Hélio Pólvora
Enlutada estará Helena
Primos
estranhos. Deles, pelos pais, Helena ouvia falar vagamente: notícias
miúdas, observações, críticas. Percebeu, enquanto crescia, que os
primos eram rejeitados. Mais adiante, madura, inferiu que a
rejeição, se houvera, como de fato parecia, fora mútua. Os primos
não os queriam, a eles, Oliveira, nem eles, os Oliveira, davam maior
importância aos primos.
Nem todos podem
inspirar amor, pensou mais tarde. Do contrário, o mundo seria um
palco de extremadas ligações perigosas. Mas o amor comporta facetas,
graus de intensidade que formam estágios e definem, então, o limite
do afeto. Amizade, por exemplo, é um antecedente do amor. Se não se
transforma em sentimento mais forte, em paixão, em apego, é apenas
amizade. Amigos se gostam, uns mais, outros menos — mas, se gostam,
são necessários. Amigos se procuram, se consultam. Amigos se
visitam.
No entanto, os
primos não visitavam nem eram visitados. Moravam ali perto, em lugar
que os Oliveira fingiam conhecer, e até diziam conhecer o caminho,
chegarem lá sem erro. Por que, então, se eram parentes, ramos do
mesmo tronco, andavam distantes, mal se cumprimentavam? Os dias eram
monótonos. Escorriam morosos, como lesmas, e deixavam, como as
lesmas, um sulco gosmento, de tédio, de horas perdidas para os
êxtases. Conviver com os primos seria bom. Talvez deles partisse a
sugestão, o aviso, o conselho de que, afinal, se necessita na vida.
Quem sabe um deles seria capaz, mesmo por acaso, inadvertidamente,
de dizer as palavras mágicas, que não apenas confortam, mas fazem
das fezes do coração o bálsamo do consolo, o elixir da alegria?
Numerosas vezes
interrogou a mãe sobre os primos. Quem eram, onde viviam, do que
viviam. Sentia uma curiosidade grande, tinha um interesse fundo
pelos outros, a ponto de escrutinar vidas e tornar-se indiscreta.
Mais tarde verificou que, nessa ânsia de ver os outros por dentro,
ela pretendia apenas justificar-se. Examinando-lhes de perto os
atos, ouvindo-lhes a fala, vendo como se vestiam e os seus modos em
sociedade, se convenceria de que era normal, era como os outros.
Suas falhas eram iguais às deles, não havia necessidade de
arrependimento, de meter dores na consciência. Era uma explicação, e
parece que correta, porque Helena fora criada na mais fechada
solidão, recolhida em si mesma como a ostra na concha, e se sentia
muitas vezes diferente, para não dizer anormal. Aquele seu pendor
para isolar-se, para se entreter apenas consigo, seriam normais na
juventude, que quer estar sempre alegre e, na busca permanente da
alegria, pratica asneiras, dá mostras de juízo fraco?
No alpendre da
casa, em tardes mornas, com a vida a pingar espaçadamente de
invisíveis bicas, Helena tentava atiçar a mãe acerca dos primos. Se
cansada, e, portanto, de mau humor, a mãe respondia com muxoxos que
nada exprimiam. Se alegre por algum motivo que nem sempre sobejava,
a mãe enfiava-lhe dedos vagarosos no couro cabeludo e, enquanto
coçava, a provocar uma dormência que os desmaios da tarde
acentuavam, a mãe lhe passava dados soltos, desconexos, que não
chegavam a formar um retrato satisfatório dos primos.
— Eu nem sei os
nomes deles — dizia-lhe a mãe.— Conheço de vista somente um.
— E não
perguntou o nome?
— Não, porque já
me tinham dito que era João.
Pausa para uma
reflexão.
—Todos o chamam
Joãozinho. É engraçado.
— O quê, mãe?
— O nome
carinhoso, o diminutivo, pois não? O Joãozinho é alto e branco,
esbelto, de elegante porte, e tem o rosto azulado. Sem dúvida
acabara de fazer a barba, a navalha, quando o vi.
— Conversaram?
— Muito pouco.
Eu ia pagar uma visita à comadre Zulmira. Perto da fonte, ele surgiu
na dobra do caminho. Quando me viu, tirou respeitosamente o chapéu.
