OLINDA MARIA RODRIGUES PRATA
A
Edith de Oliveira Rodrigues, minha mãe, que me apontou o lado luminoso da vida.
If poetry comes not as naturally as the leaves to a tree it had better not come at all.
J. Keats
O lugar Real do poeta na poesia
de Olinda Maria Rodrigues Prata
Por
Heloísa Prazeres
Resguardada pelo pudor da autora a Obra que vem a público é o seu repositório afirmativo de vida contra a morte. Por decisão dos raros que acessaram esta carta-projeto de poesia que pede passagem, “Papéis do Outono” guarda fidelidade à sua designação apenas pela tardia inserção no sistema literário, até então circunscrito a reduzidíssima recepção.
Trabalho de poeta, cujo portal é signo de busca e excesso de territorialidade, estes versos, talvez também os pudéssemos chamar – pedindo licença ao poeta chileno Pablo Neruda – Walking around ou Residência en la tierra.
Um “não-lugar” ou “um lugar possível”, este é o espaço ficcional cuja visibilidade de sentido não coloca para dormir o seu leitor, lança-lhe, ao invés, aos olhos, poeira de prata, de beleza consubstanciada no viés solar, na face que redunda em uma ars poetica, que reflete sobre o seu próprio fazer, conforme o poema “O Beija-Flor”. Ou, com idêntica sutileza, recolhendo e consagrando instantes poéticos, como se fora discípula do modo de articulação literária de Matsúo Bashô, com o frescor do haiku japonês, quando escreve:
De som,
para emoldurar
A lenta
elegância do balé aéreo.
(Graça)
A gramática de sonho capturado pelo instantâneo da máquina de retrato, que resenha um dos modos desta lírica, articula-se antinomicamente com um lado noturno, que apagando o fulgor do metal nobre, impõe o aço da faca que revoluciona e comete, domésticos, pequenos assassinatos, mesmo se flexionados nos versos irretocáveis do professor de língua portuguesa:
Guardei sua
foto
No bolso do
coração
E sorri
aliviada
(Filme-Intervalo)
Ou:
Rígida ao
meu olhar parado
É morte.
Mesa que me
viste em aflição, indiferente,
Hoje te
vejo, estática na mesma cor e
Meras
lascas de tempo te laceram.
(Sala 12)
As tensões expressas na captura do real, as matrizes subjetizantes desta lírica filiam-se a grosso modo à dicção romântica. A persona adere à face do emissor e o eu poético superdimensiona-se, como ocorre, por exemplo, no poema “Coexistência”.
Como anotou Theodor W. Adorno (1958) o autoesquecimento do sujeito, na lírica, entrega-se à língua como a algo objetivo e saltos acrobáticos serão sempre dados refutando uma angulação exclusiva de autoreferencialidade. Rompem-se as cordas da lira, desarma-se a melopéia e são vibradas notas carregadas de densidade dramática, que, pelo inusitado, instaura a perplexidade e o riso – o humor, o bom humor como aquele de Manuel Bandeira – “stern brother” que salvaguardou sempre a confluência poesia e crítica, precisamente como ocorre na expressão da poeta:
Porque ser
inútil e gentil
Pode ser
muito bom para os reis da Inglaterra
Não para
mim.
No carnaval eu vou sair de touca,
(Ato Institucional)
A poesia de OMRP dialoga, assim, com a fértil tradição moderna que reuniu poesia e crítica. Poesia de extração lírica perpassada pela dimensão que elege o escritor como leitor; ao longo da obra poética, produzida em sigilo, pelo dom do anonimato; ao longo da vida inteira.
A autora homenageia e captura, com leveza, modos de dizer, intertextuais, de poetas europeus do final do século XIX e alvorecer do século XX, notadamente parnasianos e simbolistas da estirpe de Antero de Quental, Cesário Verde, Antônio Nobre e os da geração em torno da Revista “Orpheu”- Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro - , mestres prediletos, que operaram a revisão da comunicação lírica (Baudelaire, Rimbaud, Verlaine) e das expressões plásticas (Renoir, Van Gogh, Chagall) e musical (Chopin, Beethoven).
Determinar predileções e contatar os mais queridos é algo externo a esta poesia que se faz substancialmente de um material confessivo marcado pela radicalidade.
