Ana Mary Cavalcante
Ruído em prosa
03.12.2004
A prosa do poeta curitibano Paulo Leminski (1944-1989) é
redescoberta a partir dos contos e das crônicas de Gozo Fabuloso.
Até então inéditos em livro, os textos despertam a crítica e remetem
a novas publicações
A história de Gozo Fabuloso começa antes da morte de
Paulo Leminski, quando ele próprio organizou as crônicas e contos
(39 textos, inéditos em livro) em uma pasta verde, etiquetada com o
atraente título. Leminski escreveu também uma introdução,
''Narrar'', onde explica, ''óbvio o título desta legião de enredos.
Gozo Fabuloso só pode ser o delírio combinatório de extrair do
restrito infinito dos entrechos possíveis uma história sem par,
delícia só comparável à de cantar uma canção bonita''. Noutras
palavras, setas em linha reta: ''Fábulas, canções, que seria de nós
sem essas misteriosas entidades? Vanguardas e outras subversões à
parte, nunca vai faltar amor para uma canção bonita, aquela história
redonda, o retrato da pessoa amada''.
Os originais ficaram guardados (esquecidos?) em
editoras durante 15 anos, até a publicação pela DBA - iniciando a
Coleção Risco: Ruído. Dois nomes que formam um, como se divulga: ''A
primeira coleção, Risco, abrigará a ficção e a crítica feita pelos
novos autores e ensaístas, ou seja, a produção dos que estão
correndo riscos, ao riscar com o seu estilete o verniz da literatura
mais bem-comportada. A segunda coleção, Ruído, runirá os autores
que, já mortos (canonizados ou não), deixaram obra igualmente
ruidosa, perturbadora e provocativa''. É nessa brecha que Leminski
entra.
Um dos mais instigantes autores de seu tempo (e fora
dele), reconhecido e celebrado em seu cenário (e fora dele), Paulo
Leminski é parte da geração de poetas marginais dos anos 70. No
início, eram as revistas alternativas da distante Curitiba; da
década de 1980 em diante, o verso se fez carne e habitou (em) entre
nós. Ao falar do escritor de La Vie en Close, fala-se também dos
irmãos Campos (Augusto e Haroldo), de Décio Pignatari, de Régis
Bonvicino, de Arnaldo Antunes, de Caetano Veloso, de Gilberto Gil,
de José Miguel Wisnik... amizades seletas. Além delas, os críticos
costumam dizer que ''sua obra assimilou elementos da primeira fase
do Modernismo, como o coloquialismo e o bom-humor, do Concretismo e
também da poesia oriental, que inspirou a criação de seus famosos
haicais''.
Mantendo um relacionamento com a vanguarda e
flertando com a MPB, com os jornais e com as histórias em
quadrinhos, Leminski quis ''tornar a poesia uma expressão popular'',
como identificou Jotabê Medeiros em O Estado de São Paulo
(21/08/2004). Nesse sentido, experimentou (de forma consciente),
ainda segundo Medeiros, ''uma linguagem fácil (sem ser vulgar),
musical e fluida. Era uma espécie de embate para mostrar que, sim, a
poesia seria capaz de mobilizar multidões. Leminski era muito
erudito. Traduzia inglês, hebraico, tupi, japonês, latim, russo e
sânscrito. Mas gostava mesmo era do ambiente fértil dos corredores
das universidades, do boteco, das possibilidades do samba e da
cultura popular''.
É uma prosa poética que escreve Gozo Fabuloso. E
talvez essa poesia disfarçada, capitu, seja o principal mérito do
livro. No mínimo, a isca. Leminski está ali também na ciranda de
humor e dor, na arquitetura de algumas narrativas, no caso de amor
que mantém com a cultura oriental. Mas a primeira impressão é que
falta fôlego ao poeta para os contos e as crônicas; o mesmo fôlego
com que domina o verso, matéria-prima de sua imortalidade. Não que o
Gozo... seja ruim; é um tanto diferente do Leminski de quem se é
íntimo. E, como Leminski não é senso comum, é preciso ler Gozo
Fabuloso. Reler. Ler outra vez. Mais uma. Até gostar.
O RESTO IMORTAL
Paulo Leminski
Queria não morrer de todo. Não o meu melhor. Que o melhor de mim
ficasse, já que sobre o além sou todo dúvida. Queria deixar aqui
neste planeta não apenas um testemunho da minha passagem, pirâmide,
obelisco, verbetes numa obscura enciclopédia, campos onde não
crescem mais capim.
Queria deixar meu processo de pensamento, minha máquina de pensar, a
máquina que processa meu pensamento, meu pensar transformado em
máquina objetiva, fora de mim, sobrevivendo a mim.
Durante muito tempo, cultivei esse sonho desesperado.
Um dia, intui. Essa máquina era possível.
Tinha que ser um livro.
Tinha que ser um texto. Um texto que não fosse apenas, como os
demais, um texto pensado. Eu precisava de um texto pensante. Um
texto que tivesse memória, produzisse imagens, raciocinasse.
Sobretudo, um texto que sentisse como eu.
Ao partir, eu deixaria esse texto como um astronauta solitário deixa
um relógio na superfície de um planeta deserto.
Claro que eu poderia ter escolhido um ser humano para ser essa
máquina que pensasse como eu penso. Bastava conseguir um aluno. Mas
pessoas não são previsíveis. Um texto é.
A impressão do meu processo de pensamento não poderia estar na
escolha das palavras nem no rol dos eventos narrados. Teria que
estar inscrito no próprio movimento do texto, nos fluxos da sua
dinâmica, traduzido para o jogo de suas manhas e marés.
Um texto assim não poderia ser fabricado nem forjado. Só poderia ser
desejado. Ele mesmo escolheria, se quisesse, a hora de seu advento.
Tudo o que eu poderia fazer nessa direção era estar atento a todos
os impulsos, mesmo os mais cegos, nunca sabendo se o texto estava
vindo ou não.
Era óbvio, um texto assim teria, no mínimo, que levar uma vida
humana inteira. Na melhor das hipóteses.
Uma questão colocou-se desde o início. A tensão da espera de um tal
texto poderia ser o maior obstáculo para seu surgimento. Quanto a
isto, não havia solução. A questão teria que ser vivida em nível de
enigma e conflito, sigilo e dissimulação.
Evidentemente que o texto que resultasse desse estado deveria, por
força, reproduzí-lo em sua essencial perplexidade. A máquina-texto
que surgisse não seria um todo harmonioso, já que a harmonia só
convém às coisas mortas. O que eu pretendia era uma coisa viva, uma
vida que me sobrevivesse. E a vida é contraditória.
Não sei mais de esse texto virá. Ou se já veio.
Tudo o que quero é que, se vier, se lembre de mim tanto quanto eu
soube desejá-lo.
SERVIÇO
Gozo Fabuloso - 39 crônicas e contos escritos por Paulo Leminski e,
até então, inéditos em livro. DBA (Coleção Risco: Ruído), 181
páginas. R$ 29,00 (preço sugerido).
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