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Jornal do Conto

 

 

Paulo Rosenbaum


 


Borges, ou, um tradutor decifrando Dédalus



 

Os passos? Pesados. O calçado? Emitia nítidos sinais de desgaste. A busca – agora estava claro – não prometia garantia alguma. Quando lhe informaram pela primeira vez sobre uma biblioteca de resíduos sua ambição foi afetada, mas quando a informação chegou com detalhes foi voracidade o sentimento mais aproximado que lhe veio.

Sua cegueira já se instalara se não completamente pelo menos a um ponto que luz e escuridão eram escalas tonais muito próximas. Sim, foi um esforço enorme estar em Londres em 26 de maio daquele ano de 1969. Não pelo clima insular que – para perplexidade de sues compatriotas – sempre lhe agradara muito. Afinal o que poderia ser mais eloqüente do que um chá em frente a casa de Swedenborg, depois um passeio por Charing Cross Road e finalmente uma pequena parada em Kenton, onde um velho amigo sempre estava disposto a um rum carregado de especiarias.

Além disso, Londres era o lugar perfeito para buscar alternativas à falta de inspiração que um tempo excessivo em Buenos Aires infligia na mente de um velho cosmopolita indeciso.

Mas aquela tarde foi bem diferente. Seu velho quarto, o 411 num hotel pouco luxuoso na Regent´s Street era apenas confortável, e afinal era seu lugar cativo. Enquanto Borges dormia e um bilhete farfalhou na porta. A cegueira como tinha aprendido de Aldous Huxley era um castigo violento que, no entanto, proporcionava vicariâncias sensoriais tanto emocionantes como extravagantes. Seu olfato lhe permitia distinguir entre 4 tipos diferentes de curry, coisa que nem chefs hindus eram capazes de sonhar, o que aliás lhe tinha rendido algumas refeições grátis na visita a Bombaim. Seu tato era uma espécie de scanner de alta resolução que as mulheres muito apreciaram. E finalmente sua audição chegara a tal aprimoramento involuntário que ele era capaz de decifrar caracteres idiossincráticos em simples fonemas curtos, meros suspiros ou mudanças minimalistas em ritmos respiratórios.

A diferença naquele dia foi o bilhete – cuja textura e aroma eram diferentes de tudo que já vira -- que resgatou da entrada da porta assim que foi plantado lá. Borges lembrava sempre que o pior da cegueira era a incapacidade permanente de acesso imediato ao mundo das letras. A dependência da leitura lhe era dolorosa só compensada pela gentileza benévola que a amaurose desperta nos arredores e o excesso de sonhos em vigília que ela induz. Ao descer com sua bengala de entalhe de marfim com uma cabeça de águia, herdada de sua avó materna, e encontrando o porteiro, este já sabia o que o aquele simpático hóspede desejava.

- Mr. Jorge, quer que leia o bilhete?

- Por favor, Hermes, arriscou Borges, sem estranhar o tratamento pelo primeiro nome.

- Diz assim, ennunciou Hermes: sabemos do seu interesse nos manuscritos que se referem aos medos e estamos convidando-o a vir hoje as 1:30 PM 33, Embrigton Road, Kenton, Midllesex. Há uma pequena entrada lateral cuja placa diz Barber & Barber Print´s. Aguarde em frente a porta.....” e após algum silêncio inconcluso...É somente isto Sr.

- Borges esquece por instantes que está em Londres e balbucia um “nada mas?” e logo se retifica com uma expressão de quem espera o desfecho da leitura.

- É somente isso Sr. Jorge.

Borges nem recupera o bilhete, sobe imediatamente ao quarto e se veste com a destreza de um vidente. Enquanto isso fala a si mesmo – Quem será que mandou? Como sabem que me interesso pela história dos medos? Foi algum livreiro? Ou será meu editor? Pode ser que alguém quer me pregar uma peça? Sacode a cabeça de forma sistemática sem entender o que aquilo significava. Subitamente lhe ocorre que estava ali para uma palestra em que ia falar sobre conceito da tradução na hermenêutica e Robert Browning, mas que apenas delinear a primeira linha do poema: In these red labyrinths of London ....depois termino, consola a si mesmo. Borges era fascinado pela palavra labirintos e claro por Dédalus, o arquiteto/arquetípico do tema. Isto o fazia perder-se em digressões progressivas que o tornavam quase um diletante em produtividade.

- Preciso ser objetivo, restam poucas horas. Pensa então em começar a palestra falando do que entende por fusão de horizontes e quão importante é para o tradutor tentar penetrar no texto ou no discurso melhor, vale dizer, com mais intensidade que o próprio autor. Só assim a linguagem retoma sua vocação de diálogo entre intérprete e autor, perdendo em literalidade e ganhando em literatura....

- Tinha que encrencar agora...(a velha máquina de datilografar de Borges, uma Remington, modelo 1941 adaptada ao braille, enguiça o que o impede de prosseguir.) Consola-se relendo o texto:

- Estava ficando bem, até.

