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Oton Lustosa


 

REBELIÃO DAS ALMAS — belas narrativas curtas.

 

 

ALFREDO BOSI, professor da USP, que neste março último foi eleito para a cadeira 12 da Academia Brasileira de Letras, um dos mais respeitados historiadores de nossa Literatura, diz que “O conto cumpre a seu modo o destino da ficção contemporânea. Posto entre as exigências da narração realista, os apelos da fantasia e as seduções do jogo verbal, ele tem assumido formas de surpreendente variedade. Ora é o quase-documento folclórico, ora a quase-crônica da vida urbana, ora o quase-drama do cotidiano burguês, ora o quase-poema do imaginário às soltas, ora, enfim, grafia brilhante e preciosa votada às festas da linguagem”.[1]

O conto vem de longe... Segundo MASSAUD MOISÉS, remonta aos tempos bíblicos, sendo o relato do conflito entre Caim e Abel um bom exemplo.  Em língua portuguesa, o conto aparece em 1575, com narrativas de Gonçalo Fernandes Trancoso, as popularíssimas Histórias de Trancoso, que, publicadas têm o título de Contos e Histórias de Proveito e Exemplo.[2]  No século XIX, esta fôrma literária alcança o seu esplendor, com obras de Balzac, Maupassant, Sthendhal, Edgar Alan Poe, Eça de Queirós, Machado de Assis, Anton Tchekov, Katherine Mansfield e outros. De lá para cá, o conto nunca perdeu o seu valor. Nos dias que correm, nesta era da informação, da abundância de editoras e da Internet, o conto permanece no auge. As publicações se multiplicam a cada dia; os sites congregam um número incontável de contistas. O conto e o contista atravessam os tempos. Voltemos ao professor BOSI, que diz: “Em face da História, rio sem fim que vai arrastando tudo e todos no seu curso, o contista é um pescador de momentos singulares cheios de significação.”

Diz o respeitado crítico literário WILSON MARTINS, do alto dos seus 80 anos, que “o conto não é um exercício de escalas a fim de que o ficcionista se prepare para escrever romances, assim como o soneto não é a forma embrionária da epopéia. A prova está em que os grandes romancistas são, em geral, contistas medíocres, e insignificantes os romances de contistas.” [3] Esta sentença dura do mestre da Crítica Literária é lida no Jornal de Poesia. Mas, ali, em entrevista à jornalista Rosane Pavam, ainda bem que o grande crítico se lembra do nosso inesquecível Joaquim Maria Machado de Assis — contista e romancista a um só tempo! Igualmente bom, excelente mesmo, em ambas as espécies do gênero ficção.  Uma pena que ele não tivesse se lembrado, também, do Velho Graça e do seu livro de contos Insônia. Teria sido o grande romancista de São Bernardo, de Vidas Secas e de Angústia, também, um grande contista?  Claro que sim.

Pois bem. Nesta manhã, falamos de FRANCISCO MIGUEL DE MOURA — poeta e ficcionista. Para ser mais claro: poeta, romancista e contista!  Escreveu “Estigmas”, romance de estréia, publicado em 1984; “Laços de Poder”, em 1991; e “Ternura”, em 1993. Seus romances têm merecido elogios e reconhecimento aqui e alhures.  Contista, escreveu “Eu e meu amigo Charles Brown”, publicado em 1986. Em 1999, publicou “Por Que Petrônio Não Ganhou o Céu”.

CHICO MIGUEL — assim é carinhosamente tratado — é um literato que leva muito a sério a Literatura. Formou-se em Letras e fez pós-graduação em Crítica de Arte e ainda um Curso de Extensão Universitária em “Teoria do Romance”. Milita nas lides literárias desde o início dos anos 70. Por longos anos, debaixo da ditadura militar, foi editor da Revista Cirandinha. Ajudou a fundar aqui no Piauí a União Brasileira de Escritores e exerceu a presidência desta entidade. Também, foi um dos fundadores do CLIP – Círculo Literário Piauiense. É membro da Academia Piauiense de Letras, onde ocupa a cadeira 8, que pertenceu a Antônio Chaves, Breno Pinheiro, Celso Pinheiro Filho e Francisco da Cunha e Silva.

