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Oton Lustosa


 

Discurso de posse do escritor Oton Lustosa na cadeira n° 05 da Academia Piauiense de Letras.

(Solenidade realizada no Auditório Wilson de Andrade Brandão, da APL, em 05.04.2001).

 

 

I) INTRODUÇÃO:

        

Senhoras e Senhores:

 

O homem não busca apenas satisfazer as suas necessidades materiais. Para viver, plenamente, busca a satisfação espiritual. Cheio de poder, posto que dotado de inteligência - esta explosiva força criadora -, o homem transforma o mundo. Escarafuncha, mexe, bisbilhota as coisas da Natureza... Queda-se extasiado diante das belezas naturais... Encafifa-se com os mistérios que levam à perfeição das coisas criadas...  Chega a uma conclusão derradeira, inapelável: Deus existe!  Mas... De tanto investigar termina por concluir que algo deve ser melhorado ainda neste mundo de Deus. Quer o homem o mundo ao seu serviço, útil e prático; que lhe proporcione um estado tal de bonança, inenarrável, sublime. Algo a que deu o nome de Felicidade!  Eis o objetivo primeiro e último do gênero humano: Ser Feliz! Por isso transforma, modifica, cria, destrói, luta. E a tal felicidade como uma miragem, ora perto ora longe. E haja esperanças e haja angústias e haja sonhos! Ah! os sonhos!...  Quer o homem, em pleno estado de vigília, entender os sonhos, torná-los concretos. Freud bem que tentou ensinar a fórmula. Mas a psicanálise freudiana, para muitos, ainda é um imenso labirinto onírico. Por isso, em perseguição dessa tão sonhada felicidade, o homem desanda a sofrer. Busca, finalmente, um lenitivo para essas dores do espírito. Põe-se a serviço da construção e da contemplação da Beleza. Nesta sua caminhada terráquea, a estação que o leva a mais se aproximar da felicidade é a contemplação da Beleza. É aí que as artes ocupam importantíssimo papel na vida do homem. Aliás, ouso dizer, sem a arte - expressão maior da inteligência humana -, o homem não passaria de um miserável bicho bípede, deslanado, sem cauda, sem garras,  despreparado para a caça e para a pesca; e sem nenhuma chance de cavar, mergulhar e voar. Mas o homem, ser divino, tem a Inteligência!... Que o leva ao trabalho maneiroso, ao engenho, à arte, à perfeição, ao amor...  E ainda o levará à felicidade!

Hoje, nesta memorável noite, aqui estamos a enaltecer os progressos da inteligência humana. Esta sessão acadêmica, solene e festiva a um só tempo, não se realiza para celebrar a ascensão social ou intelectual de um homem; que o homem continua o mesmo: do tamanho de suas ações, do tamanho de suas obras, do tamanho de seus méritos, do tamanho do seu caráter. É à cultura de um povo que se rendem homenagens! Um templo acadêmico, que tem os guardados da história e da tradição cultural de um povo e tem a senha para um alvissareiro futuro, vive intensamente o presente, faz Cultura; posto que, no dizer de ORTEGA Y GASSET, “cultura é o sistema de idéias vivas que cada tempo possui”1.

 

 

II) ACADEMIA E A CADEIRA CINCO

 

E por falar em cultura, o nosso Piauí não ficou de braços cruzados naqueles momentos de ânsia em que o País Verde-Amarelo, no início do século XX, buscava a sua afirmação cultural. Aqui, também, as artes eram cultuadas. Porém, a partir de 1910, como que houve por estas plagas uma avalanche cultural. Senão vejamos:

Estrondeava o Positivismo de AUGUSTE COMTE, aos brados de TOBIAS BARRETO, este sergipano indomável, que fez a Escola do Recife e à frente dela arrebanhou uma legião imensa de seguidores e discípulos; varões que mais tarde viriam a gerir as ciências, a cultura e a política deste país. O Brasil jovem, irrequieto, vontadoso, idealista, revolucionário mesmo, para ali afluía em busca das luzes da sociologia, a nova ciência dos fatos sociais, que tem por fundamento a experiência; descarta as abstrações metafísicas e busca o objetivo último do aperfeiçoamento moral do homem. Ali, no velho prédio da Faculdade de Direito, no Largo do Hospício, ecoaram as vozes retumbantes e brilharam as idéias maravilhosas de JOAQUIM NABUCO, CASTRO ALVES, RUI BARBOSA, SYLVIO ROMERO, AUGUSTO DOS ANJOS e tantos outros vates de incomensurável valor. Piauienses de aguçada inteligência foram ao Recife beber conhecimento.  Era início do século...  HIGINO CÍCERO DA CUNHA, CLODOALDO FREITAS, ABDIAS NEVES, entre outros, lá estiveram.  De volta à terra natal abre Clodoaldo a sua casa à visitação dos intelectuais da terra, afinados com as novas idéias e dispostos a desafiar a velha ordem filosófica. Tempos mais tarde eis que surge um líder! Quem o seria?  O filho de Clodoaldo, o jovem LUCÍDIO FREITAS! Poeta de profunda sensibilidade e de vasto saber científico e filosófico; jovem bacharel aos dezenove anos de idade, fez-se magistrado no Pará, onde, também, lecionou para acadêmicos de Direito. Com a saúde física abalada, cheio de saudades da terra distante, regressa à sua querida Teresina, para aqui curar-se de todos os males, viver feliz e poder, com galhardia e desassombro, realizar o que mais gostaria de fazer: jornalismo e literatura! Em curto espaço de tempo como que faz uma revolução intelectual na cidade: profere inúmeras e esplendorosas conferências, congrega literatos, prega a idéia de criação de um grêmio literário que bem pudesse representar a Literatura Piauiense.

Assim é que em 30 de dezembro de 1917, é fundada a Academia Piauiense de Letras!

Louvada seja aquela radiosa manhã de dezembro! Porque de lá para cá o Piauí viu subir o seu moral no cenário artístico-literário nacional.

Nesta noite, não a de Clodoaldo - o pai; mas a imortalizada Casa de Lucídio Freitas – o filho -, mais uma vez se enche para homenagear a Literatura Piauiense. Faz acontecer, como é da sua tradição, mais um fato histórico. Registra nos seus anais, movida pelo idealismo ainda e sempre do Poeta Louro, a acolhida democrática de mais um piauiense, humilde e modesto que seja, mas cheio de idéias sãs e de vontades boas.

Quantos pontificaram neste Sodalício, a difundir a verdadeira política, as ciências úteis e as belas artes!...

Como recipiendário, cabe-me, com grande honra, falar a respeito do patrono e ocupantes da cadeira número cinco, esta que no primeiro momento de fundação coube a Edison da Paz Cunha, num segundo momento a José Miguel de Matos; e que hoje me cabe graças a uma eleição democrática, de muita justiça e de muita bondade de coração por parte dos integrantes desta gloriosa Casa.

Um grande piauiense, político de grande valor, que serviu abnegadamente ao seu Estado e ao seu povo, renomado profissional da ciência de Hipócrates, dá nome à cadeira número 05. Areolino Antônio de Abreu!  Nome de rua movimentada desta capital; nome do maior hospital psiquiátrico de nossa querida Teresina. É nome que figura na viva lembrança do povo e que está presente nos compêndios da História do Piauí. Teresinense de nascimento, aqui viveu, aqui dedicou toda a sua vida de trabalho. Médico psiquiatra do mais refinado zêlo e de fulgurante visão de futuro.  Valeu-se da política partidária para laborar em prol do povo, da saúde do povo. Fez-se deputado, vice-governador e governador do Estado.  Fundou o Asilo dos Alienados de Teresina que anos mais tarde veio a se transformar no atual Hospital Psiquiátrico “Areolino de Abreu”. Jornalista e escritor.  Enfim, um grande piauiense!  Por isso, com muita justiça e com muita honra, regozija-se a Academia Piauiense de Letras em ter Areolino Antônio de Abreu como patrono de uma de suas cadeiras, a de número cinco.

Não poderia deixar de mencionar, ainda que de forma rápida, a figura de Edison da Paz Cunha. Escritor, jornalista, advogado, promotor de justiça, filósofo e poeta. Teresinense de nascimento, filho do grande Higino Cunha. Amigo de Lucídio e um dos fundadores da Academia Piauiense de Letras. Primeiro ocupante da cadeira cinco.  Mudou-se para Parnaíba e ali desenvolveu atividades educacionais, jornalísticas e forenses. Por ocasião do jubileu de prata da Academia Piauiense de Letras lançou Vozes Imortais, antologia que reuniu toda a atividade intelectual dos integrantes da APL ao longo de sua existência.

