CADERNO
2
MEU OLHAR SOBRE O MUNDO
Ah, o mundo é
quanto nós trazemos.
Existe tudo porque
existo
Há porque vemos
E tudo é isto, tudo
é isto!
Fernando Pessoa
O disco roda
A jovem gira
Me olha.
Num olho só, a luz,
O som, a beleza.
Eu também quero deixar
Meu olhar sobre o mundo.
Uma nesga de janela iluminada,
Ao fim de uma rua entardecida,
Como um adeus prévio,
Assinado Olinda.
Li nos olhos da alvorada
O segredo do instante
Vi na boca da noite
O limite da existência.
Somos feitos de faíscas
Inconseqüentes
Ao contrário do poente
Que é belo todas as tardes
Impreterivelmente.
Santa Teresinha do Menino Jesus,
Gostavas Dele porque menina eras
E continuas.
Eu envelheço, e como!
O desejo do abraço largo
Que possa conter todas as criaturas
Está minguando,
Estou povoada de ódio
E já não sinto remorso.
Tenho quatorze anos
(a vida assusta lá fora)
Minha sombra só afugenta
Passarinhos tremeluzes.
Minhas folhas voam-se aos ventos
Douradas no azul do céu.
Verdoengo ser vivente
Plantado neste chão seco,
Como te invejo andorinha
Mesmo sendo de papel
Verdes folhas, doces tintas
Preciso de um mata-borrão!
Minha mesa de rendas sobre a rua
Suspensa em retângulo impreciso
É a noite duplicando nossa casa
Como o lago devolveu Narciso
E eu, náiade em duplo etérico
Nado nesse sonho surrealista.
Minha casa é um barco branco
De velas coloridas.
O vermelho, o branco e o azul
No verde se balançam.
No azul eu me debruço
Tentando ver no crepúsculo
O que há de tão igual
Ou de tão diferente
Entre o éter e o arco-íris.
A voz mansa e firme
Vinha-me chamar do sono.
Era morena e baixinha.
A ladeira descia para a praça
Metade na sombra das quatorze horas.
Mãos trêmulas agarravam fortemente
A xícara, o pires, seus tinidos.
A rua serena está vazia.
A velhinha apóia-se na janela
Devagar, quase uma sombra.
O brilho da praia reflete a sombra do pássaro
E então meus passos me entregam ao mar
Que me circunda.
Nele meu corpo,
Envolto, embate-se
Gozando o poder das ondas
Onde finge que se funde.
Meu corpo visto da janela
Do sétimo andar
Hediondamente exposto
Ao olhar das crianças do prédio
Impede meu pulo.
Voando no paço
A imagem da noiva enlouquecida
Ronda-me, buquê em ofertório.
Esfinge desflorada,
Indaga-me sem ver-me.
Fantasma levemente inquietante
Na vaga persistência do seguir-me
Segue...
Meu incansável sondar,
Labirintos circulares,
Desvela meu ser
Inocente.
Meu calendário me diz
Que sou estrela pequena,
De pouco porte, brilhante,
Girando e piscando longe
Com medo de escorregar.
Quando os carros dormem
Aurora fica bonita
Eu de noiva confeitada
Viajante dormente
Viajante imaculada
Viajante demente.
Quando o sol se põe
Os carros ficam doentes.
Restos de sombra de angústia
Rastros de rostos molhados
Raios de sonhos escuros
Não posso viver no presente
Prefiro viver no passado.
Passados de muitas angústias
Presentes de muitos passados
Meu grito escuro no quarto
Não basta ao homem do asfalto.
O homem que grita na rua
Não olha meu rosto molhado.
O sobrado sombreado
De acácias amarelas
Cochila ao sol que esmaece
A luz da cortina de flores.
Minha paz é um solar
Ao cair da tarde
E eu estou lá dentro.
Imóveis, os móveis espiam
O circular macio das velhas senhoras.
A louça é a mesma
O oratório está sempre limpo
Por mãos que conheço e não sei.
Os mistérios do sobrado são mistério
Ela não é minha avó
Mas completa cem anos.
Seu olho de viagem me observa.
Atrás dele entrevejo paisagem que não sei.
Vai partir. Com ele minha vida.
Na plataforma, parada, espero.
O apito traspassa o ar, é o sinal
Do término. Enquanto se afasta
(e já não o vejo), em pé, agito o lenço
Com desalento e pranto.
A matéria no seu todo organizado
Rígida ao meu olhar parado
É morte.
Mesa que me viste em aflição, indiferente,
Hoje te vejo, estática na mesma cor e
Meras lascas de tempo te laceram.
Mas o vento que bate em meus cabelos
Sendo o mesmo, não o senti outrora.
O canto do novo dia
Sai das matas represadas
Pelos blocos de cimento.
Não sei se são cotovias
Sei que me doem na alma.
É um chiado insistente
Cantando a glória do espaço
Mas ao ouvido doente
Não traz sossego nem paz
Perdoa, vovô português,
Tomar-te verso emprestado
(..Ó Sol que dás confiança
Só a quem já confia!)
Não é pessimismo de esquina
Mas identidade de passo.
Não comprei passagem
No trem da alegria
Caí de borco na vida
O olhar no chão
Lúgubre e solitário.
No comboio completo
A paisagem nos distrai.