Oton Lustosa*
Chão das Carabinas
Entre uma e outra ribanceira, lá vem o
grande rio... Caudaloso, de águas barrentas, ora rasas ora
profundas, assim de arraias e piranhas e outros bichos traiçoeiros.
No cocuruto das margens a mata rala dos paus-terra, caraíbas, ipês e
um sem-número de espécimes outros, majestosos, a estender-se cerrado
adentro e afora, indo perder-se nos confins daquele vasto chão
tocantinense. Para trás fica o lugarejo: seis ruas, um largo, uma
igrejinha... Para frente, um tantinho só, fica o porto, ou seja, o
caidor. Entram ali os bichos como se, realmente, caíssem, tal o
acentuado do corte, formando um despenhadeiro. No talhado abrupto,
cascos cortaram a terra arenosa e fizeram passadiço deslizante sob
pastoso colchão de areia.
“O berrante estridula, enchendo a
vila com um som alegre. O gadame embioca na estrada da passagem do
porto que dá para o beiço do barranco do rio Tocantins. A peonagem,
aos gritos e estalos das pinholas no ar, arrodeia a boiada. Os
primeiros bois descem o caidor. Homens contratados para manguear a
travessia da boiada, de cacete às mãos, pulam n’água e vão tangendo
os bois pelas laterais. A tropa é conduzida a nado, segura no
cabresto pelos peões de dentro das canoas. Do outro lado, já montado
no seu cavalo, Noratão, do alto do barranco, repica o berrante
chamando a boiada. O primeiro boi pisa a terra firme! Depois
outro... Mais outro... Enfim a boiada toda. Noratão continua
repicando o berrante e a peonada entra a aboiar, em volta dos bois,
com os cavalos assoprando e as loncas dos pirais estalando no meio
da curraleirama ronceira: - Ei boi! Ei vaaaca!... Ei boooi!...”
Eis o cenário que inspira o escritor
tocantinense MOURA LIMA a cantar a sua aldeia e já,
irreversivelmente, ir-se tornando universal nas páginas fascinantes
de Serra dos Pilões, Veredão, Mucunã... E agora Chão das
Carabinas, este o seu mais recente trabalho literário, que tenho
a honra de manusear em originais. Conhece o literato - advogado e
agrimensor - esse meio-mundo de chão bruto e traz para leitores
curiosos, turistas então da boa prosa regionalista, passeios
fílmicos assim fantásticos através da geografia e da história; de
figurantes e personagens o povo com seus tipos desazados, ora
submissos ora impetuosos; dominados e dominadores a um só tempo,
conforme os ventos da politicalha coronelesca que partem dos burgos
e varrem os sertões.
O Centro-Oeste do Brasil parece estar
fadado a produzir este tipo de prosa. Tudo começou com o
mineiro-goiano Bernardo Guimarães, que escreveu O Garimpeiro;
depois o outro Bernardo... Aquele de Corumbá de Goiás, que foi
prefeito de Goiânia, fundador de Universidade e o número 1 na Casa
de Machado de Assis: Bernardo Élis! Conhecia ele esse vasto mundo
de campinas e cerrados, tremedais e veredões. Deixou a sala de aula
e o gabinete político-partidário... Embrenhou-se no mato para uma
conversa tête-à-tête com os sertanejos fazendeiros, tropeiros e
jagunços; donos da terra, dos bichos, das gentes e dos votos. Teve
conversa franca com Wolney e Totó Caiado. Seguiu as pegadas
frescas, ainda sanguinolentas, de Aldo Chiquito, Roberto Dourado,
Abílio Batata e outros facínoras. Testemunhou a peste e o pavor. E
o resultado foi a produção do grande romance O Tronco, que
extasiou e comoveu o país, quer nas páginas quer nas telas.
Mas... O grande autor de Ermos e
Gerais não contou tudo o que viu e o que sentiu. Tinha muito
mais para contar. Num saudoso Veranico de 1997, voou Bernardo
Élis para o além antes da missão cumprida. O trabalho tinha de
continuar. Veio a benfazeja política divisionista. Goiás partido ao
meio. A ponta de cima, que não era cabeça era barriga, de repente se
impõe: pensa, ergue-se, caminha! Altivo entre os demais da
Federação, surge o Estado do Tocantins! Tem História, tem Economia,
tem Cultura!
Motivado, certamente, pela grandiosa
ocorrência institucional, um dentre os tocantinenses chamou a si a
responsabilidade artístico-literária de dar seguimento ao projeto de
Bernardo Élis: cantar e cantar o chão e o povo! Ainda que esse
cantar seja feito de ais, murmúrios, gemidos, papoucos, roncos,
estouros e outros sons esquisitos ouvidos nos matos, nos veios,
vielas e ranchos... Quem sabe no campo-raso dos terreiros nas
refregas faiscantes de punhais e bacamartes.
Chão das Carabinas é o novo
canto de MOURA LIMA. Romanceia aqui a história sangrenta da Vila do
Peixe, aquela saudosista dos idos de 1936, plantada à margem do
Tocantins, modorrenta, com sua meia-dúzia de ruas, o largo, a
igrejinha... As duas casas mais importantes: a do coronel Bentão e
a do coronel Fibrônio. No meio o povo rude, o gado pé-duro e a
política rasteira, safada e assassina. Como horizonte - o céu da
ignorância; como certeza - a morte. No enredo artístico - a visão
daquele mundo horrendamente humano: feito de ambições, traições,
violência e sangue.
*Romancista/contista. Membro da
Academia Piauiense de Letras. Juiz de Direito em Teresina. Este
texto refere-se às orelhas do romance Chão das Carabinas do
escritor tocantinense MOURA LIMA, da Academia Tocantinense de
Letras.
Leia Moura
Lima
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