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Jornal do Conto

 

 

Oton Lustosa


 

Cinzas

 

As labaredas dançam ao sabor do vento. Dança macabra... Línguas de fogo lambendo os corpos invisíveis. O fumo, negro, denso, abafando os gritos de horror. No meio da tarde, sob o sol, no meio do mundo, por testemunhas as minhas ovelhas - passivas, estupefatas, mudas -, cometo o mais passional dos crimes. Mato! E o faço por meio insidioso e cruel. Por amor à Arte, cometo um verdadeiro genocídio. Crime premeditado, meticulosamente planejado. Nas noites em claro, vigília maldita, ocorre-me o plano da fogueira.

— “Não estou louco!”

Um crime talvez cometa, não uma loucura. Ou seria o contrário: uma loucura e não um crime. Ou seria um crime louco...

— “Destruir o meu mundo...”

No grande luzeiro estou a sacrificar vidas, muitíssimas vidas. Criei o meu mundo e ele ficou uma pinóia. Destruí-lo é preciso! Os habitantes desse mundo que eu criei desandaram a falar baboseiras, a fazer asneiras. Tornaram-se lesos. Eu, que não tenho contas a prestar a ninguém, senhor do meu universo, deus do meu povinho mixuruca, decidi na sétima noite de angústia:

— Fogo!

Só as minhas ovelhas e os meus cajueiros presenciam as cenas do holocausto. Os bebês de minhas ovelhas empurram para frente as orelhinhas, fazem beicinho, aninham-se entre as suas mamães e titias. As vergônteas dos meus cajueiros me saúdam. Também sou o senhor de minhas ovelhas e de meus cajueiros; dos meus borregos e de minhas rolinhas. O meu mundo que ao final desses sete anos eu dei por concluído, paradisíaco, perfeito, neste crepúsculo se acaba.

— Fogo!

As minhas criaturas condeno-as à morte. Posso fazer isso. Sou o seu juiz e o seu carrasco. Não adianta chorar, clamar, suplicar. Eu posso, eu tenho o poder! Eu tive tinta e papel... Eu tenho álcool e fósforo.

— Faça-se a chama!

Eis que tudo agora é fogo, vermelho, sanguento, em que se tostam as carnes rijas de minhas mulatas. Vejo-as contorcendo-se na fogueira. Sinto dó. Que pena! Porém, a imolação é resultado de plano cuidadosamente esquadrinhado na calada da noite, da sétima noite sem dormir. É necessária, para a salvação geral. Não lhes posso atender as súplicas, conferir-lhes o perdão. Não há o que perdoar, há o que destruir. Santas, pagam por pecadores. Pus no meu mundo seres graúdos para governar os outros miúdos. Foi o meu erro. Quem pode tudo, com tinta e papel, pode errar. Errei.

— Malditos!

Reviraram para cima e para baixo o meu mundo. Danaram-se a fazer, a refazer, a criar. Criar! Criaram situações embaraçosas para mim... Artistas da arte do diabo! Planejei terminar a minha obra de perfeição em sete meses... Por culpa deles - personagens intrometidos -, por sua exclusiva culpa, foram-se sete anos. Enfiaram-se dentro de minha nave e me comandaram dedos e botões. Abriram janelas, portas, telas... Deletaram, salvaram, fizeram de mim - o seu criador -, um mala-direta. Um outro criador fez o mundo dele em sete dias apenas. Eu gastei sete anos. Incompetente sou eu, que me deixei levar por minhas criaturas canalhas. Agora... Não há outra saída:

Tzzzip!

— Fogo!

Recolherei as cinzas, que será a matéria-prima para a reconstrução do meu novo mundo: pós-moderno, transfigurado, ficcional, artístico, belo.

