Paulo de Toledo
Lília
Vladimir possuía
uma lotérica havia seis anos. O negócio ia muito bem, as pessoas
acreditavam que a sua lotérica realmente dava muita sorte (cinco
apostadores já haviam feito a quadra da ULTRASENA e um, a quina),
como declarava o nome na placa: LOTÉRICA LILI – A SORTUDA.
O nome, LILI,
fora dado em homenagem a sua ex-mulher, Lília, que há seis meses
vive com um outro homem, dono de uma banca de jogo do bicho.
O adjetivo,
SORTUDA, apesar de eficiente como estratégica de marketing (Vladimir
é bacharel em Publicidade e Propaganda, formado em uma faculdade
particular da URSS – Universidade Rural de São Sebastião), deu muita
dor de cabeça para o Vladimir. A molecada do bairro chamava a sua
lotérica de LILI - A BOAZUDA. Realmente, Lili, além de “boazuda”,
parecia ter um prazer especial em provocar a libido dos homens do
bairro ao usar roupas curtas, saias convidativas e decotes
inspiradores. Na verdade, dizem as más línguas que o Vladimir tinha
muita sorte no jogo e pouca no amor. Lili, apesar de ninguém nunca
ter provado, seria adúltera.
Agora, todas as
noites, depois que fecha a LILI, Vladimir entra no seu Fiat Luxo e
parte sozinho para casa, onde fica ouvindo, no rádio, as
transmissões em ondas curtas e médias, um gosto que cultiva desde a
infância. Gosta especialmente de ouvir uma certa rádio russa (pelo
menos ele pensa que é russa, como eu também não entendo russo, não
posso afirmar que sim nem que não, tovarish) que sintoniza no 69,6.
Certa noite,
quando a LILI estava sendo fechada pelo Vladimir, um homem baixo,
meio gordinho, com cara de pobre-diabo, usando uma enjoativa gravata
amarela e portando uma flauta dourada aproxima-se resfolegante e:
“Por favor, preciso fazer uma aposta. Preciso fazer uma aposta.”
Vladimir, meio assustado, afinal era noite e não havia ninguém na
rua, responde, polido: “Sinto muito, senhor, mas não posso fazer a
sua aposta. Estou fechando a lotérica.” O homem, com olhos
desesperados: “Mas o senhor não entende. Eu tenho os números. Eu sei
que vou ganhar. Eu tenho os números.” Aquela mania de repetir as
frases, coisa que o Vladimir sempre detestou, já estava deixando o
ex-marido da LILI meio aborrecido com o sujeito. “Senhor, eu não
posso fazer a aposta. Sinto muito. Semana que vem o senhor vem e
joga nos seus números favoritos, ok?” O sujeito: “Ok é o caralho! Eu
tenho os números que vão ganhar amanhã. Eu não posso deixar pra
semana que vem, tá ouvindo, porra.” Uma coisa que o Vladimir odeia é
gente falando palavrão. “Meu senhor, passar bem”. Falou isso e
fechou a LILI. O homem da gravata amarela ergueu sua flauta, fê-la
tremer no ar, o Vladimir ficou branco de medo, “Tás fodido comigo.
Vê estes números (deixa um papel sujo e amassado nas mãos do
Vladimir), amanhã se estes porras destes números (a repetição de
novo!) forem sorteados, eu volto aqui pra te matar”. O flautista
mágico, ou melhor, adivinho, disse isso e foi-se. Vladimir, pálido e
mudo, viu o homenzinho sumir no meio da noite, e pensou, ele que não
gosta de palavrão: “Tô fodido”.
No dia seguinte,
sábado, diante do seu rádio, Vladimir ouve, com atenção e medo, o
locutor anunciar o resultado da loteria: “Bateu (pavor), bateu
(desespero), bateu (quase urinando), bateu (segurando o esfíncter),
bateu (chorando), bateu (desmaiou)”.
Quando
despertou, sobressaltado, Vladimir pensa em fechar “aquela porra
daquela lotérica que só me deu azar, é o nome daquela puta que me dá
azar, eu vou trocar o nome daquela porra, aquela safada só me deu
azar, que merda! (começa a chorar) que merda! (logo ele que não
gosta que repitam sempre a mesma coisa...) que merda! (...e que
falem palavrão) que...” Toca o telefone. Tenta controlar-se. Atende,
meio choroso: “Alô!”, um som fino, de flauta!, e: “Não falei, seu
puto. És um homem morto”. Vladimir cai, como corpo morto cai.
Durante as três
semanas seguintes, a LILI ficou fechada. Um cartazete na porta
informava que: POR MOTIVO DE FORÇA MAIOR, LILI – A BOAZUDA (isto é
coisa da molecada, só pode ser!) FICARÁ FECHADA POR TEMPO
INDETERMINADO.
Nesse meio
tempo, Vladimir ficara trancafiado na sua casa, nem atendia o
telefone, as pessoas pensavam mesmo que ele havia morrido.
Vladimir, que
era agnóstico, só tinha uma pequena superstição: carregava no bolso
um dado de seis faces que ganhara do pai, seu Óssip. Vladimir
acredita que o dado traz-lhe sorte, apesar de nunca tê-lo usado em
qualquer espécie de jogo de azar. Na verdade, Vladimir nunca mostrou
seu amuleto para ninguém, exceto para Lília, que um dia, furiosa
porque o marido não a levara para o zoológico, o jogou (o dado) na
privada.
Passadas as três
semanas, Vladimir volta à vida normal, volta ao trabalho, ainda
abatido e ressabiado, mas acreditando que o louco da flauta já se
esquecera dele.
