Perce Polegatto
As cincos estações
PRIMAVERA. O invasor
Privilegiado pelas árvores, o bosque à janela de meu quarto, de onde
migravam brisas aromáticas como filtradas por estames novos, canto
de cigarras entre outros, quando a natureza revia seu universo: as
longas manhãs da adolescência pareciam mais lânguidas na primavera.
Ao despertar fixava longamente o que me parecia a amostra de um
paraíso fechado, concebendo a interação dos seres que ali habitavam,
viviam. Mas minha janela aberta à noite atraiu com seu quadro de luz
um inseto gigantesco que batia contra as paredes e voejava
ruidosamente ao meu redor. No afã de persegui-lo, fui perseguido e
tive medo. Por um momento divisei sua fisionomia fibrosa de monstro.
Tentei espantá-lo, mas fui vencido. Fechada a porta por fora, em
outra parte ruminei a insônia. Pela manhã, o quarto vazio, cortinas
leves flutuando como se por ali brincassem os fantasmas do vento. Vi
outra vez o santuário de árvores para onde teria retornado o súbito
demônio, vi de minha fortaleza sem deuses sua fortaleza sem deuses,
a porção de paraíso e inferno onde os monstros se disfarçam entre
flores.
VERÃO. Canção dos vaga-lumes
E sua luz, sua breve luz. Duravam só o verão. Encantavam-me em
criança, pedia a meu pai que os explicasse. “Por que vaga-lume, pai?
“Caga-lume virou vaga-lume.” Eu ria, pedia que outra vez recordasse
a cantiga de atraí-los. Cantávamos juntos, perscrutando a escuridão,
eu os chamava com gestos.
Vaga-lume tem-tem. Vaga-lume tem-tem.
Teu pai está aqui, tua mãe também.
Tantas vezes vi voltar o verão dos vaga-lumes, tanto a parceria de
meu pai, que a vida parecia encantada e eterna. Ocorre-me hoje,
passando rente aos ciprestes do cemitério onde o tempo guardou meus
pais, a canção antes eterna, agora efêmera, com que os chamava na
infância. Acendo um cigarro, detendo-me ante a grade por onde giram
os vaga-lumes, e é como me chamassem desta vez:
Teu pai está aqui, tua mãe também.
Eu os vejo faiscando no negrume das árvores, no que lhes cabe entre
os ciclos, e sua temporada de luz. Sua breve luz.
OUTONO. O passado do tempo paixão
Você me acusa, eu sei. Como sua mãe. Não espere. Não se levante,
fique assim comigo. Sua nudez me inspira calma, não volúpia. Quando
a encontrei (a tarde de vento) senti que se atrairia por mim,
fechando assim o ciclo de segredos que persistia desde uma geração e
que tornaria a se abrir cada vez que se tocasse. Rompendo,
libertando. Você entende? Corrige verbos que eu nunca soube conjugar
direito. Como sua mãe. Acusa-me de estar sempre atrasado, com certa
razão. Naquele tempo (a tarde de vento) eu considerava os ciclos
baseado em relógios e dias, faltava-me desvendá-los. Não só o tempo
me espanta. Transcorrer sem que se ergam os olhos: como poderia ser
se não fosse assim? Um sonho, não mais. Não me lembro do que sonhei.
Mas ela estava em meu sonho. Quando entrei em seu quarto, a cama
derrubada, travesseiros deformados por não sei que necessidades,
lembro-me: outro quarto, o mesmo. Apenas fique assim, deite a
cabeça. Já é uma mulher. Como sua mãe. Não me refiro às formas. O
olhar. Quando a encontrei (a tarde de vento) senti que se atrairia
por mim, sem supor que a decisão de rompermos a faria uma filha que
seria minha por ter sido sua sendo outra e a mesma desde o momento
em que a encontrei (a tarde de vento) à sua imagem, semelhança e
identidade, em outra geração, o que me permite romper, libertar,
outra vez amá-la por tê-la perdido, possuí-la infinitamente.
INVERNO. As manhãs
Bosque de ar nublado, árvores esparsas. Corpo de homem, cabeça e
ombros de um cão negro que se aproxima em silêncio e uma nudez
masculina de estátua, passos seguros: a criatura, embora um animal
soturno, tem olhos vazios de agressividade. Sua calma é assustadora.
Ergue os braços, chega a abraçá-lo num gesto lento... — o grito.
“Sonhei que eu não era um homem. Que era um menino. E estava perdido
num bosque que não conhecia, sem encontrar a saída...”
“Foi só um pesadelo.”
A irmã lhe serve um café, ele sai para outro dia de trabalho.
Cuidado com emoções fortes, diz o médico. Mas nessa idade, o tempo
contado para aposentar-se, a rotina insossa ao lado da irmã,
rastejando sobre uma acostumada escassez de emoções, nada há que...
E a manhã nublada, quase onírica, da realidade por onde erra, quase
um sonho outra vez. Golpe de sangue no peito, perde a firmeza das
pernas, afunda na escuridão que o faz indefeso, caindo do alto,
caindo do solo e mais ao fundo... — o grito. Braços que enfim o
envolvem de maneira alentadora. O peito escuro e paternal aconchega
a cabeça de um menino amedrontado.
“Sonhei que eu não era um menino. Que era um homem. E estava perdido
por ruas que não conhecia, sem encontrar a saída...”
Supõe ouvir que foi só um pesadelo. Recobra a calma, a realidade das
manhãs onde somente e com a mais pura intenção as coisas existem.
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