Agora, eis que me chega o momento de falar sobre o último ocupante desta cadeira: JOSÉ MIGUEL DE MATOS! E o faço com prazer intenso e viva emoção.  J. Miguel de Matos: assim era carinhosamente chamado. Nasceu no ano de 1923. Encetou carreira militar no Exército Brasileiro, fez-se valoroso soldado no posto de oficial e foi laureado com a “Medalha de Guerra” por combater na 2ª Conflagração Mundial. Jornalista, antologista, genealogista, biógrafo, poeta. Escrevia quase que diariamente nos jornais de Teresina. Publicou os seguintes livros: “Brás da Santinha”; “Caminheiros da Sensibilidade”;  “Antologia Poética Piauiense”; “Pisando os Meus Caminhos”;  “Síntese Biográfica da Literatura Piauiense”; “Perfis”(crítica literária);  “Evocação de Abdias Neves”;  “Da Costa e Silva - o poeta da saudade”; “Mosaicos”;  “Garimpagem”; “João Pinheiro”;  “Martins Napoleão”;  “A Casa de Lucídio Freitas”;  “Genealogia da Família Moura Fé”. Em co-autoria com Arimathéa Tito Filho escreveu  “Vida e Obra de Autores Piauienses” .  Ficaram inéditos: “Vida e Obra de Da Costa e Silva” e  “Da Rua do Molambo à Academia Piauiense de Letras”, este o livro polêmico bem ao gosto do saudoso J. Miguel.

Sobre essa figura notável das letras piauienses, disse HERCULANO MORAES, seu confrade e amigo:

 

“... Conheci sua luta e sua vida. A viagem de Floriano a Timon, pousando os pés nos talos de buriti das embarcações que desciam o Parnaíba. A casa pobre, rústica, onde um pé de mulungu descomunal começava a tombar, como tombariam, ao longo da vida, os sonhos de ansioso autor de ‘Brás da Santinha’ .

Poeta?  Foi apenas uma vez, na prática, quando escreveu seu ‘canto á rua do molambo’, onde passou parte de sua infância e adolescência. Mas foi poeta a vida inteira, pelo gosto da noite, pelo amor à mulher, pelos paradoxos da existência.

‘Brás da Santinha’ abriu-lhe os caminhos. E veio a crítica, a favor e contra, marcando o estilo polêmico de um escritor de estigmas singulares. Mas não foi a ficção que consolidou sua carreira de escritor. A pesquisa dos principais vultos de nossa poesia deu o tom do seu talento.

 

Prossegue HERCULANO MORAES:

“(...) O ofício de escritor despertou nele o sonho da imortalidade. E foi à luta, registrando uma das mais difíceis campanhas de ingresso na Academia Piauiense de Letras.  ‘Sem trava na língua’, contavam-se histórias as mais diferentes. Umas com o objetivo de fazê-lo recuar, o que não era do seu estilo. Pelo contrário, as refregas sempre o seduziram.  Parece-me que tinha o destino de combater o bom combate e nessa trajetória, quando contrariado em suas opiniões, nem os amigos escapavam. E aqui me incluo, juntamente  com o professor A. Tito Filho. Pouco depois, o coração bondoso o fazia bater à porta de algum de nós, saindo reconfortado em suas emoções.

Extremamente emotivo, de gestos largos, às vezes, ferino nas suas avaliações, mas amoroso e fraterno”2.

 

CAMILO CASTELO BRANCO, o grande romancista português, que escreveu Amor de Perdição, disse certa vez:  “A poesia não tem presente: ou é esperança ou é saudade.”  Melhor seria, pois, que aqui estivesse a falar um poeta. A vida de J. Miguel de Matos, que se transmuda em saudade, muito melhor seria cantada.  E o que dizer do seu sucessor, que representa a esperança?  Mais uma vez, o poeta é que se desincumbiria a contento de tal mister.  Saudade e esperança: o mundo maravilhoso dos poetas!