Nesse universo conheceremos a sofisticação do verso erudito, marcado por uma sensibilidade de “faber”, econômico, instantâneo, pleno de tomadas fotográficas, de ângulos privilegiados, atrás dos quais, vamos encontrar a voyeur globe trotter, poeta, fiel à linhagem expressiva de um Cesário Verde no Sentimento de um Ocidental, conforme se pode ler:
Desdobradas
ao infinito
Pelos
enormes espelhos laterais
Haurem sem
pressa o tépido chá,
Bebida
narcotizante
Que adoça os temas metafísicos.”
(Confeitaria)
Intitulada “Papéis do Outono” esta obra são, com efeito, folhas desprendidas de um caderno imaginário cujos frutos de linguagem discutem sobre o lugar real do homem sobre a terra.
Poética do locus, manifesta a figura do escritor-sempiterno, em trânsito cego. Mediatizadas pela linguagem as expressões do lírico delimitam-se neste projeto por um entorno, que, citando Gaston Bachelard, estamos designando como poética do espaço.
Signos como “a casa”, “o sofá”, “o quarto” contextualizam simbolicamente abrigos claustrofóbicos: casa colada às costas perseguindo meta jamais alcançada.
Ministério de poesia, ofício cotidiano de inventar novos domicílios, na economia da obra consagra-se o momento presente, “Hoje estou atacada de poesia” no modo solar, em tensão com o seu oposto – espaço onde se escreve com o negror da tinta, sobre aquilo que a experiência da dor quer traduzir em poesia: “Meu olhar sobre o mundo” e “Entre este e o outro espaço”.
No quarto momento do livro, “Meus olhos transeuntes”, nova perspectiva abre-se no compasso de leitura e cosmovisão. Descortina-se um “devir” que sinaliza o lá como horizonte possível. Sucede, portanto os blocos iniciais de sentido, sinalizados pela captura estética do momento celebrado em tensão com a racionalidade da dor, esse novo giro que deambulará pelo mundo (sem metáfora); “walking around” como pedagogia de busca.
A viagem simbólica que fazemos na recepção da Obra
aproxima a autora da perspectiva do artista “andarilho”, aquele que como Luís
de Camões, na poesia e Turner, na pintura, desinstalaram-se para viverem no campo
de batalha a luta pela expressão.
No último núcleo deste “livro do peregrino” estão reunidos poemas cujo objeto é a memória. Tempo e espaço provisoriamente resgatados na apreensão do passado, de onde sobressai “a saudade do eu ter sido” que alimenta a lírica tradicional (notadamente a ibérica), cujo referencial foram as primeiras letras da autora.
A errância e a categoria de insuficiência que, dialeticamente, coloca a autora – tão múltiple – em dimensões de busca do lugar real do poeta no mundo dão conta do estatuto de grandeza conferido pela sua palavra, buscando redimir-se de nossa falta essencial, enquanto seres da terra vislumbrando a condição sobrenatural do bicho-homem.
Salvador, 11
de março de 2002
BREVE APRESENTAÇÃO
“Un
poème est un mystère
dont
le lecteur doit chercher
la clef”
Mallarmé
Eis que nos alcança a poesia
de Olinda Maria Rodrigues Prata, ora estreando literariamente com seus “Papéis
do Outono” (não fora o outono a estação da colheita).
Poeta, viajante, Olinda
exerceu por profissão o ensino do Francês. Atualmente aposentada, é tradutora
(ver nota biográfica, ao final do volume).
Já a presente coletânea, com ser um presente, significa também o resgate de versos que tardavam inéditos e esquivos. Mas que, hoje, nos é dado percorrê-los, ao sabor de nossa curiosidade de leitores-convivas.
Estão aqui reunidos cento e
poucos poemas, expressiva mostra do universo poético da Autora, e suficientes
para dizer-nos de suas afinidades estéticas, da escolha de seus temas, de sua
invenção e novidade.
São poemas concisos e
multifaces, nos quais se pode flagrar – contida, subjacente – certa pulsão
criadora a conduzir a mão afeita da artista.
A matéria, liricamente
trabalhada por seu engenho, é aquela natural à poesia: as intercorrências do belo,
as mil articulações entre as aparências do real e a realidade dos sonhos, o
“sentimento do mundo” e mais o tempo e o tempo paralelo da memória...
Seus processos, na
organização do poema, tecem um fino jogo de imagens, que os sentidos captam e
subvertem:
“Minha mesa de rendas sobre a rua
Suspensa em retângulo impreciso,
É a noite duplicando nossa casa
Como o lago devolveu Narciso.
E, eu, náiade em duplo etérico,
Nado nesse sonho surrealista”.