As chamas dançam, meus cajueiros ensaiam dançar também. De cócoras, tal qual um deus-vagabundo, naquela tarde de juízo final, com uma varinha milagrosa traço na areia o plano da reconstrução, enquanto ainda se cumpre a sentença de fogueira. Tenho inspiração... O clamor de minhas criaturas me excita. Passam elas de uma vida para outra, saem daquele mundo impuro e já ingressam no plano astral da Beleza. Até bem pouco eram criaturinhas à-toa. Só com o batismo das chamas renascerão inteligentes, puras, belas. Quem sabe ensinarão às minhas ovelhas o que é a Arte. Dirão: — “Saiam daí desse curral fedido e venham ver como se chega à perfeição!”

Um por um os atiro na fogueira. Caem de asinhas abertas, morcegos nojentos, voando para o baixo, para as profundas do inferno. Descarrego a minha ira no velho, político manhoso, vampiro. Eu o criei cândido; ele se fez candidato e daí metamorfoseou-se em vampiro. Limpo o coloquei no meu mundo. A criatura, que se fez personagem, lambuzou-se de terra e de sangue. Tomou-me o comando, fez-se líder, influenciou minhas outras criaturas e mudou o meu traçado original. Não tinha mais conserto a minha obra.

Eis que o criador amaldiçoa as suas criaturas! Prepara-lhes o inferno onde devem purgar com a vida as suas culpas abomináveis. O criador - de cócoras -, deus sádico, perdulário, vagabundo, irresponsável, queimando um mundinho à-toa feito de papel e de papel-moeda, salário, suor e sangue; valendo-se do testemunho de santas ovelhas e cajueiros santos. Seria o criador um panaca?

Suor correndo na testa, o sangue retesando as veias, entre o céu e o inferno, as minhas ovelhas perfiladas na retaguarda, busco no labirinto das páginas as ações mais sórdidas daquele político patife que me estragou o projeto de fazer do mocinho o herói. Transformou-o em pelego. Político velho cheio de tretas, me tomou o comando e terminou a minha obra com a sua arte vampírica. Agora, no corredor da morte, o velhaco me cansa, brinca comigo de gato e rato. Não lhe encontro o rabo com a vassoura de palha, por isso o emparedo entre as páginas e o atiro nas chamas para padecer e se purificar. Eu o criei cândido, mansinho, bom, justo, perfeito. Ele, por sua própria conta, se fez candidato, elegeu-se, vampirou-se. Tem de morrer, evaporar-se, enquanto é tempo. Senão irá complicar o mundo do meu Deus. Aí estarei perdido! Por culpa dele, do velho, que era o mandatário, o meu representante no meu mundo de letras, curti noites de insônia, comi gramáticas, bebi teoria literária, engoli um computador, sonhei, delirei...

— Endoidei?

— Fogo!

As minhas ovelhas juntam-se às minhas rolinhas. Mortas as chamas, morrendo a tarde, rezam comigo o ofício da Arte, na hora de Deus. Esparramado no chão, verto os meus líquidos impuros. O meu cordeirinho caçula vem lamber nas minhas palmas o meu sal que recolho dos meus olhos. Ergo-me, estou num outro mundo, maior, infinito... À minha frente piramidezinha de cinzas. Sinto que o meu poder me basta, sou capaz de criar e destruir um mundinho pinóia, feito de suor, salário e sangue, sob os protestos da mãe de meus filhos.

Levitando por sobre a relva do meu paraíso cinzento, rodeado de arcanjos quadrúpedes, lanados, ao embalo do canto das rolinhas, vejo o meu mundo voar pelos ares, na asa de uma nuvem de cinzas. Caio em mim, sou puro pó, terráqueo, terroso, terrível, louco! Queimo dinheiro! Tenho contas para pagar, filhos para criar... Terei remorso? A minha Arte me salvará? E minhas criaturas? Ressurgirão das cinzas?

Choro. Minhas ovelhas mansas me lambem o sal do corpo. As minhas rolinhas cantam para mim: Fogo pagou! Fogo pagou!
Quem pagará as minhas contas? Tudo está consumado...

— Cinzas!

E assim se explica o fim que tomou o romance de estréia de um certo ficcionista que renegou a sua arte.

 

 

 

 

 

24.04.2006