Oton Lustosa*
“A história é o romance que
foi...”
Ainda nas
primeiras letras do velho primário, ouvíamos falar de Domingos Jorge
Velho e de Domingos Afonso Mafrense, os dois colonizadores,
merecedores de todas honras da História por terem colocado no mapa
do Brasil o Estado do Piauí, com esta sua estatura meio que
ajoelhada, de barriga grande e cabeça pequena. Mas os livros de
estudos sociais, de geografia e de história do Brasil não davam os
detalhes. Vale dizer, não retratavam o modus operandi de como
se dera tal façanha heróica. Custava pouco pronunciar esta verdade :
o povoamento do Piauí se deu a ferro e fogo! A propósito,
para dar lugar às caiçaras do gado curraleiro, dizimaram-se todas as
criaturas humanas habitantes destes sertões cortados por serras e
rios, campos, caatingas e cerrados.
Mas, por que, mais
tarde, já adultos e instruídos, viemos a saber de tudo isso? Porque
existem os historiadores, que escrevem a História. E a história
retrata a verdade? ANATOLE FRANCE, escritor francês, famoso por seu
ceticismo exagerado, chega a questionar: “Existe uma história
imparcial? E que é a história? A representação escrita dos
acontecimentos passados. Mas que é um acontecimento? é um fato
qualquer? Não! é um fato notável. Pois bem, como é que o historiador
decide se um fato é notável ou não? Decide-o arbitrariamente,
segundo seu gosto e seu caráter, segundo sua idéia, como um artista,
enfim. Pois os fatos não se dividem por si sós em fatos históricos e
não-históricos.”
Bem. Isto de
questionar se a história retrata ou não a verdade é tema que vai
longe. O melhor que devemos fazer é raciocinar singelamente como um
tal de PIERRE DANINOS, citado no Dicionário de Paulo Rónai: Diz
ele: “São os fatos do dia que fazem a história, mas são os ditos
do dia seguinte que a escrevem.”
O nosso Estado,
que vem dos idos de 1662, no dia de hoje, quando se lança o livro
Piauí em Foco, é passado em revista por um historiador neófito,
mas com o gabarito de um expert, escrevendo a história que os
fatos fizeram em nosso Piauí de antanho, desde os tempos remotos de
Domingos Jorge Velho, Francisco Dias d’Ávila 2o.,
Domingos Afonso Sertão e outros bandeirantes; incursionando ele – o
autor — por reflexões a propósito da realidade piauiense, com ênfase
na história, sociedade, economia, política e cultura até os dias
contemporâneos.
Nesta manhã,
Reginaldo Miranda lança o seu mais recente livro: PIAUÍ EM FOCO, uma
coletânea de crônicas jornalísticas que contemplam os mais variados
assuntos.
Por sua
determinação de historiador, já com algumas obras publicadas, tais
como: Bertolínia: meio e homens; Aldeamento dos Acoroás; e uma
terceira — São Gonçalo da Regeneração —, em fase de preparo. Esta
última virá acrescer à historiografia do Piauí e fazer justiça ao
município de Regeneração que, embora como entidade municipal só
tenha alcançado emancipação política a partir de 1931, é de 26 de
setembro de 1772 que data a sua fundação, com o aldeamento dos
índios Acoroás, no manancial das nascentes do riacho dos Cocos,
formador do rio Mulato, afluente do Parnaíba.
Este livro
Piauí em Foco é fonte de inspiração para um ficcionista! Talvez
por seu conteúdo histórico. A propósito, alguém, lá da França
iluminista, já bradou: “A história é o romance que foi... O
romance é a história que poderia ter sido.” Inspiração não
faltaria a um ficcionista ao mentalizar as brutalidades perpetradas
por um Francisco Dias d’Ávila (segundo) que, não obstante lhe
corresse nas veias o sangue da velha índia Paraguaçu, matava esses
seus parentes índios como quem matava insetos; para atender às suas
ambições pessoais de latifundiário-mor e, também, para atender ao
abastecimento de carne aos exércitos governistas do litoral que
lutavam contra invasores franceses e holandeses. Realmente, daria
um enredo tragicamente fascinante! Senão vejamos: aqui, nos sertões
de dentro — do rio Salitre, em Sergipe, a esta banda do rio Parnaíba
—, nos pastos bons das nações Pimenteiras, Jaicós, Timbiras, Acoroás,
Guegueses e muitas outras, um descendente da índia Paraguaçu matava
índios para criar bois; e, ao mesmo tempo, matava bois para
alimentar exércitos formados por índios, negros e brancos! E como a
guerra faz enriquecer a alguns poucos, Francisco Dias d’Ávila(segundo)
fez-se dono do Brasil setentrional! Os franceses se foram... Os
holandeses se foram... E tudo se deva aos currais e à cozinha da
Casa da Torre de Tatuapara! Que exércitos, como sacos, de barrigas
vazias não se põem de pé! E assim se escreve a história do Brasil e
do Piauí. Ou seria o romance
Bem. A história é
o romance que foi... O romance é a história que poderia ter sido.
Um bom romance não
dispensa conflitos. Aliás, um romance só se faz com conflitos, e
estes se fazem com fome e fartura, pobreza e riqueza, vida e morte,
a cruz e a espada, o divino e o profano, o amor e o ódio, a verdade
e a mentira, Deus e o Diabo.
Reginaldo Miranda,
jovem advogado bem-sucedido, literato de qualidade, historiador
vocacionado, parece-me que de propósito, com este seu novo livro
Piauí em Foco, vem cutucar inspirações adormecidas de muitos
romancistas por aí ou por aqui. Com estas suas crônicas de conteúdo
lítero-histórico-político, vem mexer com este nosso Piauí velho,
feito de piauiguaras, miridans, barbas-ruivas, cabeça-de-cuia e
outros bichos do outro mundo; de Mandu Ladino, João Marcelino e
Cacique Bruenque, valorosos homens tidos como bichos — neste
mundo-cão mafrensino, de vacas de pé duro, vaqueiros de gibão,
agregados de enxada e facão, pangarés suarentos e cachorrada
latideira; de João do Rego Castelo Branco, Zezé Leão e outros
coronéis facionorosos! Velho Piauí rico!... de Bernardo Gago, com
suas curraleiras malabares... e de Lourival Parente, com seu gado
pé-mole, raça de gigantes clonados!... de Leonardo das Dores, o
político/poeta/guerreiro/inventor e de Alberto Silva, o simples
engenheiro, que por acaso é político!... de Simplição da Parnaíba,
com seus escravos cantores e o seu porto salgado; e de João
Claudino, com o seu povão calorento de Teresina e os salões
refrigerados do seu Shopping Center!
Piauí!... da musa
e da saudade e do protesto!... de Licurgo de Paiva, de Da Costa e
Silva e de H. Dobal!
Inspirações assim
nos batem ao ler este novo livro de Reginaldo Miranda —
Piauí em Foco.
Uma coletânea de reflexões sobre o nosso querido Estado, sua terra,
sua gente, sua história, sua dor, sua ambição, sua contradição na
riqueza e na pobreza, seu presente e seu futuro. Qual será o seu
futuro?
*OTON LUSTOSA é contista e
romancista. Magistrado. Membro da Academia Piauiense de Letras.
Oração proferida na manhã de 20.9.2003, por ocasião do lançamento do
livro Piauí em Foco, de autoria do historiador Reginaldo
Miranda, no auditório da Academia Piauiense de Letras.
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