Perce Polegatto
Tarde e jogos com Ester
A mariposa debate-se dentro do armário
suspenso da copa, ansiosa por libertar-se, parece forte como um ser
humano.
“Hoje compreendo”, arrisco-me a dizer.
“Esse sonho agia sobre mim como uma sentença, mesmo naquela idade,
do remorso por eu haver proporcionado tantas humilhações a meu pobre
amigo, ao repugnante e inevitável prazer que me dominava enquanto
lhe infligia, sem que ele percebesse, dores morais entre situações
que o constrangiam perante outros colegas. Se fecho os olhos por um
momento, posso ainda ouvir o rumor ritmado e estonteante da mariposa
que eu imaginava grande feito um morcego.”
Ester parece iniciar um sorriso, não
percebo ainda de que gênero. Ela é delgada e baixa, lembra uma
menina, mas não que esta impressão por vezes sugestiva possa atenuar
a irritação em meus olhos enquanto a observo. Há meninas quase tão
más quanto Ester, se é que não houvesse ela própria sido sempre
assim.
“Então, quer que continue? Ou passamos
agora à sua história?”
Ester espanta com um gesto uma lenta
porção de fumaça: “Suas pretensas perversidades são muito comuns. Se
bem que eu não esperasse mesmo nada muito impressionante. Mas ainda
não estou pronta. Prefiro que conte mais.”
Este, o jogo. Não se trata de uma
disputa, sim uma brincadeira que nos anima, abre-nos conhecer mais
um do outro, ou menos, considerando-se ainda as distorções e as
mentiras, que de uma ou de outra forma acaba por levar-nos à sua
cama, a outro costumado jogo inevitável, onde a certa altura tenho
de forçá-la a submeter-se, trazendo-a sob meu domínio, ainda que
mansa e carinhosamente, de que é feita a melhor máscara das nossas
intenções.
“Algo mais sobre seu amigo?”
Ester e outro olhar percuciente, mais
me faz culpado sua ênfase sarcástica. Surpreende-me às vezes como é
fácil não dizer o que pensamos, pois é quase como se já o
disséssemos. E como nunca acontece de contarmos quem somos sem
declarar que somos alguma outra coisa. Sim, como também tantas vezes
nos resguardamos sob o invólucro da formalidade e das boas maneiras
para não deixar claro as mais conflitantes divergências. Pois
enquanto segue na sala, com algo de sinistro e delicioso, a
conversa, chego a pensar como se faz oblíquo, quase doentio, o modo
como preparamos a tarde para nossa nudez. De fato, nada há de
complexo, embora nem sempre se tenha coragem de admitir isto.
Trata-se de instintos, o que há de mais antigo no mundo. Sabemos,
Ester e eu, sem o enganoso néctar do lirismo, que o instinto nos
move um ao outro. Mas não sabemos o que move o instinto. Ou o que
nos move a ele senão ele próprio, fechando um absurdo ciclo sem
chave, pois o que realmente conta nunca nos é ensinado pela razão,
quando muito por outras nossas forças.
“Quer saber como morreu sua
irmãzinha?”
O rosto de Ester nada revela enquanto
segue meu relato. Ela não gosta de música e hoje o silêncio mais
parece respirar.
“Claro que não tinha nada com aquilo.
Só me estranhava que eu não houvesse sentido como os outros, afinal
fora uma morte triste, e tudo por tão pouco, quero dizer, por tão
pouco estaria viva.”
Suponho que para isto sirva o
silêncio, para ouvirmos o que não nos querem dizer. Também para que
se renovem as chances de dizermos algo mais antes do emudecimento.
De erguermos um gesto antes da paralisia. Para não nos dizermos,
quando tarde demais e na posse da melhor palavra, que estamos hoje
morrendo de não a termos dito. De, ao gesto, não o termos
deflagrado. E ao amor, por faltar-nos o simples dom da coragem, não
o termos inventado.
“Não tenho mais que me lembre. Outro
dia. Vamos, sua vez de enganar-me”, brinco.
Eu esperava que ela mentisse e ainda
assim excitava-me ouvi-la, pois sabia que de toda forma discorreria
sobre alguma pequena maldade. Mas como para fazer-se superior e
notando minha pressa, demora-se mais que o normal. Não posso negar
que a desejo, isto desde a primeira vez em que conversamos na
cantina. Mas não pensei que continuaria a desejá-la. Eu a desejo
muito e além de meu controle, e isto é o pior: sei que é verdade,
porque foi a última coisa que descobri. Sei também que a mariposa a
atormentar-me no antigo pesadelo continua a voejar pelo mundo.
“Vamos, Ester. Agora é sua vez.”
“Você quer mesmo saber? Acha que se
sentirá bem daqui a alguns minutos ou será como da outra vez?”
“Vamos, Ester. Não sou um menino.”
Suas palavras passam a minar as
paredes de minha calma, encadeando-se entre frases curtas e longas,
Ester e sua habilidade de instilar imagem após imagem
inofensivamente, porém todas com o efeito de um veneno insidioso e
como intolerável a quem de alguma maneira as viveu, que é esta a
única forma de impressionar, quando alguém nos diz claramente o que
amargamente já sabemos, por fim passando a espicaçar-me os nervos
como se não desse por isso. Não pretendo pedir que pare, aqui se dá
o desafio. Fecho os olhos necessariamente, entrevejo meu antigo
sonho, as portas do armário da copa abrem-se num golpe, deixando
ir-se a minúscula mariposa, eu num instante como a dizer-me
perplexo: “Não é possível que fizesse todo esse ruído”, assim como
Ester não parecia tão perigosa, sendo também delicada e pequena.
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