- De repente, Borges sobressalta-se com o absurdo. Não pode crer no que vê. Isto é, ele não pode crer que enxerga completa e absolutamente. Ofegante, retorna ao texto que lhe escorregara das mãos e a perplexidade segue confirmada. Já ouvira falar de milagres, já havia acompanhado de perto várias leituras bíblicas em que os milagres jorram com generosidade, mas ele mesmo ser agraciado com um, não lhe parecia factível e nem entrou no juízo da justiça tê-lo escolhido entre tantos homens. Sua visão simplesmente voltara completamente.....Num súbito e desmesurado impulso escancara a janela de seu apto que tem uma vista sofrível de Londres, mas uma vista. No lo puedo creer. Abre a porta sem se preocupar com mais nada além de alcançar a rua e passa pela recepção com a sede dos que jamais beberam. Ao alcançar a rua busca qualquer coisa para ler e se depara com um anuncio de uma exposição de arte etrusca no Victoria & Albert Museum. Pode ser. Aquilo e só aquilo lhe confirma a volta da visão. Borges chora profusamente depois de quase 30 anos sem quaisquer notícias de vestígios lacrimais. Tenta embaralhar mentalmente as cartas e percebe com relutância que pode não haver nenhuma relação entre a carta e milagre.

Borges sempre se locomovera bem em Londres. O estranho de verdade foi conseguir usar a conexão ônibus- metro e chega ao local indicado com tamanha. Sua visão de Londres restabelecida lhe parecia uma metáfora acesa de um de seus próprios contos. Consulta um relógio público. São exatamente 1:27 P.M. Entra na porta lateral descrita no bilhete e avista a placa Barber &...bate e a porta, que se abre sem nenhum rangido, como se alguém a vigiasse. Seu editor está lá, com cara emocionada.

- O que é isso tudo? Indaga

Não sei bem, afirma Tim Rosen -- com pequena sudorese acima do lábio -- mas sei que você não irá acreditar. Rosen era o melhor editor inglês e sua fama não veio antes de escárnio generalizado da crítica britânica ao publicar jovens e desconhecidos poetas...

- Já não acredito...rebate rouco Borges.

- Veja isso -- Rosen agita-se com destreza de revisor espalhando uma série de manuscritos numa mesa e aponta com uma lanterna que parece falhar intermitentemente a outra pilha.

- Se trata, tremula Borges....

- Exato, são os manuscritos dos medos que estavam em Alexandria e foram retirados antes do incêndio.

- Borges começa a traduzir o primeiro com uma avidez quase instintiva: “....e nestes dias sabemos que desapareceremos, mas antes queremos dizer aos que vem que enxergarão como nunca ao traduzirem nossos testamentosXXXXXXXX

- Pule este trecho, esta ilegível, arrisca interromper Tim.

Borges murmura com mordaz insolência e prossegue

“...legamos então esta carta aos milagres que emanam deste papel recolhido e feito pelo mana que caia para os judeus e que segundo sua tradição tinha poderes extraordinários, quem os lê recupera sentidos perdidos, regenera tecidos ofendidos, restaura pensamentos obscurecidos pelo tempo....Borges levanta lentamente suas longas e já exaustas sobrancelhas em direção a Tim esboçando compreender que esta diante de uma ação milagrosa, pode ser, vá lá, mas mediada por elementos muito concretos.

- Como o Maná foi parar em Alexandria como o transformaram em papel e porque um povo numerosíssimo como os Medos desaparecera sem deixar vestígios de sua cultura.

Borges se vê remetido a infância quando brincava no Bairro do Once em Buenos Aires e depara com um antigo azulejo incrustado no parapeito de um prédio e o admira até que uma senhora irrompe em sua contemplação e lhe diz com um sotaque ignoto. Menino, você sabem quem eram os medos? Ao balançar de cabeça negativo e tímido a senhora de feições delicadas e voz firme, cochicha num sussurro um pouco irritante.

- Este azulejo foi colocado ai como prova de que ninguém está seguro. Grandes povos somem. Minorias ridiculamente minúsculas podem sobreviver. Não existe lógica, lembre-se bem disso e para aumentar a ênfase repete vagorosamente num tom cadenciado como uma maquina a vapor engrenando.

N ã o e x i s t e l ó g i c a. N ã o h á l ó g i c a
 

Ao voltar para seu jornada londrina aquilo agora se fecha em ciclos. Voltando ao hotel pensativo Borges está ainda eufórico...mas a recepção do hotel está vazia.

- Where is Hermes? Indaga ao chefe da recepção, Pedro.

- Hermes ficou bem estranho Sr. E com ar incrédulo

- Demitiu-se assim quer o Sr. saiu, disse que velhas idéias de morar em Gales e rever seus filhos lhe vieram a mente e que a verdade era incontrolável....Ah! disse também: algo como que “não há a menor necessidade de sermos lógicos”. Seus olhos faziam um estranho ziz zag e estavam brilhantes. Borges simplesmente ignorou a insinuação de que alguma droga estivesse envolvida...
Até que Pedro finaliza -- Disse que tudo aquilo era mérito do papel que lhe entregou esta tarde....

Borges agora pende vagarosamente o queixo, pensativo. Agora sim compreendera muito bem que se tratava de mais um conto, atordoado pelo vento cortante e pelas cores daquele dia inesquecível.

 

 

 


 

16/11/2005