Pedro Nunes Filho
A loca do caboclo
O Jabre situa-se no maciço da Serra do
Teixeira, na Paraíba do Norte. Lugar silencioso, cercado de
mistérios. Impossível imaginar quando chegaram àquelas paragens
inóspitas seus habitantes primitivos: os índios Sucuru. Sabe-se que
durante muitos séculos eles foram os donos daquele mundão sem fim.
Além de artefatos líticos, fragmentos de cerâmica, urnas mortuárias
e inscrições rupestres, deles também restaram traços genéticos em
diminuta parcela da população e algumas histórias fantásticas que a
tradição oral conserva até hoje.
O Jabre permaneceu um paraíso
ecológico intocável até 1690, quando começaram a chegar os primeiros
colonizadores brancos, chamados de curraleiros. Eles apossavam-se
das terras dos índios, como se não tivessem donos. Depois
legitimavam a posse com cartas de sesmaria.
No começo, a indiada resistiu, mas
logo percebeu que a flecha era inferior à espingarda. Por isso, aos
poucos foram capitulando. Perderam as terras e as fêmeas para o
colonizador branco, valente, cruel, até. Uns fugiram e refugiaram-se
em serras longínquas. Outros passaram a trocar trabalho por comida.
Com o passar dos tempos, perderam a identidade. Não eram mais índios
nem brancos. Falavam mal a língua imposta e começavam a esquecer o
próprio idioma que não tardou a desaparecer sem deixar vestígios.
Vez por outra, arredios, apareciam nas fazendas, mas tinham
dificuldade de entregar-se ao eito, labor pesado do dia-a-dia.
Preferiam viver nas caatingas onde se sentiam livres e felizes. Sem
compromisso com as rotinas do trabalho braçal, os fazendeiros não
podiam contar com eles. Para não atrapalharem as fazendas, os
curraleiros preferiam espantá-los, da mesma forma que faziam com as
onças dizimadoras de seus rebanhos. Como tinham pavor à pólvora,
bastava um tiro de mosquete, que fugiam assustados. Possuidores de
um senso de orientação miraculoso e conhecedores de todo o espaço
geográfico, em determinados momentos, eram pessoas úteis aos
fazendeiros, sempre ávidos em expandir suas terras. Em razão disso,
algumas vezes, eram tolerados. Essa relação de amor e ódio
contribuiu para mudar o modo de ser e de viver daquela gente
estranha que, à medida do possível, escondia a origem indígena para
livrar-se dos preconceitos. Sem conseguir manter a autonomia étnica,
despidos do corpo de crenças de seus antepassados, aos poucos, foram
desaparecendo.
Dependendo do grau de submissão, ora
os fazendeiros os chamavam índios mansos, ora caboclos
brabos.
Ainda existe na Serra do Teixeira um
lugar denominado Loca do Caboclo. Foi lá que nos idos de 1720
ocorreu a história que vou contar.
Naquela época, havia muita caça em toda a região. Não só os índios
viviam da atividade venatória; muitos brancos também caçavam, por
necessidade, por aventura ou prazer.
A Fazenda Várzea Comprida ficava nas
cercanias do Jabre. Nascera de um curral de gado.
Certa ocasião, um vaqueiro da fazenda
estava caçando mocó. Por açaso, esbarrou numa vereda trilhada por
alguém, que ali passava todos os dias. Descalço, o dono das pegadas
ia e vinha. Curioso, o vaqueiro seguiu uma das direções para ver
aonde ia chegar. Em alguns trechos, os rastos do desconhecido
confundiam-se com pegadas de onças famintas que cruzavam a vereda
farejando gente. Aqueles felinos tinham preferência por carne
humana. Para andar naquelas caatingas inóspitas era preciso coragem,
experiência e cuidado. Muito cuidado, mesmo. Além de espinhos, calor
e sede, a cada passo, havia um perigo: flechas certeiras, cobras
venenosas, onças traiçoeiras.
Depois de caminhar bastante, o caçador
percebeu que a vereda misteriosa terminava na boca de uma furna nas
encostas da serra. Havia uma pedra que embeiça a entrada,
dificultando o acesso ao local. Homem de ação, o caçador nada temia.
Transpôs o obstáculo e debruçou-se na boca da caverna para descobrir
que mistério era aquele. Logo percebeu que se tratava de uma
habitação. Só não sabia ao certo quem poderia viver ali.
A entrada da furna era ligeiramente
sombria, mas deu para perceber a existência de uma escada tosca de
madeira com uns oito ou dez degraus amarrados com embiras de caroá.
Sem o auxílio daquela escada, quem descesse não subia. O caçador não
pensou duas vezes, pôs-se logo a descer os degraus, qualquer que
fosse o perigo a esperá-lo embaixo. Cauteloso, pisava leve, enquanto
os olhos adaptavam-se à pouca claridade do ambiente. Não demorou a
perceber vozes humanas à pouca distância. Impulsionado pela
curiosidade, foi se adentrando. Segurava na mão esquerda a
espingarda de vaqueta, enquanto a mão direita servia-lhe de apoio no
paredão de pedra, quase invisível. Depois de alguns passos da escada
que lhe dera acesso ao local, o mistério começou a desvendar-se. Lá
embaixo, com pedras superpostas, a natureza fizera um vão semelhante
a uma casa. No alto, duas aberturas opostas deixavam penetrar luz e
ventilação, sem que um pingo d’água caísse no interior daquela
habitação primitiva e misteriosa.
Para surpresa sua, o vaqueiro percebeu
no extremo oposto da moradia a figura de uma mulher branca,
acompanhada de três crianças. Com cabelos desgrenhados, seminua,
protegia com as mãos as crianças despidas e assustadas e com elas
tentava encobrir o próprio corpo.
