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Página atualizada em 10.10.1999

 
Cláudio Willer
cjwiller@uol.com.br



A poética de Roberto Piva



A reduzida bibliografia crítica sobre Roberto Piva, apesar dos seus 8 livros publicados desde Paranóia, de 1963, até Ciclones (Nanquin Editorial), de 1997, o caracteriza, em um paradoxo, como poeta ao mesmo tempo muito conhecido, porém pouco divulgado e insuficientemente estudado. Justifica tudo o que possa ser dito sobre marginalização de poetas rebeldes e transgressores. Dá razão ao discurso do próprio Piva, ao apostrofar a dissociação burocrática entre poesia e vida, em Ciclones: Quando nossos/ poetas/ vão cair na vida?/ Deixar de ser broxas/ pra serem bruxos? Heresia e marginalidade, para ele, sempre foram inseparáveis da criação poética autêntica: Dante/ conhecia a gíria/ da Malavita/ senão/ como poderia escrever/ sobre Vanni Fucci?
A associação de Piva ao surrealismo, embora correta, pela presença da imagem, não pode esconder uma característica evidente em Ciclones: o uso da nomeação direta. Sua extrema concretude poderia até servir para vinculá-lo ao objetivismo anglo-americano, ao poetizar, não um mundo de abstração formal, porém o que está a sua frente e que ele vive. Essa característica, evidente desde Paranóia, o transformou no poeta das referências geográficas precisas, desde a Praça da República dos meus sonhos de 1963 até as Ilha Comprida, Jarinu e Cantareira deste último livro, tanto quanto das suas já notórias declarações enfáticas de pederastia, igualmente modos da manifestação direta, sem circunlóquios. Ele quer que as coisas recebam seus nomes: teu cu fora da lei/ teu pau enfurecido/ alegria de anjo/ nas estradas do prazer. Para Piva, um pau sempre foi um pau e um cu é um cu, tanto quanto uma rosa é uma rosa. Por isso, pela clareza, por ser o grande inimigo do eufemismo na poesia brasileira, e nem tanto pela obscuridade, hermetismo, caráter iniciático e intertexto, é que se explica um esfriamento crítico-acadêmico com relação a sua obra.
Ao longo da sua obra, podem ser identificados dois pólos, o da expansão desenfreada (especialmente em Paranóia e em Coxas, de 1979), e aquele da síntese e condensação. Predomina em Ciclones, assim como, dos livros anteriores, em 20 Poemas com Brócoli, de 1981, o pólo da síntese. Não por acaso, escolheu para epígrafe um trecho de Malcolm de Chazal, o mestre moderno dos poemas de uma só frase, do epigrama feito de imagens, dele extraindo o título: La volupté/ Est/ Au centre/ Du cyclone/ Des sens. Alguns poemas de Ciclones poderiam até ser associados a hai-kais, tamanha a concisão, e, principalmente, a precisão: gaivotas/ estrelas que despencam/ no mar/ & se eclipsam. Ou então, como condensação máxima, esqueleto da lua/ o tempo/ tambor tão ágil/ vomitando a noite.
Celebrante do não-discursivo, de Eros e do inconsciente, do conhecimento não só intuitivo e supra-racional, mas revelado, Piva também é um erudito. Nele, a espontaneidade coexiste harmoniosamente com a reflexão e a alta cultura. Por isso, Ciclones, assim como o restante da sua obra, contém e expressa uma poética, um sistema de valores e um pensar a poesia. No centro dessa poética, a firme convicção de que a poesia mexe/ com realidades não humanas/ do planeta. Logo no início, em outra epígrafe reveladora de suas intenções, fala do êxtase divino do livre canto. Portanto, a poesia é o lugar onde o paganismo ainda tem voz e expressão. Logo no segundo poema do livro, aparece o xamã que rodopia na energia da luz. Seu conhecimento xamanismo não é apenas livresco, como também prático. No posfácio de Ciclones há um relato de sua busca de inspiração na Serra da Cantareira, na Ilha Comprida e demais lugares mencionados como cenários da criação de poemas, identificados à paisagem bela anterior ao dilúvio. Ele viu e sabe reconhecer perfeitamente o Gavião Caburé, título de um dos poemas.
Ciclones contém ainda, de modo condensado, uma antropologia, ao afirmar que rituais de umbanda e candomblé são o retorno ou modo de manifestação do xamanismo. Confere-lhes uma dimensão cósmica, ao homenagear babalorixás, e nas suas invocações: eu sou o cavalo de Exu/ ebó/ do meu coração/ despachado/ na encruzilhada dos cometas.
Contudo, na obra recente de Piva, mais do que tema, o xamã - bruxo ou sacerdote tribal, oficiante, segundo Mircea Eliade, das técnicas primitivas do êxtase - é um símbolo ou metáfora do próprio poeta como demiurgo. O excesso determina a vidência, obtida ao se ultrapassar os limites da condição humana: poesia é desatino. O dionisismo, ritual subterrâneo da Grécia antiga, é exaltado em versos como seja devasso/ seja vulcão/ seja andrógino/ cavalo de Dionysos/ no diamante mais precioso. Ou em Baco/ me transforma/ num astro vibratório/ com este elixir/ de cacto selvagem. O êxtase, assim como em sociedades tribais, pode ser mediado por alucinógenos, pelo poder das ervas, pela miraculosa cannabis/ planta do incesto/ do sol com as/ águas, ou até pelos olhos violetas do LSD. 
À identificação entre xamanismo e poesia corresponde a radicalização da defesa do meio ambiente, dos direitos não-humanos do planeta, já declarada nos manifestos que encerravam sua Antologia Poética de 1985. A vida, em suas manifestações naturais, é impregnada pelo sagrado; a natureza, habitada por deuses. Existem manguezais/ & realidades não-humanas/ que são a essência da Poesia. Daí a contradição entre o natural, campo do poético, e o urbano: a rua é muito estreita/ para o exército/ de folhas/ & seu AXÉ. Por isso, piratas/ plantados/ na carne da aventura/ desertaremos as cidades/ ilhas de destroços.
Acentuando a analogia entre poeta e bruxo, Piva invoca, como integrantes de uma linhagem à qual se filia, magos como Paracelso e Julius Evola, e os poetas, Nerval, Rimbaud, Malcolm de Chazal, Blake, René Crevel. São postos lado a lado, em um sincretismo anárquico e pessoal, Nerval Pessoa & os templários Lao Tsé.
Ciclones poderia confundir-se com uma produção editorial nessas alturas gigantesca, valorizando modos do conhecimento revelado e os meios de chegar à experiência mística, não fosse inteiramente regido por valores poéticos. São eles o ritmo, a condensação e precisão, a prosódia, e, em especial, a imagem, o traço distintivo de Roberto Piva (e de apenas uns poucos na poesia brasileira do século XX), resultando em versos com esta densidade: Que você conheça este relógio sem nuvens/ chamado morte/ dependurado no planeta.

Claudio Willer
 
 


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