Rodrigo de Almeida

RESENHA
Entre o Trans e o Lúcido
 
Da Editoria do Sábado, Jornal O Povo - Fortaleza- CE 
    Irregularidade, fragmentação, discursividade atônita e excesso do que dizer marcam Hemisfério Translúcido, o novo livro de Alano de Freitas. Hemisfério Translúcido - Alano de Freitas; Luzazul; 115 páginas; R$ 15,00 

    Uma proposta crítica numa província cultural como Fortaleza pode deixar alguém em posição delicada. Qualquer observação mais dura, seja na música, na literatura, no teatro ou nas artes plásticas, é capaz de gerar conflitos que muitas vezes são desviados para o campo pessoal por quem a recebe. Difícil ver um artista cearense aceitar pacificamente uma crítica - quando há - contrária ao seu trabalho. A tradução se faz como um ataque pessoal ao artista. Quase nunca é assim, bom que se saiba. 
 
     Essa reflexão, que muita gente conhece mas poucas vezes se ouve, logo surge quando pensamos na tarefa de produzir uma resenha crítica sobre determinado livro publicado por um cearense, por exemplo. Quando destacamos a necessidade de um maior rigor com o que vai ser publicado, é porque desejamos a saúde de nossa literatura. É certo que uma literatura se faz, como acertadamente já disse o crítico Wilson Martins, com uma grande quantidade de publicações de menor valor para que outra parte se sobressaia. 

     A mais nova proposta aparece com o livro Hemisfério Translúcido, do compositor, músico e artista plástico Alano de Freitas. Trata-se de mais um exemplo que poderia, ou melhor, deveria ter tido um melhor tratamento, uma revisão maior da poesia a ser publicada. Uma edição de autor, daquelas que saem aos trancos e barrancos por esforço do próprio poeta. Alano, vale dizer, tem na autenticidade e no modo caótico de escrever uma marca, no mínimo, instigante. Ele se engana, porém, ao transpor esse universo para a poesia. Confunde ousadia com uma  produção poética indefinida, fragmentada e, pior, com alguns erros. 
     
      Se Alano de Freitas possui um grande talento nas artes plásticas e em algumas letras de música, pensa muito baixo quando o assunto é poesia.  

      Ou isto é um poema? 
 

       a lamparina chama uma bruxa ao quarto 
       bruxuleando numa chama espectro de brilho  
       de repente não é bruxa é Léa vindo para ver se durmo  
       não e a colher na boca do expectorante traz 
       na boca do espectante com cuidado mete no sovaco  
       de mim febril um tercúrio que da mertômetro 
       perdum termômetro que de mercúrio
      Ou:  
 
     Jacques Antunes, filósofo 
     taoísta de muita lenha 
     diz: pra quem tem dado em casa 
     é dado certo que tenha 
     dado na rua também. 
     de-forma-que a forma dado 
     a tantas formas se presta 
     de doação, ganho e perda 
     que eu não entro nessa festa.
      A discursividade atônita e as colagens de Alano deixam a idéia de um excesso do que dizer e a ausência de uma nova leitura do que escrever. Mais parece escrita para amigo ver. Basta perceber a quantidade de referências a amigos tanto nos próprios poemas quanto nas listas enormes de dedicatórias a cada título. No mínimo, meia dúzia de pessoas recebe homenagem a cada poema, até chegar a “Pés e Coito”, em que ele dedica: “A todos os amigos e amigas traídos pela imprecisa resposta da memória ao espaço-tempo das dedicatórias”. 

      Mas se o assunto é poesia, vamos a ela. Alano pôs em Hemisfério Translúcido poemas feitos desde 1980 a 1997. Dezessete anos de passeio por sua produção. Em momento algum, ele explica, nem em seu “Por falar em prefácio”, nem nos comentários de Sânzio de Azevedo e Jorge Tufic, que se trata de uma revisão de sua obra, ou mesmo uma tentativa de “antologia” ou qualquer outra coisa semelhante. Deixa a idéia, então, de um conjunto de poemas “arrumados” num monte de páginas encadernadas e dobradas, somadas a algumas ilustrações e arquitetadas num lançamento no Ideal, que é pra não perder a pose. 

       A concepção errada de poesia aparece em Hemisfério Translúcido pela imprecisão ao utilizar maiúsculas e minúsculas no início de cada verso, nos erros de pontuação e no excesso de sílabas em alguns versos. Eis alguns exemplos, como no poema “Quando partir”: “Quando eu me for e é mais-que-certo: irei,/ não será por alguém; menos por todos./ nem por, de afeto, a falta; não pelo mundo infecto. nem por modo emocional subitamente./ não estarei alegre; irei já quase ausente.” Qual a regra a ser seguida? Do primeiro para o segundo verso, há uma vírgula, quando a leitura pede um ponto. Do segundo para o terceiro, talvez fosse melhor uma vírgula, e há um ponto. Claro que pedir regra é demais, principalmente para um escritor assumidamente caótico como Alano. Mas poesia não é chacota. É trato com a língua. O excesso de sílabas nos versos aparece, por exemplo, em  
 

      Modern Jazz Quartet  
      plac-plac do tear bipisado por Zilá 
      e o bip-bip sincrônico de algum sistema eletrônico 
      parece o barulho de um trem que ameaça mas não vem 
      e a esquina agora em preto a estalar esqueletos 
      e a vizinhança em festa louca que é risos álcool seresta.
     Alano erra a mão também em algumas construções poéticas de qualidade duvidosa, onde tenta fazer um jogo de palavras previsível, como em “Liz Taylor:  
 
      A flor de lis 
      sacada pelo talo 
      lançada foi à tela 
      para Liz”.
      Ora em verso livre, ora em soneto - com esquemas rimáticos do tipo ABBA / BABA / CCD / EED - ora em poema concreto, Alano faz uma poesia definitivamente indefinida. Talvez seja proposital. Ou talvez seja a sua própria definição. Basta se lembrar de Histórias do começo do mundo, livro de contos publicado por ele há uns dois anos. Ali, personagens soltavam o verbo, mas apresentavam uma certa frouxidão, além da carência de enredo. 

      Apesar de um livro irregular, Hemisfério Translúcido é o retrato de um artista, ou pelo menos um fragmento do que ele capta de certos elementos de Fortaleza. Neste ponto, Alano fica mais rico: quando faz alusões a logradouros da cidade. Precisaria apenas de mais sutileza e mais revisão. Afinal, nada melhor do que reler e refazer poemas, mesmo aqueles escritos há mais de dez anos. Bom para o artista, bom para a poesia. 
 

 
      Veja Artigo de Soares Feitosa 


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