Da Editoria
do Sábado, Jornal O Povo - Fortaleza- CE
Irregularidade,
fragmentação, discursividade atônita e excesso do que
dizer marcam Hemisfério Translúcido, o novo livro de Alano
de Freitas. Hemisfério Translúcido - Alano de Freitas; Luzazul;
115 páginas; R$ 15,00
Uma
proposta crítica numa província cultural como Fortaleza pode
deixar alguém em posição delicada. Qualquer observação
mais dura, seja na música, na literatura, no teatro ou nas artes
plásticas, é capaz de gerar conflitos que muitas vezes são
desviados para o campo pessoal por quem a recebe. Difícil ver um
artista cearense aceitar pacificamente uma crítica - quando há
- contrária ao seu trabalho. A tradução se faz como
um ataque pessoal ao artista. Quase nunca é assim, bom que se saiba.
Essa reflexão, que muita gente conhece mas poucas vezes se ouve,
logo surge quando pensamos na tarefa de produzir uma resenha crítica
sobre determinado livro publicado por um cearense, por exemplo. Quando
destacamos a necessidade de um maior rigor com o que vai ser publicado,
é porque desejamos a saúde de nossa literatura. É
certo que uma literatura se faz, como acertadamente já disse o crítico
Wilson Martins, com uma grande quantidade de publicações
de menor valor para que outra parte se sobressaia.
A mais nova proposta aparece com o livro Hemisfério Translúcido,
do compositor, músico e artista plástico Alano de Freitas.
Trata-se de mais um exemplo que poderia, ou melhor, deveria ter tido um
melhor tratamento, uma revisão maior da poesia a ser publicada.
Uma edição de autor, daquelas que saem aos trancos e barrancos
por esforço do próprio poeta. Alano, vale dizer, tem na autenticidade
e no modo caótico de escrever uma marca, no mínimo, instigante.
Ele se engana, porém, ao transpor esse universo para a poesia. Confunde
ousadia com uma produção poética indefinida,
fragmentada e, pior, com alguns erros.
Se Alano de Freitas possui um grande talento nas artes plásticas
e em algumas letras de música, pensa muito baixo quando o assunto
é poesia.
Ou isto é um poema?
a
lamparina chama uma bruxa ao quarto
bruxuleando
numa chama espectro de brilho
de repente
não é bruxa é Léa vindo para ver se durmo
não
e a colher na boca do expectorante traz
na boca
do espectante com cuidado mete no sovaco
de mim febril
um tercúrio que da mertômetro
perdum termômetro
que de mercúrio
Ou:
Jacques Antunes,
filósofo
taoísta
de muita lenha
diz: pra quem tem
dado em casa
é dado certo
que tenha
dado na rua também.
de-forma-que a
forma dado
a tantas formas
se presta
de doação,
ganho e perda
que eu não
entro nessa festa.
A discursividade atônita e as colagens de Alano deixam a idéia
de um excesso do que dizer e a ausência de uma nova leitura do que
escrever. Mais parece escrita para amigo ver. Basta perceber a quantidade
de referências a amigos tanto nos próprios poemas quanto nas
listas enormes de dedicatórias a cada título. No mínimo,
meia dúzia de pessoas recebe homenagem a cada poema, até
chegar a “Pés e Coito”, em que ele dedica: “A todos os amigos e
amigas traídos pela imprecisa resposta da memória ao espaço-tempo
das dedicatórias”.
Mas se o assunto é poesia, vamos a ela. Alano pôs em Hemisfério
Translúcido poemas feitos desde 1980 a 1997. Dezessete anos de passeio
por sua produção. Em momento algum, ele explica, nem em seu
“Por falar em prefácio”, nem nos comentários de Sânzio
de Azevedo e Jorge Tufic, que se trata de uma revisão de sua obra,
ou mesmo uma tentativa de “antologia” ou qualquer outra coisa semelhante.
Deixa a idéia, então, de um conjunto de poemas “arrumados”
num monte de páginas encadernadas e dobradas, somadas a algumas
ilustrações e arquitetadas num lançamento no Ideal,
que é pra não perder a pose.
A concepção errada de poesia aparece em Hemisfério
Translúcido pela imprecisão ao utilizar maiúsculas
e minúsculas no início de cada verso, nos erros de pontuação
e no excesso de sílabas em alguns versos. Eis alguns exemplos, como
no poema “Quando partir”: “Quando eu me for e é mais-que-certo:
irei,/ não será por alguém; menos por todos./ nem
por, de afeto, a falta; não pelo mundo infecto. nem por modo emocional
subitamente./ não estarei alegre; irei já quase ausente.”
Qual a regra a ser seguida? Do primeiro para o segundo verso, há
uma vírgula, quando a leitura pede um ponto. Do segundo para o terceiro,
talvez fosse melhor uma vírgula, e há um ponto. Claro que
pedir regra é demais, principalmente para um escritor assumidamente
caótico como Alano. Mas poesia não é chacota. É
trato com a língua. O
excesso de sílabas nos versos aparece, por exemplo, em
Modern Jazz Quartet
plac-plac do tear
bipisado por Zilá
e o bip-bip sincrônico
de algum sistema eletrônico
parece o barulho
de um trem que ameaça mas não vem
e a esquina agora
em preto a estalar esqueletos
e a vizinhança
em festa louca que é risos álcool seresta.
Alano erra a mão também em algumas construções
poéticas de qualidade duvidosa, onde tenta fazer um jogo de palavras
previsível, como em “Liz Taylor:
A flor de lis
sacada pelo talo
lançada
foi à tela
para Liz”.
Ora em verso livre, ora em soneto - com esquemas rimáticos do tipo
ABBA / BABA / CCD / EED - ora em poema concreto, Alano faz uma poesia definitivamente
indefinida. Talvez seja proposital. Ou talvez seja a sua própria
definição. Basta se lembrar de Histórias do começo
do mundo, livro de contos publicado por ele há uns dois anos. Ali,
personagens soltavam o verbo, mas apresentavam uma certa frouxidão,
além da carência de enredo.
Apesar de um livro irregular, Hemisfério Translúcido é
o retrato de um artista, ou pelo menos um fragmento do que ele capta de
certos elementos de Fortaleza. Neste ponto, Alano fica mais rico: quando
faz alusões a logradouros da cidade. Precisaria apenas de mais sutileza
e mais revisão. Afinal, nada melhor do que reler e refazer poemas,
mesmo aqueles escritos há mais de dez anos. Bom para o artista,
bom para a poesia.
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