalidade.
Não sou radicalmente contra nenhuma manifestação de
arte, desde que seja elaborada com um mínimo de dignidade.
O poema ‘Balada da Moça Amante’, do paraibano José Cabral
Filho — o festejado Zezito Cabra — um espelho da boa poesia moderna que
se pode ler.
“A moça tinha no leito
O corpo de madrugadas
e auroras interditadas.
E sob os olhos fechados,
premidos, em contrição,
encenações de pecados
faziam gestos de chão...
Os silêncios que passavam
beijavam luas partidas
que a moça tinha nas mãos.
E as confissões encerradas
nos lábios da moça amante
tinham raízes plantadas
no coração dos instantes.
No tempo havia mensagens,
Na noite desejos vãos,
nos abismos liquefeitos,
vazios, sem remissão...
E a moça jazia insone,
indiferente a futuros.
Seus dedos executavam
a sinfonia dos muros,
suas mãos jogavam pedras
em preconceitos escuros...
E as visões pressentidas
de cavalgadas estranhas
anunciaram a chegada
de gritos rasgando entranhas.
Eram as visões impossíveis,
há milênios invocadas.
As patas de mil centauros
despedaçando as estradas,
a avalanche dos medos
nas encostas escarpadas.
E a moça galgou distâncias
nas asas da escuridão.
Suas mãos cavaram fontes,
furaram a imensidão...
Das convulsões proclamadas
nas reticências do leito,
brotaram lírios desfeitos,
abortos de solidão...”
O poeta Gladstone Vieira Belo, integrante da chamada "Geração-65",
movimento que reúne os novíssimos escritores pernambucanos,
oferece, com o seu poema ‘As Garras’, a chave de ouro com que se fecha
este capítulo.
A mensagem, no seu hermetismo e na coloração do equilíbrio
poético, é uma realidade dentro da escola moderna.
Toda a força do poema reside na estrutura simbólica da linguagem,
com os seus mútuos operativos:
"Remover a cor lacre do objeto,
eis o presságio do leopardo, a crina
do animal feroz na montaria
das águas em direção ao vale.
Intrépidas, suas patas tragam
a flora na superfície do lance.
São jograis de plumas equilibrados
no desmantelo dos olhos.
As pálpebras a dilatarem o sangue
no veio do grande rio, aquele
que corta o interior da linguagem
transitória nas aberturas da camisa.
Insólito, assalta as extensões
imensas do Parque, ele recobrando
em si o verbo contido, a clara
e horizontal feitura das alamedas.
Garras e músculos na relva
do fosso, as suas ancas prostradas,
escarlates, nos umbrais da tarde,
sangue nas extremidades do sonho." |