Um chapéu preto, de boa qualidade. Talvez de feltro, com uma banda
larga, cor de vinho. Afastou-se para um lado, deixou-me o caminho
livre. Um cavalheiro, não acha?
— Sim. Um
personagem de romance. E depois?
— Nada.
— Não se
falaram?
— Eu disse:
“Boa-tarde, primo. Como passa?” Ele disse que estava bem. Eu então
perguntei pela família. Ele respondeu que todos ótimos. Me olhou
sério, pôs o chapéu, levou a mão à borda e foi-se.
Os dedos da mãe
pararam, ela de repente riu-se.
— Ele estava
descalço — disse ela.
— É mesmo?
— Terno preto,
camisa de seda preta, chapéu de feltro preto. Todo alinhado. E sem
sapatos.
Em outras
conversas com a mãe e o pai, Helena recolheu outros dados sobre os
primos distantes. Nunca ficou sabendo ao certo, porém, se eram três
ou quatro. Todos eles altos, brancos, trajados de preto. Via-se as
veias azuladas sob a pele branca das canelas. Perguntou ao pai
porque não vinham visitá-los. Caprichos, disse o pai. Mania,
entende? Mas, nesse caso, por que não tomar a iniciativa, por que
não ir vê-los, numa dessas tardes modorrentas de domingo, quando
nada ou quase nada se tem a fazer, salvo olhar os matos e medir a
aproximação da tarde, e fitar as pessoas e fazer trejeitos com os
beiços?
— Ir sem ser
convidado? — disse o pai.
— Por que não?
— Primeiro
conversar com eles, oferecer um cafezinho. Não lhe parece?
Não sabia o que
seria melhor. E começava a se angustiar, porque a solidão pesava,
havia os primos, eram quatro, e apesar de estranhos, e apesar de
andarem de luto (a propósito: ia perguntar à mãe por que o luto
pesado e contínuo), podiam fazer-lhe companhia, ouvir discos na
velha vitrola de dar corda, apresentar as pessoas da família, que
trocariam entre si receitas de bolos e geléias. Na véspera do seu
décimo-segundo aniversário, o pai perguntou-lhe o que queria de
presente, se mais um livro da Biblioteca das Moças.
— Eu queria
conhecer os primos.
O pai e a mãe
trocaram olhares carregados.
— Tudo tem seu
tempo certo — disse o pai. — A Bíblia diz que há tempo de arar e
semear, de plantar e colher.
Logo no dia do
aniversário, como se para estragar a pouca alegria trazida pela
data, a vaca parida chifrou-lhe a mãe de vestido colorido na
pastagem. Atirada contra uma pedra, a mãe fraturou a bacia e levou
três meses imobilizada, de cama. Quando a mãe era levada para casa,
em pranto, nos braços do pai, a cancela bateu e um viandante avançou
pelo caminho. Era um dos primos. Alto, chapéu preto, todo de negro.
Mas descalço, com os pés brancos enlameados. O primo enlutado tirou
o chapéu para os cumprimentos, parou um instante.
— Coisa grave? —
indagou.
— Ainda não
sabemos direito — disse o pai. — Foi chifrada por uma vaca doida e
acho que fraturou algum osso.
— Espero
melhoras — disse o primo, afastando-se com um meneio do chapéu de
feltro.
— Entre para um
café — chamou o pai.
— Fica para a
volta — prometeu o primo enlutado.
Helena via o
primo, um dos três ou quatro, pela primeira vez, e ele lhe pareceu
severo, de atitudes formais. Se estivesse calçado, e não de pés nus,
sujos de lodo dos caminhos, o teriam na conta de homem de bem e de
posses, ou, como se dizia nos romances, cavalheiro e gentil-homem.
Ainda assim, o rosto de linhas harmoniosas, as feições finas, as
palavras bem medidas e pesadas, tudo indicava um lastro de boas
maneiras que somente se adquire com alguma educação familiar.
O vulto do
primo, no seu terno de seda preta, coroado pelo chapéu de feltro
também negro, desapareceu na estrada além. Para onde ia? O que
buscava? Helena queria pensar nisso mais a fundo, meditar
possibilidades, mas havia a mãe que, posta na cama, buscava entre
gemidos a melhor posição com que repousar, enquanto não vinha médico
da cidade.