Literatura, entretanto, não se faz apenas de saudades e de esperanças.  Por isso é que o prosador é chamado para vir testemunhar o presente, registrar o seu tempo, expor a sua visão de mundo. Dito isto, podemos concluir: de poetas e prosadores faz-se o tempo,  que é trindade e é uno, a um só tempo.  Passado, presente e futuro - eis o tempo!   O tempo que nós matamos, o tempo que nos enterra - como sussurrou o defunto Brás Cubas ao ouvido de Machado de Assis, o Bruxo de Cosme Velho. O tempo enterrou Lucídio, enterrou Areolino, enterrou Edison, enterrou J. Miguel...   Falo dos homens que o tempo enterrou...  E por que falo?  Porque tenho o que falar. Tenho a história que os resgata.  Tenho os seus nomes, tenho as suas obras, tenho a sua arte. Tenho bem vivas as suas idéias!  Morrem os homens, nunca morrem as idéias!

É para isto que existem as Academias de Letras: para que o tempo, que tudo leva de roldão, não arrebate as idéias que, não obstante tenham sido elas forjadas no pretérito, cumprem a missão de servir ao presente, para que haja o futuro.  Daí a necessidade de se conservarem as obras e as idéias dos que se foram, para que os que hão de vir possam fazer muito mais e melhor.

Num passado remotíssimo tudo se criava e recriava pela tradição oral. A palavra que fazia a comunicação, que fazia a arte, que fazia a cultura era dita e não escrita. Mesmo assim não se perdia tão facilmente.  Surgiu a palavra escrita, surgiu o livro e a cultura agigantou-se, ganhou o mundo, venceu o tempo.

A arte da palavra não tem idade!

Os clássicos continuam atualíssimos. Os dramas da vida são de hoje, de ontem e de antanho e de sempre.  A mensagem artística é sempre atual. É que a Arte expressa o Belo... E a Beleza, no dizer do filósofo PLATÃO, “é o esplendor da Verdade”.

Nem precisa dizer que a Verdade é a nossa razão de viver, a nossa libertação, a nossa genuína imortalidade.

E viva o livro!  “Um país se faz com homens e livros”, disse-o MONTEIRO LOBATO.  Agora leio na mídia que os passionais da cibernética, da informática e da robótica agouram o fim do livro impresso... E prognosticam o livro eletrônico.  Em novembro do ano passado, foi-se o PLÍNIO DOYLE.  Mas o outro ficou: aí está firme, serena, inabalável a figura do JOSÉ MINDLIN, o grande mecenas, o bibliófilo-mor do Brasil, a nos passar a tranqüilidade de que o livro impresso continuará para todo o sempre a sua função sublime de globalizar a cultura e elevar o homem ao mais alto patamar de sua inteligência.

O poeta contemporâneo SILAS CORRÊA LEITE, a propósito dessa maledicente profecia, lança no papel a sua indignação:

“(...) Alguns arautos da imbecilidade coletiva pregam o fim do livro impresso. Brincadeira de mau gosto. Mesmo com todo o exuberante avanço dos meios de comunicação, as palavras precisam ser impressas/expressas, não apenas os símbolos de tecnologia de ponta, pois a grafia e a fala são extremamente importantes e o universo precisa de diálogo, de exercitar o uso de palavras por atacado. E esse papel sagrado – sustentáculo da espécie humana – mantém-se com o livro; somente o livro poderia fazer estrutura e base dessa continuação ético-plural-comunitária do Ser Humano enquanto Ser e enquanto Humano.  Vieram os provedores, as ferramentas, os lap-tops, os canais on-line, os chips, bips, plugs e outros recursos de mídia e comunicação. No entanto, por incrível que possa parecer a leigos e açodados algozes do apocalipse da cultura, nunca se vendeu tanto livro, nunca o bendito livro deixou de ser um amigo, um companheiro, um utensílio de entretenimento, cultura, educação e lazer à mão, apesar dos pequenos computadores, das tecnologias avançadas de toda natureza. O livro, sim, aquele que nos acompanhou em sonhos e abstrações; em esperanças e iluminuras, em matizes de evolução em todos os níveis e sentidos. O livro, companheiro do silêncio, da solidão mais íntima, da poesia mais exercício de libertação (parafraseando Manuel Bandeira), da viagem mais interior, do paraíso mais hangar ou do salto para o alto. O Livro, bendito seja!”3.     