Vidraça
Mário Quintana advertiu que
“ser poeta não é dizer coisas, mas ter uma voz reconhecível, dentre todas as
outras”.
Pois bem, o canto de Olinda
Maria Rodrigues Prata soa-nos caracteristicamente seu. Pelo tom humanista e
pela dominância das questões existenciais. Por sua individualidade a intuir, em
recolhimento, o ritmo e o desenho do verso, que lhe chega espontâneo e maduro.
Segundo os teóricos, findo o
ato de criação, o objeto estético deveria ser descolado do artista para – em
órbita diversa – ganhar do público apreciação mais desenvolta, percepções diferenciadas
e, indefinidamente, atuais.
Mallarmé, transcrito em
epígrafe, anotou que “Um poema é um mistério, cuja chave deve ser procurada
pelo leitor” (tradução de Paulo Ronai).
Se assim é, está posto um prazeroso desafio à sensibilidade e ao espírito daqueles que se acercam da arte.
Mereça “Papéis do Outono” o
favor de seus leitores e propicie, também a eles, a mais agradável convivência,
até porque o mistério da poesia (eterna) não regateia sortilégios.
BA. Abril/2002
CADERNO 1
A MÃO TRANSITÓRIA
“Les privilèges de la beauté sont
immenses. Elle agit même sur ceux
qui ne la constatent pas”.
J. Cocteau
O pássaro parado
no ar
É ilusão fabricada pela máquina,
Mas nem por isso menos real
Que o pássaro que voa.
Colibris que povoam minha mente,
Seus frêmitos líricos cintilam
Cor e movimento aguçando
O sentido do milagre.
E a mão transitória que flagra o instante,
Paralizando a dança,
É milagre também.
As cigarras cantam
Ao findar do dia
E tudo é incerto.
Salvo a lua,
Recorte alvo e exato
No céu cinza
Da quase noite.
Agora é Centenário
O nome do bulevar
E eu passo, motorista sonhador,
Os olhos daqui a dois meses
Quando, provavelmente,
Estarei no Canadá.
O mar, azul quadrado
Pela janela, irrompe
Sem rasgá-la, de repente
Como se, de súbito,
Surfista invisível
Me inundasse de sorriso.
A vidraça sombria me devolve
Diluída no azul que desce
A tela de Gaughin
E o pássaro que passa.
Se o olhar se espraia nas ondas do mar
Se o pé emperra nas ondas do tempo
É o simples medo (de um dia)
O vento me carregar.
Onde dormirei pouco importa
Não é o coxim macio
Nem a esteira molhada
Que faz o sonho melhor
Onde dormirei pouco importa
É o despertar que planejo.
Chagall, na banqueta vidrada
Do posto de gasolina,
Tuas figuras transversas
Têm existência real.
O mundo virado existe
E não cai,
Basta o estarmos atentos.
A Colombo tem encantos
De passado reconquistado.
As duas mulheres
Desdobradas ao infinito
Pelos enormes espelhos laterais
Haurem sem pressa o tépido chá,
Bebida narcotizante
Que adoça os temas metafísicos.
Na imagem congelada
Elas nem se apercebem
De que a vida é para ser sorvida
Parcimoniosamente
Como a tarde de abril que não volta.
O trem-bala belifica a paisagem
Em sua brusca irrupção.
As flores deitadas no verde
São disparos coloridos,
Instantâneos gravados
Em cada janela, vitrine
De natureza animada.
O trem-bala come o tempo
E eu faço a montagem final
Deitada no meu sofá.
O retrato recriado
Esvaziou-se na espera
No fôlego preso
Do povo.
O instantâneo prolongado é o
“Cauchemar” que nos prende no
Tempo dilatado e asfixiante...
Matei o homem
Guardei sua foto
No bolso do coração
E sorri aliviada.
O mar da Ribeira continua no céu.
Há um êxtase de claridade e calor,
Indescritível como um orgasmo inocente.
Embaralhei o sonho e a vida
Porque as casas da Boa-Viagem
Na calma das onze horas
Eram um filme da Metro
E eu estava no estrangeiro.
Minha criança vive comigo e não a quero,
É feia, triste e confusa.
Ter que levá-la até o túmulo pesa.
Não a amo nem a mato
Porque sofro se perdê-la.
Tento outras no ofício de esquecê-la
Porque temo que um dia, de repente
(e eu sei que um dia)
Ela assuma o seu rosto onipresente.
As garças esgarçam-se no ar
Róseas e aquáticas, balançando-se
No chão subitamente envidraçado
E frio.
