Hélio Pólvora
Da carroça ao bonde
História, ficcionismo e
crônica são primos, pelo menos, em terceiro grau. Parece natural
que, de quando em quando, violem as intimidades uns dos outros, tão
próximos estão e tão indistintas se mostram as suas fronteiras. Mas
estas observações não se aplicam à historiadora Consuelo Novais
Sampaio. Disciplinada, austera, defensora de princípios assentes,
ela põe cada um deles no seu devido lugar, isola-os em
compartimentos.
Para ela, história é história, ainda que, para uma compreensão mais
exata dos fatos, admita recursos interdisciplinares, valendo-se de
subsídios da sociologia, da política, da administração, de outras
áreas das outrora chamadas humanidades. Sua cultura geral lhe
permite ver além das aparências; a insatisfação leva-a a verificar
se verdades absolutas acaso não passariam de verdades relativas – ou
ficções.
Estes dotes, que respondem pela credibilidade do historiador,
repontam, à farta, em seu novo e notável trabalho de pesquisa
histórica, 50 anos de urbanização – Salvador da Bahia no século XIX.
Um livro belíssimo, um objeto de arte, a thing of beauty, como diria
o poeta inglês. A parte iconográfica, das mais ricas, se une em
sintonia perfeita com o texto – e ambos se alçam à categoria da obra
bem concebida, bem estruturada, bem-feita – aliás, feita para ficar.
O livro mereceu o Prêmio Clarival do Prado Valladares, para pesquisa
histórica, patrocinado pela Odebrecht, que o lançou com a merecida
pompa, na sua sede na Avenida Paralela. Lá esteve a Bahia
intelectual, empresarial e social. Os ecos desse evento ainda
repercutem. Por exemplo: o instante em que Consuelo, simples e
informal, decidiu pular um trecho do seu discurso, caiu em lugar
ermo e se confessou perdida. Mas logo retomaria, com ar de quem se
diverte, o fio condutor da sua exposição. Falta-lhe a veemência dos
que se vêem como estátuas. Tem ela a sabedoria grácil dos sábios
distraídos.
Salvador da Bahia encanta por seus muitos mistérios resultantes da
forte miscigenação racial, das culturas que se amalgamaram de forma
a criar um semblante simpático, a fundar uma maneira de ser – quase
um estilo de vida. A mim ela deslumbrou, quando, da amurada de um
navio que me trazia de Cachoeira, pelo rio Paraguaçu, então sem
bancos de areia, vislumbrei a Cidade Baixa, o Elevador Lacerda, o
casario das ladeiras. Lembra Lisboa, para quem chega pelo mar, de
Cacilhas. Na década de 1940 do século passado, Salvador guardava
imagens conhecidas do antigo centro histórico. A sobrecapa do livro,
em ampla foto distendida, revela a dobra da Ladeira da Montanha, a
precipitar-se para o atual Comércio, a praça Castro Alves (ainda sem
o Poeta em atitude comicial), a boca da Barroquinha. Esta é a Bahia
que amamos, com perdão dos urbanistas modernos. A Bahia que a
historiadora traz à tona, a escorrer água lustral dos seus
revolucionários equipamentos urbanos.
RITMO E SABOR – A historiadora situa a época de urbanização
decisiva entre 1850 e 1900. Dos empreendimentos modernizadores, que
tiraram a cidade da letargia, fazendo-a trocar os pés no chão pelos
transportes coletivos, resultou uma “cidade extensa e complexa com
cerca de 200 mil habitantes...” Bondes elétricos, ônibus e
automóveis substituíam charretes, gôndolas e carruagens. O comércio
crescia. Vieram as ferrovias, entre elas a Great Western. Intensa
era a navegação de cabotagem. Apesar da depressão financeira,
causada em parte pelo esvaziamento do porto, que era o primeiro em
movimentação do Brasil, quando as cotações do açúcar e do café
estavam no pique, administradores de visão souberam atrair capitais
estrangeiros, aos quais se somaram e sucederam capitais nacionais.
Mas há um fato que Consuelo Novais Sampaio destaca – uma de suas
muitas deduções: a livre iniciativa prosperou na Bahia,
civilizando-a, graças a uma empatia entre o povo desejoso de
transformações – e também seu inspirador – e o espírito público, com
motivações sociais, de empresários. Houve como que um entendimento
tácito, uma empatia que funcionou qual argamassa para a construção
progressiva da cidade de hoje. Mudanças geraram comportamentos, que,
por sua vez, geraram novas mudanças. Tal simbiose data de meados do
século XIX. Toda a bela cidade tem um sopro vital, uma alma coletiva
que a faz vibrar para crescer. Em Salvador da Bahia, não somente os
cenários, quase todos de cartão-postal, mas o povo alegre e amigo,
expansivo e eufórico, foi o fluido dos assentamentos urbanos.
50 anos de urbanização - Salvador da Bahia no século XIX é mais que
um compêndio com todas as estatísticas disponíveis e a sua análise.
É também, nas entrelinhas, um canto de amor, na medida em que a
historiadora Consuelo Novais Sampaio revela-se senhora de um texto
de qualidade, claro, diáfano, direto, gracioso, imune ao jargão
presente em tantas obras assemelhadas. Com efeito, ela faz da
escrita uma arte, pois modula as suas frases, dá-lhes ritmo e sabor,
para que se desdobrem, contagiosas e envolventes, e nos prendam no
seu enleio. Assim ocorre quando se detém no azul do céu, nas
tonalidades da água do mar e no frescor das brisas – certas brisas
que sopram dissimuladas e nos roçam como penugentas asas de pombas.
Esta obra, fruto do mecenato Odebrecht, de alto significado
cultural, ultrapassa a história como fonte de informação; é a busca
e recomposição do passado por um processo de filtragem e
cristalização que faz da história uma arte. Mais que o investigador,
mais que o pesquisador, livros dessa natureza, para ficarem abertos
na mesa (porque livros de mesa eles são), requerem o afeto e a
empatia de quem os escreve.
Serviço
50 anos de urbanização - Salvador da Bahia no século XIX, de
Consuelo Novais Sampaio
Salvador: Odebrecht/Versal Editores
2005
296 págs.
R$ 150
Hélio Pólvora é escritor, contista e membro da Academia de Letras
da Bahia (ALB)
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