Entretanto, na
sexta semana após a primeira aparição do gordinho da gravata, eis
que o Vladimir está fechando a LILI e: “Boa noite, senhor!” Vladimir
vira-se, trêmulo, já reconhecendo a voz de seu verdugo.
O homem da
gravata amarela esquecera a flauta e agora porta um outro objeto,
também feito com um cano metálico. Vladimir ajoelha-se e implora
pela sua vida. “Calma, fica tranquilo”, diz o baixinho, “Calma,
calma... Vamos deixar a coisa mais justa e mais emocionante: ao
invés de te matar, eu vou te dar duas opções pra você sobreviver. A
primeira opção é você pegar estes cinco números da ULTRASENA que eu
sei que vão ser sorteados e mais estes dois números. Um destes dois
vai ser o sexto número, o número que vai fazer você ganhar na
loteria e sobreviver. A única coisa que você tem que fazer é
escolher um dos dois números e esperar pelo resultado que sai
amanhã, sábado”.
Vladimir, ainda
de joelhos (o que lhe fez recordar de quando, no primário, fora
colocado de joelhos no milho pela professora Catarina, a má), olha
para o gordinho e pergunta, choroso: “E qual a outra opção?”
O gravatinha
amarela abre um sorriso diabólico e: “A outra é simples: a gente faz
roleta-russa. É uma bala, só uminha. São seis buraquinhos para as
balas, mas só um abriga a passagem para o outro mundo. Você acredita
em reencarnação? Já leu Chico Xavier?” Vladimir lembrou-se
imediatamente do Doutor Xavier dos X-Men e de que, quando criança,
acreditava que o Doutor Xavier, sabe-se lá porque, era inspirado no
Chico Xavier... Teve vontade de girar seu dado da sorte no bolso e,
quem sabe, transformar-se em um mutante, como o Colossus.
“Quero os
números”, choramingou.
O flautista
pistoleiro sorri malignamente e parte, deixando no chão o papelote
com os números que antes havia mostrado para o Vladimir.
Nosso herói pega
o papelote com uma mão e, com a outra, aperta forte o dado no seu
bolso. Olha fixamente para os dois números que teria que escolher:
69 e 96. Gira no bolso o dado, 3215634216543265432165462154264,
tira-o do bolso: 6.
“Isso, porra! (o
Vladimir desandou a falar palavrão, quem diria!), diz, levantando-se
num pulo. É só fazer dois jogos. Um com 69 e outro com 96. É isso!
(também deu pra repetir as frases, veja você!)”
No sábado, o
Vladimir está na frente do rádio com os dois bilhetes na mão à
espera do resultado. A sintonia está difícil, Vladimir, nervoso,
briga com o dial, o locutor anuncia o resultado, um pastor expulsa
um demônio, um cantor canta seus cornos, um locutor grita gol,
Vladimir sua frio e sua mão continua um diálogo infrutífero com o
dial... “Resultado do prêmio 6996 (meia nove, nove meia) da
ULTRASENA...” Fiuiiiii! Flauta, flatulência, flagelo, flauteio:
“Como é, bunda-mole, pensou que eu ia te dar essa moleza? Achaste
que eu era um burro? Queria me enganar, né? Sifu!”
Vladimir derruba
o rádio sobre a mesa e agarra seu dado com força.
No rádio, o caos
das quatro estações: “Fuscão preto/Que destino traiçoeiro...”, “A
ULTRASENA não teve nenhum vencedor...”, “Sai capeta, sai capeta...”,
“Trocou o meu fuscão/Pelo amor de um motoqueiro...”, “45 do segundo
tempo, um pênalti assinalado para...”, “Sai capeta...”, “Meu Deus do
céu/Diga que isto é mentira/Se for verdade/Me esclareça por
favor...”, “Gooooooollllll!!!!!”, “Repetindo os números da ULTRASENA...”,
chiuichiuichiuichiuichiuiii...
“E então, vamo
pra roleta?”
“Qual o seu
nome?”
?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!?
“Por favor, qual
o seu nome?”
“Maya.”
“Vamos fazer a
roleta-russa (Vladimir tenta mostrar segurança). Mas vamos usar um
dado pro jogo. O número que der, vai ser a quantidade de disparos
que o jogador vai ter que fazer. Se der seis...”
“Ok. Mas tu
começa.”
Vladimir tira o
dado do bolso e, lembrando da brincadeira que seu pai Óssip fazia
com o dado, coloca-o apoiado sobre uma de suas oito pontas, dá-lhe
um piparote e fá-lo girar como uma bailarina russa n’A Morte do
Cisne: 162534615243ETC.
“3”
Vladimir: tlec
(suor), tlec (lágrimas), tlec (sangue?).
“Minha vez.”
Maya joga o
dado, agora sem aquele sorriso enjoativo, e quase poderíamos dizer
que ele estava com medo.
Joga. A
bailarina agora tropeça, tropica, atrapalha-se, atropela-se,
quebra-se, requebra-se, 132461364131563541241626413546...
“1!”
T (Vladimir vê)
l (o tambor mover-se) e (lentamente) c!
“Tua vez.”
Agora restava
apenas uma chance. 2 buraquinhos. 1 com a bala. Morte: log2 2 = 1
bit.
Ancudedêetc...
Lança, agora sem
piparote, sem bailarina, sem lembrança, só fúria, só cegueira, só
ele e as seis faces da morte...
1.
Vladimir ri e
chora convulsamente, coloca o cano na boca e dispara.
O eco ressoa na
boca e invade toda a casa: TLEC TLEC TLEC TLEC TLEC (ad nauseam)...
Maya sorri e, a
plenos pulmões, declama:
Como se diz
o caso está
enterrado,
a canoa do amor
se quebrou no
cotidiano.
Estou quite com
a vida
inútil o
apanhado
da mútua dor
mútua quota de
dano.
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