Do tempo
escorreram areias, imperceptivelmente, nas também invisíveis
ampulhetas, e água escorreu, esta de forma audível e até rumorosa,
sobre o leito movediço dos rios e córregos, e de súbito ela tinha
dezoito anos, e caminhava, quase corria, com o seu cão, para casa,
embrulhada nas sombras do entardecer, quando estacou, guiada por um
sexto sentido, diante de uma cobra que, erguida sobre a cauda, no
meio do caminho, tinha a boca escancarada e mexia com a língua
bífida. Parou de chofre rente à cobra, na exata altura da cabeça da
cobra, que era um jaracuçu danado, e se fitaram, ela e a serpente
peçonhenta, durante talvez um minuto, e imóvel olhava-os o cão, na
expectativa do desfecho daquela cena, envoltos Helena e a cobra num
silêncio que parecia conspiração, conluio edênico — e adiante do
cão, como que esperando licença para passar, de olhar neutro e olhos
sem lume, um dos primos, qual deles não sabia dizer. E foi este o
seu primeiro encontro a sós com um dos primos arredios que se
vestiam de luto.
Mas, por que o
luto permanente, por quê?
— Talvez seja a
cultura da morte — explicou-lhe o pai.
Helena não
entendeu.
— Vivemos no
país dos óbitos, e, nele, numa região de alta densidade obituária —
prosseguiu o pai. — Se a criança escapa da disenteria e de moléstias
infecto-contagiosas, a fome e a exposição aos ventos gelados podem
levá-la à tuberculose. Se consegue safar-se e fazer-se adulta, vêm
as vicissitudes do trabalho, entre elas as picadas de cobras, os
acidentes. Morre-se muito nestas nossas bandas.
Entendeu, então,
o que o pai dizia.
— Vai ver —
completou o pai, olhando-a dentro dos olhos — que a família dos
primos é grande. Quando o luto pela desgraça de um está findando,
morre outro, e o luto continua. O crime governa o país, morre gente
como formiga.
— Ou então
fizeram promessa de luto cerrado no funeral do avô, ou do pai, ou da
mãe.
— É possível —
disse o pai. — Quem conhece os desígnios dos outros? Mal conhecemos
os nossos. O mais comum é sermos surpreendidos pelo que fazemos num
repente.
No mar, quando
perdeu pé, Helena sentiu-se flutuar e engoliu a primeira golfada (a
cena ainda ardia na memória como uma água-viva). Sua vida, o que
fora até então o seu projeto de vida (trechos dos caminhos
interrompidos por urzes ou pedras, ora secos, ora com lodaçais, e em
rumos opostos, caminhos que não prosseguiam), passou-lhe em veloz
sucessão de imagens — um filme solto na manivela. E encontrou-se
estendida no chão, acabara de cair da borda de uma pedreira, todo o
corpo lhe doía e a cabeça era uma cabaça oca em que zumbiam enxames
de insetos, todas as vespas enfurecidas do verão. Fechou os olhos.
Tinha quase cinqüenta anos. Não ia levantar-se já. Devagar, tentou
movimentar uma perna. Movia-se. Experimentou a outra. Sã. Virou-se
de leve para um lado. As costas doeram, mas resvalaram no chão
pedregoso. Mexeu-se também para o outro lado. Os ossos pareciam no
lugar. Conseguiria erguer-se? Primeiro, sentou-se com sacrifício. O
arvoredo subia e descia, obra de sua visão entontecida. Em baixo, no
caminho que descia a serra, passava um homem de preto, de pés no
chão. Não a viu, nem ela, que estava sentada e zonzo, o chamou,
porque sabia que, na próxima meia hora, pelo menos, não articularia
palavra. Agora bracejava no mar, que insistia em puxá-la da praia. O
filme de sua vida, um pequeno percurso acidentado, árvores
retorcidas na paisagem baça, avançava enlouquecido na manivela em
disparada. E Helena se viu, a seguir, numa rua de sua cidade, era
sábado, dia de feira, comércio ativo. Ia pela calçada, absorta,
quando um sujeito baixo e troncudo, avermelhado pela aguardente,
puxou-a pela gola da blusa, encostou-a na porta ainda fechada de uma
loja, sacou um revólver niquelado, encostou-lhe o cano na boca e
disse: ”Puta”. Não respondeu. O sujeito empurrou mais o cano do
revólver. “Puta, puta escrachada”, gritou. E continuou a gritar
aqueles nomes até que ela, enfadada, desviasse com o braço o cano da
arma e, sem nada dizer, se afastasse em passo normal. Na calçada,
apreciando a cena, estava um dos enlutados primos, atento, a mão
parada no ar, o fósforo aceso entre os dedos, esquecido de acender o
cigarro. Veio outra golfada, que parecia a última. A cabeça da cobra
estava imobilizada, a cena era de encantamento, de hipnotismo. Mas
não, o mar não a queria por enquanto, o seu corpo branco estaria
destinado a apodrecer em terra, coberto de terra. Sentiu um impulso
para cima, bracejou outra vez, os pés tocaram em areia fugidia,
flutuou e uma onda a fez avançar, tocou areia firme. O corpo moído
pela queda tinha os ossos no lugar. Pela praia, com uma corda de
robaletes, passava um pescador vestido de preto, os pés brancos
afundando na areia fofa. Helena não o olhou. O primo? Um dos primos.
