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Pedro Nicácio
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LADAINHA A JOÃO CABRAL DE MELO NETO
(O Retirante Volta ao Seio da Terra)
I – O Retirante diz a que veio
João Cabral
Torna à pedra
Seu original
A palavra
Não cala
Sua ave-bala
A pá lavra
Temperança
Sem fragrância
A Vida
Sem continência
Sob medida
Verso
De barro
A eminência parda
Ritmo
De saúva
Sem música
A charrua
No sulco
Sua volúpia
Embaixador
Do nada
Lavra dor
Poesia
Em carne viva
Sem estrias.
II – A caminho da cova
Caberá
Na terra pouca
Menor que a boca?
A procissão
Adentra o eito
Enraíza-se
Eiva
A carne seca
Sua seiva
Amarga
O vinagre
Sua enxada
De ferro
Brabo
Seu candelabro
Sem eira
Ou alqueire
Sua esteira
Cava na cova
A larva
Da lavra
Cava o carvão
Sua ogiva
A paixão
Rumina seu pasto
O Sertão
Ferida braba.
III – Os retirantes em torno do corpo
A trombeta
Anuncia
Sua maniva
Em nossa presença
Emigra
A Vida
Ao útero
Da terra
Prometida
A sete palmos
Do chão
Rogai por nós
Rapinas
Aguardam
Sua urtiga.
IV - O enterro à beira do rio
Planta
O caroço
Sua manta
Ao massapê
Voltam
Pernas e pés
Na tarde
Absorta
Suas coxas
Envolto
No manto
Seu tronco
Tubérculo
Agnóstico
Seu pescoço
A mão
Serpenteia
Sua cabeça
O fardo
Do tempo
Será seu ungüento
Quiçá
Não exangue
Seu rebento
Enxerto
De sangue
No mangue
Caatinga
Verde
Hirsuta
Vivo
Embora
Severino
Exsurgirá
Da pedra
O cardo-santo.
Recife, 11.10.99
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Comunhão
Ergue-me com teu desejo
para que eu penetre
em tua boca
um sonho férreo sereno.
Deixa-me, suavemente,
quedar a armadura
molhada do meu dorso
na plumagem do teu ventre.
Volvendo pescoço e tronco,
gire o fruto em tua boca
e descubra teu hirto fruto
com mostras de fogo e sombra.
As feras dos nossos dentes
acariciem-nos a carne,
brotando acesa nos lábios
esmaltada flor da pele.
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TOTEM
Sob a cabeça
Meu corpo úmido
No amado corpo ígneo
Cheira a luta
No enlace de almas
Em ebulição e fartura infinita.
Embaixo de mim
Homens e plexos
Com fomes umbilicais
Inominadas epifanias
Doze trabalhos
Doze mistérios.
Debaixo dos eus
Dos homens - túmulos
E minha carcaça negra
Infectando o subterrâneo
Com dia áspero
Nódoas vazias.
Em desassossego fértil
Restaurador do cio
Teu gameta insurrecto
Veloz, infecto
Fecunda o útero
Da minha cabeça.
Sobre a mesa o linho novo
Sob a ceia da nova era
Mestiça, turva, nutrida
Ao sol da clave perdida
Dirimindo a dor de abortar
O poema vil à turba.
Nos mistérios lendários da mesa
Posta à morta natureza
Lê-se da fruta, do corpo
Da terra, da alma remida
Que a vã existência alicia
Asfixiando a vida.
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MORTE
A Edson da Silva Dias
Vivi a plenitude
do desejo e da cruz.
Meu silêncio era prenhe
de êxtase e de pecado.
Cela forjada de agonia.
Eis que abriu-se, um dia, a porta,
como por qualquer aldabra
forçada pela indisciplina do vento,
do destino ou a obstinação de um eleito.
E, por mínima a fresta,
numa simples e conhecida alvorada,
penetrou-me o abismo interior
a centelha do infinito, a estrada.
Fiquei ali, quieto, olhando
a transitoriedade de tudo,
todos os mil seres a passarem
e a deixarem de existir junto comigo,
mais que maduro, esmaecido.
Agora, ali, mesmo posto em grilhões,
banido, em urna de solidão,
sob todo o lixo,
todo o sortilégio e maldade dos homens,
sob todo o esplendor e peso da terra,
a importância maior de tudo
é nada ser,
absolutamente,
importante.
Recife, 22.06.97
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Quedate
Quedate conmigo,
no te pierdas por las trillas
del dolor y de la duda.
La tenuidad del olvido y del llanto
no se erigió
para adentrar nuestro amor,
nacido en día de metal.
Solo tu me dás canto y tierra
y haces brotar, en brasa de verdad,
la más profunda sonrisa
que habita mi ciudad.