 

 

III) UMA HISTÓRIA PARA CONTAR: MINHA INFÂNCIA

 

Senhoras e Senhores Acadêmicos; meus amigos:

A Ciência, a Arte e o dedo de Deus me conduzem a este cenáculo das letras piauienses! Quanta emoção sinto nesta hora... Como prosador, mais habituado a entregar as tarefas difíceis aos personagens, sempre me limitei a narrar. Agora, nesta passagem emocionante do romance de minha vida, vejo-me na condição de personagem e teria eu próprio de narrar e descrever o que se passa comigo e à minha volta. Não me bastam as palavras... Socorro-me da ciência e da tecnologia: valho-me das imagens vivas. Elas me dirão melhor amanhã o que hoje se passa aqui. Filmem!, por favor, a ternura de minha família e de meus parentes, a satisfação, a confiança e a esperança dos meus amigos! Filmem esta minha emoção, que dentro em pouco se avolumará mais e mais quando me puser a narrar algumas passagens da minha infância. Já ultrapasso a estação dos quarenta, mas numa hora dessas urge que me transforme em criança.

É como se fosse ontem... 

Uma tarde calorenta de agosto... Venho à luz, não sem causar enormes dores à minha mãe, que logo ao ouvir o meu choro faz-se toda ternura e o sofrimento puerperal cede lugar ao regozijo do amor intenso. Bebo o leite de minha mãe e sob a sustância do peito farto imunizo-me contra os males devoradores de anjinhos. Sara o meu umbigo e eu escapo. Chegam os meus irmãos: um, dois, três.  Breves quatro anos de intercaladas desmamas precoces. Dali mesmo do leito da vida, onde choramingava o meu irmão caçula, recém-nascido, numa alegre-triste tarde de outubro, sob o impacto da eclampsia, partiu minha mãe para a eternidade. Ficamos os quatro, entregues ao nosso extremoso pai e a este mundo adverso. Ainda bem que o nosso mundinho era pequeno. Pequena a casa, pequeno o rebanho, pequena a gleba.  Grandes eram os sonhos!  Grande era o Amor de meu pai!

E agora, nesta noite triunfal, eis que as imagens da infância como que pintam aquarela em minha memória. Vejo o cinzento do capuão de mato ao lado do curral... O barro vermelho da cova de minha mãe... Bem... Represo aqui as lágrimas. Transporto-me para o lado alegre da vida. Canto aqui como cantou alhures o jovem poeta das primaveras: “Oh! que saudades que tenho da aurora da minha vida, da minha infância querida, que os anos não trazem mais.” Vejo as vacas, os bezerros, os cabritos...  As cebolinhas do campo, floridas, no mês de novembro, com as primeiras chuvas. Gigantescas flores de borboletas esparramadas sobre o paul suculento da lama do curral, também no valado das grotas e barrocas, nas prainhas do córrego.  O Paraim, empanturrado, a engolir as vazantes e a devorar os arrozais, os milharais, as melancias e as abóboras em flor. O bando das capivaras, dos quatis e dos guaribas... Como o vaqueiro Fabiano, o anti-herói graciliâneo de Vidas Secas, vejo “o mundo feito de penas”!  Multicolorido com o verde das maracanãs e dos papagaios, o vermelho dos guarás e a nuvem das marrecas, garças e jaburus. Em meio à densa folhagem dos saboneteiros, juazeiros, gameleiras, ingazeiras, pajeús e outros majestosos espécimes da flora graúda do baixo Paraim, aqui e ali, por entre a floresta secundária, degusto travosas frutinhas de creolis, doces bananinhas do mato, melífluos grãos-de-galo, coroatás, mutambas, resinas açucaradas e a doce farinha dos jatobás-de-casca-fina. Ah!... Que vidinha gostosa!  Feita de leite mungido, coalhada escorrida, dedos lambuzados no tacho de doce e nos doces favos dos jataís e das mandaçaias!...  Vidinha perigosa das quedas e coices dos jumentos, das marradas dos carneiros, das dentadas das piranhas, dos mortais da ribanceira e das flechadas da galhada do muquém. Vidinha insalubre... Das frieiras e dos carrapatos, das sezões e dos sarampos!