Agora calha bem uma pergunta: afinal, está aqui na Casa de Lucídio Freitas o CHICO MIGUEL Poeta?  Romancista?  Contista? Crítico Literário?  Cronista?   A indagação é oportuna, porque ele é autor de bons livros de poesia, de ficção (romances, contos, crônicas), ensaios literários e ainda de traduções. Talvez seja esta uma boa resposta: o nosso CHICO MIGUEL é um polígrafo!  

Ele, que sabe muito de Teoria Literária, que fez estudo aprofundado, por isso mesmo aplaudidíssimo, da obra do romancista O. G. Rego de Carvalho[4], vem de escolher-me para apresentar o seu novo livro de contos “Rebelião das Almas”, nesta manhã de hoje, em sessão solene de lançamento da obra. Estou certo de que a razão primeira de sua escolha reside em nosso companheirismo aqui na Casa de Lucídio Freitas. Uma outra razão seria o fato de também eu escrever ficção.

Honrado e preocupado, leio e releio “Rebelião da Almas”... Tanto foi o prazer da leitura, que a preocupação se foi... Afinal, o meu testemunho de leitor não será tido como estudo crítico da obra. Mas, direi o que vi e senti a propósito da leitura.

Já no primeiro conto da coletânea, deparo-me com uma história muito interessante, que narra a paranóia da guerra na América Latina: um casal de paraguaios, de origem nipônica, viaja à Guatemala, região de permanente conflito, com o propósito de visitar uma feira de livros... O fantástico e o surreal tomam conta da narrativa, proporcionando-nos gostosa leitura, remetendo-nos à lembrança de Ignácio de Loyola Brandão e suas “Cadeiras Proibidas”[5].

            O conto seguinte — “Ela... Capivara” — encerra uma bela história curta, que envolve três personagens: um bancário idoso, que pela vez primeira visita o parque arqueológico da Serra da Capivara, na companhia do seu amigo Lulu... Viagem de ônibus... O impacto do cenário encantador... O encontro com a recepcionista linda e jovem... O visitante, que é o protagonista da história, extasia-se com a visão da serra e encanta-se com a presença da recepcionista. Rola ali um clima! — como diz a galera nos programas de tevê.  Narrativa agradabilíssima, com denso conteúdo artístico. O narrador, que é o autor, como que transforma o seu velho bancário provinciano num quase Dr. Nogueira, aquele jovem de 17 anos às voltas com a presença de D. Conceição, uma balzaquiana, esposa do escrivão Meneses... Tudo quase acontencendo!... E não acontecendo nada, como era do gosto do Bruxo do Cosme Velho, numa noite em que justo tinha de acontecer a Missa do Galo. Ou, talvez, o autor dessa bela historieta da Serra da Capivara, tenha caminhado mais na direção mesma do Vampiro de Curitiba, com aquele  Nelsinho, que dá gritinho histérico quando vê carne fresca: “Ai, me dá vontade até de morrer. Veja, a boquinha dela está pedindo beijo — beijo de virgem é mordida de bicho-cabeludo. (...) Por que Deus fez da mulher o suspiro do moço e o sumidouro do velho?”[6].  O visitante da Serra da Capivara, personagem miguelina, velhusco, um tanto estropiado da burocracia bancária, finalmente, regressa à Capital e lhe perguntam os amigos: — “O que viu na Serra? E ele responde: — Não vi nada e vi tudo.”

Este conto, no meu modo de ver e sentir, atinge em cheio o belo literário.