No me lo niegues
el cuerpo en fuego,
por un ratito que sea,
aún que en día de desdicha,
ya que nuestro encuentro
existe para aplacar desengaños
y para que se cumpla
el destino de Fénix.
Que decir del día de peligro y dolor,
cuando estás presente?
Solamente que la esperanza
de lograrte todo y lleno de paz
traza mi camino
que cruza tus miedos, tus pecados
y nuestra grande ilusión
de driblar la muerte.
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TECIDO COM AVES
Teu ser, tua imagem
Síntese em paixão
Um quase espectro luz
Seda, carinho, ave.
Cúmplice, a natureza
Tecia ritos do amor
Os músculos da flora
Batiam-se contra o sol.
Pulsar ao tempo do dia
Pétala dos lençóis
Corpo no corpo das cores
Estampa-se o futuro agora.
A ave do teu sorriso
Cortando rotas secretas
Ávida, deu-se ao tempo
Água, fogo, vento, pedra.
(Nada mais,
Abismo grito).
Cruzando a cidade, hesito
Ter-te em néscios insones
Esgarçam e cirzem o amor
Pret-à-porter ou Rabanne.
O desejo de ter-te aqui
Embora na franja do amor
Ímpeto maior que a dor
Do viés do vazio de depois.
(É missão da ave negra
Alinhavar-se à noite).
A nervura das estrelas
Enruga meu coração
Mescla-se à nesga néon
Do bar da pala da vida.
[Eu também (gr)ávida
ave
Galgo grãos desdenháveis].
E rente aos pés quedou-se
Vida de golas em retalhos
Aquela antífona viva
Perdida vida no acaso.
(“Saltar, numa noite,
Fora da ponte e da vida”?)
A vida transpõe pontes
Corda sobre o rio abismo
Linhos, hábitos encalham
Rútilo farol, amor perdido.
Sei que há um dia futuro
Ora nas entranhas do passado
Corpos almas bordaram vida
Ataram a vida ao abanhado.
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Pedro Nicácio
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Recife
Pinhas de louça enigmática,
Renda de escravo nas volutas.
Nos beirais de olhares mendigos,
Luzes sombrias, marginais.
Sabiás nos quintais dos bairros
Mais sabiam da roça urbana.
Trilha da cana apertou o rio,
Hoje animal de animal humano.
Há sacadas guardando histórias,
Imperatriz, Ninfas, Riachuelo,
Pátios, ruelas, gradis em pânico,
Via crucis dos camelôs.
Vã cidade, arte apodrecida,
“Voltei, Recife”, de verdade?
Acordei Aurora perdida?
Sobrado, água clara, Capiba?
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BARCOS PERDIDOS
No templo de cristal
Colher estrelas e corais
Para enfeitar os cabelos
Retorcidos da areia.
Um eleito marinheiro
Trilhando o diadema
Volte à praia
Com a alma pura
Dos barcos perdidos.
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MAIO
Sob os rigores do inverno
A flora em gestação
Impede que as lagartas
Perfurem folhas e frutos
Flores rijas receptivas
Bebem generosas goteiras
E preparam as sementes
Para a escola das frutas
Banidos casulos escudos
Contra besouros, saúvas
Tudo é mistério intacto
No útero da chuva
Durmo desprevenido
Sem me poupar do vento
Assumo o fogo brando
Que acalenta o pensamento
O mel, o leite, o pão
Compõem as cores da mesa
A vida derrama na esteira
Histórias entre lençóis
Banida a ferocidade
Do mundo de lá de fora
O dolente canto do galo
É meu único relógio.
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Pedro Nicácio
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JUNHO
A noite
Cobre-me
Com seu manto
Plúmbeo
Perco-me em seu regaço
No transbordar dos cântaros
E espoucar dos foguetes
Em eco
Ao longe
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NOVEMBRO
Descansa
Sobre o leito de cana queimada
O imperturbável
Círculo da lua de verão.
Entre o azul-marinho
E o odor do mel de novembro
A menina festeja sua chegada.
Nós, pés sobre o verde,
Perscrutamos toda a graça
E ausentamo-nos da paisagem
Com o gorjeio do pássaro noturno.
Cabo de Stº Agostinho, 1984
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VARANDA
Quão tranqüila
é a noite.
Pássaros dormem
no meu coração.
Passa uma carroça,
corre uma criança,
canta a rã-pimenta,
late um cão.
Vejo-os da varanda.
Repousa meu coração.
Não há estrelas,
chove fino,
vento ao rosto.
Solidão.
Sexo antúrio,
feto avenca,
imbés noturnos
no caramanchão.
Os homens
não sabem
a guerra.
Alça vôo
o meu coração.
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