- Meu senhor, vá embora depressa
daqui! Vá embora, antes que se dê uma desgraça grande com o senhor e
comigo! - trêmula, implorava em vão.
- Não saio daqui, enquanto a senhora
não me contar como veio parar neste lugar! - disse o caçador,
mantendo-se à distância, mas certo de que estava diante de uma
desgraça, um drama humana, que dele iria exigir uma solução.
Morava no Jabre, um fazendeiro chamado
Alexandrino. Melhor dizendo, Coronel Alexandrino Bezerra do Monte.
Viera com sua semente de gado, seguindo o vértice boiadeiro do Piauí
em busca de terras desocupadas nas nascentes do rio Pajeú. Lá,
apossou-se de uma vasta sesmaria e não demorou a prosperar. Depois
de duas décadas de muito trabalho, já era senhor de grande fortuna.
Casado, tinha três filhas. A mais velha, com 20 anos, era uma moça
graciosa e encantadora, a alegria da casa.
Um dia, quando retornava sozinha de
uma visita a uma prima que morava a menos de meia légua da casa
grande, desapareceu. Enquanto o pai mobilizava todas as pessoas da
fazenda para a busca, a mãe, prostrada numa cama, desmanchava-se em
lágrimas de desespero. Fora a primeira a se dar conta da demora da
filha. Maus presságios diziam-lhe que algo de ruim havia acontecido,
deixando-a sem ânimo, até para comer.
A noite chegou, impossibilitando as
buscas. Nos dias que se seguiram, ninguém trabalhou na fazenda
Várzea Comprida. Os poucos vizinhos, num gesto de solidariedade
comovedora, juntaram-se ao grupo para expandir as diligências. Os
dias passavam-se e nenhum vestígio da moça era encontrado. Depois de
algumas semanas, o cansaço e o desânimo começaram a diminuir as
buscas. A bem da verdade, não havia mais onde procurar.
Naquela época, quando alguém sumia,
depois de algum tempo, começava a correr o boato:
- A onça comeu... - e ficava por isso
mesmo.
Aos poucos, a família foi se
acalmando, menos a mãe que não se conformava com a perda da filha.
Em seu rosto, nunca mais faltaram expressões de dor e, em seus
lábios, balbucios de preces à Virgem dos Milagres.
No esconderijo onde estava
prisioneira, o caçador, depois de alguma insistência, ouviu da
mulher um breve relato, suficiente para decidir o que fazer.
- Sou filha do Coronel Alexandrino, da
Fazenda Várzea Comprida. Um dia, eu estava voltando da casa de uma
prima, quando fui raptada por um caboclo brabo que me trouxe
para esse local. Ele é ciumento e desconfiado. Vá embora, que ele
foi caçar e chega daqui a pouco. Se o encontrar aqui, mata o senhor
e me mata também.
- Vou arrancar a senhora daqui hoje
mesmo, dê no que der! - respondeu o caçador inconformado com o
estado deplorável da mulher e das crianças.
Naquele momento de ligeira indecisão,
os dois ouviram os passos dele, retornando.
- Lá vem ele, esconda-se depressa! -
sussurrou, procurando acalmar-se.
Só deu tempo o caçador deitar a
espingarda no chão.
- Vi rastos na vereda! Quem andou
aqui? Me diga logo se não morre quando eu descer! - berrava
debruçado na boca da furna, temeroso e prevenido.
- Quem anda aqui, a não ser você e
Deus! - respondeu ela com firmeza, embora assustada e trêmula, sem
convencê-lo, pois além de experiente, era exímio rastejador e
farejava como um felino.
Temendo que a espingarda de vaqueta,
carregada com chumbo fino, não obtivesse o efeito desejado, o
caçador desprezou a arma, sacou uma faca-peixeira que trazia na
cintura e agachou-se ao pé da escada, procurando ocultar-se por trás
de umas ramagens verdes agarradas no paredão de pedra e alimentadas
pela umidade existente entre duas fendas da rocha.
Quando o caboclo brabo colocou
o pé direito no chão, o caçador saltou em cima dele. Feito um raio,
o índio negou o corpo, jogou no chão as caças que trazia e sacou da
cintura um cotoco de faca afiada dos dois lados.
Na luta, pareciam dois gigantes
atracados, um tentando golpear o outro, enquanto a mãe, segurando as
crianças, procurava livrar-se dos contendores para não ser
pisoteada. Vez por outra, as armas brancas tiravam faíscas ao
triscarem nos paredões de pedra. Rodaram a furna umas três vezes.
Sem olhar o que havia no chão, não demoram a quebrar uma panela que
estava em cima de uma trempe, cozinhando as caças para o almoço do
dia.
O caboclo, em vão, procurava
esquivar-se dos golpes do inimigo, que portava uma faca–peixeira de
12 polegadas, arma superior à sua. A certa altura, desequilibrou-se
e caiu de costas. O caçador saltou em cima dele sem piedade. Ficou
prostrado no chão, esvaindo-se em sangue. Não demorou a dar o último
suspiro.
Ofegante, mas sem perder tempo, mandou
a mulher sair com o menino mais novo nos braços, enquanto ele
conduzia as duas crianças maiores escada acima.
Três anos haviam se passado desde que
a moça desaparecera. De repente, chega de volta à casa paterna como
um trapo humano, acompanhada de três filhos despidos, sujos, cabelos
grandes e inteiramente despreparados para o convívio familiar.
Surpresa, alegria e emoção somados, um
mês depois, de súbito, paralisaram o coração do velho coronel.
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