E as boas histórias se sucedem, todas elas vazadas em narrativa recheada de recursos estilísticos. O autor de Rebelião das Almas, em verdade, não conta casos, não presta depoimento pessoal, não faz relatório circunstanciado de fatos — procedimentos que não condizem com o modus faciendi da boa composição literária. Pelo contrário, o nosso CHICO MIGUEL costura células dramáticas onde nada sobra no tempo, no espaço e na ação das personagens; sem falar no zeloso culto à língua vernácula, que ao longo das histórias vai nacionalizando expressões estrangeiras já meio que incorporadas ao falar cotidiano do povo brasileiro.

Constato, ainda, na boa prosa de CHICO MIGUEL um certo ar de protesto, que remonta à matança de índios desde os primeiros contatos do europeu com o povo autóctone, fazendo-o o autor numa bela metaficção sarcástica à nossa primeira obra literária, a Carta de Pero Vaz de Caminha; seguem-se, nas demais histórias urbanas, contemporâneas, as denúncias de corrupção, violência policial, abandono de menores, fome, sede, miséria urbana e caos social. E nisto anda muito bem o nosso grande contista. A arte é sempre útil. Que fique a denúncia para a posteridade!  Fernando Pessoa, que não era apenas e tão-somente poeta, era, também, além de “grande fingidor”, um grande pensador. A propósito, bradava:  “Só a Arte é útil. Crenças, exércitos, impérios, atitudes — tudo isso passa. Só a arte fica, por isso só a arte vê-se, porque dura.”[7]  E recomenda: “Deixemos a nossa arte escrita para guia da experiência dos vindouros, e encaminhamento plausível das suas emoções. É a arte, e não a história, que é a mestra da vida.”[8]

Mas, o livro Rebelião das Almas encerra, também, grande amor telúrico por esta gleba de Saraiva. Afinal, o contista, que é um vate, e que vive cantando esta cidade em postais poéticos, agora, neste livro de contos — ora rindo ora chorando, amuado, de calundu, dodói do cotovelo —, na pele de personagens convincentes, deita e rola nas ruas e praças desta Cidade Verde. Nas asas da ficção realista, neo-realista ou surrealista; fantástica ou fabulária, depois de longos vôos ao fundão arqueológico da Serra da Capivara e aos grotões do Jenipapeiro, vem, de asinha, prazenteiro, aterrissar nos bares, inferninhos, delegacias de polícia, consultórios médicos... Mergulhar nos rios... Vem subir e descer nos elevadores dos arranha-céus em companhia de uma linda Tiana; vem perambular na companhia de um moleque guardador de carros chamado Zezinho, a quem o Paulinho Perna-Torta[9],  do grande contista João Antônio, fica é longe em sabedoria malandra.

E assim, tranqüilo e feliz, acabo de falar de um livro de contos que li e reli com grande prazer estético; e que me servirá de inspiração para, quem sabe, no futuro, ousar cantar em narrativas curtas a cidade a quem prometi um romance.

 

[1] Alfredo Bosi. O conto brasileiro contemporâneo. Editora Cultrix, São Paulo,  1974, p. 7.

[2] Massaud Moisés. A criação literária – prosa. Cultrix, 13a. edição, p. 15.

[3] Jornal de Poesia.   www.secrel.com.br/jpoesia/wilso11.html

[4] Linguagem e Comunicação em O. G. Rego de Carvalho, editora Artenova S.A., Rio, 1972.

[5] Ignácio de Loyola Brandão. Cadeiras Proibidas, Global Editora, Rio, 9a. edição, 2002.

[6] Dalton Trevisan. O Vampiro de Curitiba, Record, 20a., Rio, 1998, p. 9.

[7] Fernando Pessoa. Antologia de Estética — Teoria e Crítica Literária —. Coordenação e introdução de Walmir Ayala. Ediouro, Rio, 1988, p. 25.

[8] Idem, ibidem.

[9] Paulinho Perna-Torta — personagem de João Antônio. in Leão-de-chácara — um conto da boca do lixo. Cosac & Naifi, São Paulo, 2002.

 

* Oton Lustosa é romancista e contista. Membro da Academia Piauiense de Letras.

 

 

Leia Francisco Miguel de Moura


 

 

 

 

 

24.04.2006