Vejo-me na minha amada cidade de Parnaguá... Entre a serra encantadora e a lagoa encantada; imensa, de águas róseas maretadas, onde tem morada o curumim enjeitado filho de Miridan. Um tanto acanhado, na casa do avô octogenário, sob os cuidados das tias, em meio à corriola dos primos citadinos, atilados, peraltas... Que chupavam picolés e pirulitos, atiravam de baladeiras, assistiam de coroinhas, fumavam cigarros mansos, aperreavam as meninas na pracinha da igreja e faziam indecências nos escondidos dos quintais. No joguinho do pião ou da bolinha de gude, por qualquer discórdia, lá vinha o duelo: dois riscos no chão, uma mãe, outra mãe...  O tapa, a rasteira, a atracação. O campo do jogo virava rinha. Lavava-se com sangue a honra ultrajada da mãe, que era o risco, pisado pelo adversário atrevido. Algumas vezes fiz tal defesa e me dei mal.  Confesso, não fui um valente soldado do exército de minha rua.

Na Escola Paroquial embasbaco-me com a didática do professor Guida e não acerto as composições sobre o Dia das Mães, a lenda da Miridan, a vida pública e privada do senhor José da Cunha Lustosa, o Barão de Paraim. Depois, salvo do exame de admissão ao ginásio, no meu querido Colégio São José, enliço-me na prosa engrolada dos mercedários espanhóis e não entendo bem as equações matemáticas do padre González Flores. Nas ruas da minha querida cidade de Corrente curto toda a minha adolescência; feita de mergulhos no meu rio de águas lépidas, barrentas, com seu perau traiçoeiro e suas aconchegantes coroas; sob o verde das copas das mangueiras e a sentinela de esguios coqueiros-da-praia. Recordo as tardes alegres das peladas no campinho do Instituto Batista Correntino e as gloriosas manhãs setembrinas sob o rufo dos tambores e os solos dos clarins em homenagem à pátria amada. Miúdo, envergando o brim da fatiota de gala, no adro da Matriz da Conceição, interpretava o Castro Alves e o Casimiro de Abreu. Choviam as palmas e o meu mundo já não era feito de penas; era feito de versos, rimas e sonhos.

Belos tempos!  Belos sonhos!

 

 

IV) CONTAR HISTÓRIAS: MINHA ARTE

 

Eis que dali a um futuro próximo a poesia da adolescência teria de ceder lugar à ciência do homem maduro, pronto para enfrentar a vida e ser útil à coletividade. Bacharel, advogado, julgador. Entrego-me à auscultação jurídico-sociológica. O fato social freme nos meus ouvidos, arde nos meus olhos, solavanca o meu coração. A balança da justiça se me apresenta com palmas pequenas para abarcar todas as vicissitudes da vida.  E o que vejo: a injustiça social, crua, agressiva, malvada, a devorar sonhos a um palmo do meu nariz.  O que posso fazer?  Faço! Vejo, ouço, aconselho, defendo, julgo. Humilde operário na construção desse gigantesco edifício social, o meu trabalho é quase nada... Se pudesse, consertaria o mundo, que a receita eu tenho comigo: neste caldeirão fervente de realidade mundana falta o tempero da justiça social, da paz e do amor.

Oxalá se OSCAR WILDE4, o irreverente escritor irlandês(mais londrino que irlandês), tivesse  razão e a vida, realmente, imitasse a arte! Os poetas, os ficcionistas, os artistas, sonhadores todos, recriariam um novo mundo real e maravilhoso. A Beleza governaria a Terra. A vida ganharia formas divinais: eretas, airosas, altivas; ganharia tetos asseados, mesas fartas, alvos e expansivos sorrisos. A tristeza bateria em retirada e a Felicidade faria morada em cada lar.

Mas é ao contrário que se dão as coisas. Ainda e sempre com a razão Aristóteles, o velho filósofo grego: é a arte que imita a vida!  E a vida é esta: a ignorância e a clarividência, o fanatismo e a fé, a favela e o palácio, o molambo e o luxo, o espírito e a matéria, o amor e o ódio, a guerra e a paz, o bem e o mal.