Que era a vida?
Uma trégua da consciência entre dois golfos de escuridão, o ser e o
não ser, o primeiro nada absoluto que, livrando-se da ousadia de o
terem gerado e afadigado, ruma para o nada derradeiro. Helena
pensava assim, na vida adulta, e assim continuaria a pregar, ao
menos para si mesma, porque fazia questão de perder-se sozinha no
seu desânimo existencial, mas havia os primos, aqueles três
discretos primos trajados de preto, que, vez por outra, lhe surgiam
no caminho. Apareciam sempre como por acaso, e nada queriam, às
vezes nada inquiriam, em outras ocasiões sequer a olhavam, sequer
lhe admiravam seios e quadris com olhos cobiçosos. Apenas atestavam,
os primos, a sua muda e inexorável presença, como se estampas
coladas a uma página de sua vida — bem parecidos, vestidos de seda
negra, vestais desencaminhadas de seu templo.
Helena queria os
primos. Só em vê-los, naquelas poucas vezes, já lhes tinha afeto,
como se à mesma família pertencesse e com eles dividisse o enlutado
culto a uma tristeza desejada, buscada e assumida. E se eu me
vestisse também de luto?, ela pensou por fim. Talvez os atraísse
então. Talvez os primos, sentindo nela um igual, um parente, quem
sabe uma irmã, se aproximassem e lhe oferecessem uma flor, ou lhe
pedissem um copo com água fresca. Sim, poderiam ser amigos, os
primos, e ela precisava de amigos — ela que jamais os tivera, apesar
da sua ânsia por longas conversas alentadoras; ela que sentia nas
amizades o prenúncio de um possível amor.
Estava órfã.
Órfã de pai e mãe, e em idade avançada, e se lhe perguntassem o que
fizera da vida, diria certamente que a perdera, ou dela se esquecera
na medida em que se limitara a viver. Os pais lhe faziam falta. Não
davam sombra larga, mas eram referências, pontos luminosos na noite
escura. Tais pontos de luz atraíam, como a dizer que, se os
buscasse, se até eles ela se deixasse guiar, talvez lhes revelasse
uma casa, o lume aceso, a mesa posta, o encontro de quem
reconhecemos apenas com o olhar, sem necessidade de fala.
Um dia, afinal,
Helena vestiu-se de luto. Ou então, inerte, consentiu que a
vestissem de luto. Tinha amanhecido e chovia. Ela amanheceu
conformada e serena. A chuva caía em bagas e o mundo estava opaco,
lutulento. Falava-se em voz baixa, talvez alguém, chorasse. Pés nus
soaram no chão de tábuas.
Eram os primos.
Os três, no
mesmo terno que, de tão lavado e passado, embranquecia. Chegaram — e
pela primeira vez, sorriram.
Os pés traziam
crostas de lama dos caminhos. Que caminhos? Por onde andavam, assim
tão incansáveis, tão determinados?
Tiraram o chapéu
para o cumprimento cerimonioso, inclinaram-se. Cavalheiros.
Gentis-homens. Fidalgos. Agora Helena tinha companhia — e, quem
sabe, o desejado e protelado amor.
(Do livro Contos da Noite Fechada, 2004)
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