Cláudio
Willer
cjwiller@uol.com.br
A poética de Roberto
Piva
A reduzida bibliografia crítica
sobre Roberto Piva, apesar dos seus 8 livros publicados desde Paranóia,
de 1963, até Ciclones (Nanquin Editorial), de 1997, o caracteriza,
em um paradoxo, como poeta ao mesmo tempo muito conhecido, porém
pouco divulgado e insuficientemente estudado. Justifica tudo o que possa
ser dito sobre marginalização de poetas rebeldes e transgressores.
Dá razão ao discurso do próprio Piva, ao apostrofar
a dissociação burocrática entre poesia e vida, em
Ciclones: Quando nossos/ poetas/ vão cair na vida?/ Deixar de ser
broxas/ pra serem bruxos? Heresia e marginalidade, para ele, sempre foram
inseparáveis da criação poética autêntica:
Dante/ conhecia a gíria/ da Malavita/ senão/ como poderia
escrever/ sobre Vanni Fucci?
A associação
de Piva ao surrealismo, embora correta, pela presença da imagem,
não pode esconder uma característica evidente em Ciclones:
o uso da nomeação direta. Sua extrema concretude poderia
até servir para vinculá-lo ao objetivismo anglo-americano,
ao poetizar, não um mundo de abstração formal, porém
o que está a sua frente e que ele vive. Essa característica,
evidente desde Paranóia, o transformou no poeta das referências
geográficas precisas, desde a Praça da República dos
meus sonhos de 1963 até as Ilha Comprida, Jarinu e Cantareira deste
último livro, tanto quanto das suas já notórias declarações
enfáticas de pederastia, igualmente modos da manifestação
direta, sem circunlóquios. Ele quer que as coisas recebam seus nomes:
teu cu fora da lei/ teu pau enfurecido/ alegria de anjo/ nas estradas do
prazer. Para Piva, um pau sempre foi um pau e um cu é um cu, tanto
quanto uma rosa é uma rosa. Por isso, pela clareza, por ser o grande
inimigo do eufemismo na poesia brasileira, e nem tanto pela obscuridade,
hermetismo, caráter iniciático e intertexto, é que
se explica um esfriamento crítico-acadêmico com relação
a sua obra.
Ao longo da sua obra, podem
ser identificados dois pólos, o da expansão desenfreada (especialmente
em Paranóia e em Coxas, de 1979), e aquele da síntese e condensação.
Predomina em Ciclones, assim como, dos livros anteriores, em 20 Poemas
com Brócoli, de 1981, o pólo da síntese. Não
por acaso, escolheu para epígrafe um trecho de Malcolm de Chazal,
o mestre moderno dos poemas de uma só frase, do epigrama feito de
imagens, dele extraindo o título: La volupté/ Est/ Au centre/
Du cyclone/ Des sens. Alguns poemas de Ciclones poderiam até ser
associados a hai-kais, tamanha a concisão, e, principalmente, a
precisão: gaivotas/ estrelas que despencam/ no mar/ & se eclipsam.
Ou então, como condensação máxima, esqueleto
da lua/ o tempo/ tambor tão ágil/ vomitando a noite.
Celebrante do não-discursivo,
de Eros e do inconsciente, do conhecimento não só intuitivo
e supra-racional, mas revelado, Piva também é um erudito.
Nele, a espontaneidade coexiste harmoniosamente com a reflexão e
a alta cultura. Por isso, Ciclones, assim como o restante da sua obra,
contém e expressa uma poética, um sistema de valores e um
pensar a poesia. No centro dessa poética, a firme convicção
de que a poesia mexe/ com realidades não humanas/ do planeta. Logo
no início, em outra epígrafe reveladora de suas intenções,
fala do êxtase divino do livre canto. Portanto, a poesia é
o lugar onde o paganismo ainda tem voz e expressão. Logo no segundo
poema do livro, aparece o xamã que rodopia na energia da luz. Seu
conhecimento xamanismo não é apenas livresco, como também
prático. No posfácio de Ciclones há um relato de sua
busca de inspiração na Serra da Cantareira, na Ilha Comprida
e demais lugares mencionados como cenários da criação
de poemas, identificados à paisagem bela anterior ao dilúvio.
Ele viu e sabe reconhecer perfeitamente o Gavião Caburé,
título de um dos poemas.
Ciclones contém ainda,
de modo condensado, uma antropologia, ao afirmar que rituais de umbanda
e candomblé são o retorno ou modo de manifestação
do xamanismo. Confere-lhes uma dimensão cósmica, ao homenagear
babalorixás, e nas suas invocações: eu sou o cavalo
de Exu/ ebó/ do meu coração/ despachado/ na encruzilhada
dos cometas.
Contudo, na obra recente
de Piva, mais do que tema, o xamã - bruxo ou sacerdote tribal, oficiante,
segundo Mircea Eliade, das técnicas primitivas do êxtase -
é um símbolo ou metáfora do próprio poeta como
demiurgo. O excesso determina a vidência, obtida ao se ultrapassar
os limites da condição humana: poesia é desatino.
O dionisismo, ritual subterrâneo da Grécia antiga, é
exaltado em versos como seja devasso/ seja vulcão/ seja andrógino/
cavalo de Dionysos/ no diamante mais precioso. Ou em Baco/ me transforma/
num astro vibratório/ com este elixir/ de cacto selvagem. O êxtase,
assim como em sociedades tribais, pode ser mediado por alucinógenos,
pelo poder das ervas, pela miraculosa cannabis/ planta do incesto/ do sol
com as/ águas, ou até pelos olhos violetas do LSD.
À identificação
entre xamanismo e poesia corresponde a radicalização da defesa
do meio ambiente, dos direitos não-humanos do planeta, já
declarada nos manifestos que encerravam sua Antologia Poética de
1985. A vida, em suas manifestações naturais, é impregnada
pelo sagrado; a natureza, habitada por deuses. Existem manguezais/ &
realidades não-humanas/ que são a essência da Poesia.
Daí a contradição entre o natural, campo do poético,
e o urbano: a rua é muito estreita/ para o exército/ de folhas/
& seu AXÉ. Por isso, piratas/ plantados/ na carne da aventura/
desertaremos as cidades/ ilhas de destroços.
Acentuando a analogia entre
poeta e bruxo, Piva invoca, como integrantes de uma linhagem à qual
se filia, magos como Paracelso e Julius Evola, e os poetas, Nerval, Rimbaud,
Malcolm de Chazal, Blake, René Crevel. São postos lado a
lado, em um sincretismo anárquico e pessoal, Nerval Pessoa &
os templários Lao Tsé.
Ciclones poderia confundir-se
com uma produção editorial nessas alturas gigantesca, valorizando
modos do conhecimento revelado e os meios de chegar à experiência
mística, não fosse inteiramente regido por valores poéticos.
São eles o ritmo, a condensação e precisão,
a prosódia, e, em especial, a imagem, o traço distintivo
de Roberto Piva (e de apenas uns poucos na poesia brasileira do século
XX), resultando em versos com esta densidade: Que você conheça
este relógio sem nuvens/ chamado morte/ dependurado no planeta.
Claudio Willer
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