Algo, porém, se faz presente na vida em qualquer dos dois extremos: os sonhos! Oniricamente a vida se iguala! Sonhamos todos: ricos ou pobres, ignorantes ou sábios.

A arte, que imita a vida, é feita de realidades e de sonhos. As realidades provocam a reflexão profunda, o exercício meticuloso da inteligência, o projeto e a ação; os sonhos feitos de traços, de formas, de movimentos, de sons, de tinta, de versos e de frases provocam o prazer estético e sublimam a alma humana.

Vivo!  Isto é: faço, vejo, sinto, rio, choro e sonho! Valho-me da ciência para registrar a minha visão do mundo. Valho-me da arte para dar vazão às minhas idéias que borbulham em meu intelecto; às minhas emoções que se me derramam pelos olhos; às minhas angústias de animal político que não sabe viver sozinho sem se espelhar no seu semelhante. Escrevo. Testemunho o meu tempo, canto a minha aldeia; de meus devaneios e pesadelos faço prosa curta ou comprida... Crio um mundinho pinóia feito de tinta e papel e nele meto personagens cambembes, encontradiças por aí nas praças, nas esquinas, nas feiras, nos subúrbios, nos guetos, nas favelas, nas ribanceiras, nos brejos e nas grotas de meu chão nordestino, brasileiro.

 

 

V) MEU FANAL: A VERDADE

 

Senhoras e Senhores:

Chego à Academia Piauiense de Letras... Não trago bagagem grande. Não venho para multiplicar, que só valho por um único homem. Multiplicar por um é o mesmo que não fazer qualquer operação aritmética. Por outro lado, não represento a diferença. Pequena parcela é o que sou! Venho para somar e não venho como divisor nem como dividendo. Estou certo de que não aportei no Paraíso.  A felicidade plena ainda continua sendo uma miragem para mim e creio que para todos nós.

Não trago um baú de respostas, por isso digo que a minha bagagem não é grande. Venho fazer perguntas. Perguntas aos mestres, perguntas a mim mesmo.  Nunca, jamais, deixarei de me interrogar. O que vejo, o que sinto, o que imagino: eis o meu questionário, eis o meu universo de dúvidas. A minha ânsia é um dia entender plenamente o meu semelhante, a vida, o mundo. Conhecer por inteiro a Verdade! Não me convence a resposta pífia que a realidade mundana me oferece. Mudar o mundo... Para melhor!...  Este deve ser o trabalho da inteligência humana. Entrego-me de corpo e alma a esse labor. No campo, na rua, no foro, no lar... No meio do mundo, na escola da vida... Aprendendo... Ensinando... Deus por guia e a boa vontade por instrumento de ação. Exploro, ilimitadamente, a minha liberdade; abnegadamente, busco a Verdade, que representa a minha libertação.

Muito obrigado!


 

1 JOSÉ ORTEGA Y GASSET. Filósofo espanhol. Catedrático de metafísica da Universidade de Madri. Criador da filosofia da “Razão Vital”, que é sintetizada em sua famosa frase: “Yo soy yo e mis circunstancias”.  Autor de La Rebelión de las Massas (1929).

2 HERCULANO MORAES DA SILVA FILHO é poeta, crítico literário, ocupante da cadeira 18 da Academia Piauiense de Letras. Publicou este panegírico sobre J. Miguel de Matos no Jornal O Dia, logo após a morte do escritor ocorrida em maio de 2000.

3 SILAS CORRÊA LEITE é poeta e professor, autor de Trilhas & Iluminuras. In O Escritor, jornal da União Brasileira de Escritores-RJ, número 94, janeiro/2001, p. 10.

4 OSCAR FINGAL O’FLAHERTIE WILLS WILDE – “apresentava-se em público com seus longos cachos, casaco de veludo, calções, camisa larga de colarinho baixo, gravata de cores extravagantes. Na mão ou na lapela, sempre um lírio ou um girassol”.  Homossexual. Escreveu O Retrato de Dorian Gray(romance), considerada “obra envenenadora dos costumes londrinos”. Pregou “a arte pela arte” e afirmava a superioridade do artista. Preso e condenado por seu relacionamento homossexual com o belo jovem Alfred Douglas, o Bosie. Faleceu, em Paris, em 1900.


 

 

 

 

 

24.04.2006