Ao fundo Chopin torce suas tranças
De som, para emoldurar
A lenta elegância do balé aéreo.
Meu ser mais profundo é a beleza...
E com isso vaporizo-me,
Vagando de costas pelos séculos
Numa escolha precisa
De gestos, ângulos e cores.
Meus ritmos harmonizados
Para sempre.
O diamante galático
Pode ser simplificado
Num quadro de Botticelli
Ou num verso de Rimbaud
Que me importam
As poltronas e os vasos importados
Se são reais?
Só o ilusório me importa
Porque nele me acho.
Fellini, me leve em seu navio
De Sica, me abrace em seu jardim
Botticelli, me devolva.
Meu corpo de lata
Frágil folha-de-flandres
Dilata-se, dilui-se
Em lágrimas gasosas.
Afogada em gás carbônico, torço
O pescoço ao futuro e
Crio dormentes brilhantes
Carregados de alegria.
Vinho velho, embriague-me,
Volte-se para mim...
As rosas adormecem no palácio
E o vento roda nas vidraças.
A orquestra em pausa
Eu menor, nua, eletrizada.
Na menopausa.
As rosas adormecem no palácio
E eu giro, gira na calçada.
No carnaval eu vou sair de louca
Porque ser inútil e gentil
Pode ser muito bom para os reis da Inglaterra
Não para mim.
No carnaval eu vou sair de touca.
Eu pulo no palco e grito,
A luz se acende
O silêncio é cúmplice.
Aqui me exponho e guardo-me
Eu, espelho deformante ou complacente,
Me rasgo, choro, cantarolo, explodo.
Enfio a faca contundente
No primeiro que estiver à frente,
Fico nu, tomo sorvete
Em xícara de chá das cinco.
Aqui o silêncio é cúmplice
E até o riso.
Eu me recolho no teu silêncio
Enquanto as aves passam
E o dia adormece
Eu passo tu passas ele passa
Verbo fundamental indefectivo
Para todos nós seres comuns
O silêncio é minha mãe
(Tout passe tout
casse tout lasse)
Tem um poeta solitário
Que ronda essa casa velha
Com o ar distante dos que sabem
O vazio das coisas concretas.
Sobe a escada em caracol
Vê as crianças pulando
Nas tábuas que, quebradas,
Gritam.
Na casa repleta
Vagueia distraído
O poeta deserto.
A injeção de morfina
Ou a estricnina
Podem ser boas
Para a menina
Que brincava com boninas
E hoje morre devagarinho
Dentro de mim.
E eu morro de pena dela
Que começou a desintegrar-se
Com a bomba de Hiroshima.
Rosa de Tóquio...
Menina da bonina...
O barco azul enlouqueceu.
Eu me vejo no cristal dos meus óculos,
Cara gorda, plácida comparsa,
Centrada por mil rostos familiares
Que se irisam...
Eu, mestra, e meus pupilos
Duplicados na outra lente
Irrisórios infinitamente.
Hoje estou atacada de poesia
Busco meu ritmo
Até minha letra está mais bonita
Não quero dizer nada
Apenas nadar nos lagos
Das minhas fantasias
Não há motivo algum
Para estar alegre ou triste
Há somente um tempo vago
No espaço de uma vida
Que precisa ser preenchido
Com palavras, desconexas que sejam.
O que importa é deixar
No papel ou no ar
Cascas sonoras passíveis de demonstrar
A existência efêmera
De um universo pessoal.
As palavras me povoam
Como cisnes ondulantes
No meu lago azul Itamaraty.
Eu as busco, elas mergulham
Eu espero, elas meditam
E, no seu mutismo egoísta,
Não me ditam o desenho
Que posso fazer com elas.
Encasteladas e altivas, ignoro-as.
São ingênuas, eu também,
Me beliscam, eu sorrio
E corro pelo palácio
As tranças soltas no espaço
Sem travas, coletes de aço
E me digo: “poesia é fácil,
É só gostar de brincar”.
Em braçadas contínuas ele vai.
O mar alarga-se desdobrado
Em ondas brancas que bordam
O azul cada vez mais distante
E luminoso como uma tarde de abril.
Ele vai e vai, a lances largos
Sobrepõe-se ao ímpeto das águas.
A praia, distante, é um lençol
Macio e muito branco que se estende
Lá longe à sua vontade fremente.
A sorvos longos o azul ultrapassado
Entrega-se a seu corpo sobrenadante,
Que aflito vai, indiferente ao vento,
Ardente por chegar.