Ronaldo Cagiano
Um sutil balanço existencial
26.09.2004
Vem de Fernando Pessoa uma afirmação que muito corrobora a estréia,
aos 70 anos, do jovem poeta Ary Albuquerque: “A liderança, como toda
arte, é a confissão de que a vida não basta”. Depois de uma vida de
intensa atividade, vitorioso no campo pessoal e empresarial, o autor
sentiu que não era suficiente ter sido bom filho, marido, pai e
empresário e quis chegar ao seu ocium cum dignitate, fechando
um ciclo produtivo e abrindo outro com chave de ouro.
Trata-se da poesia que ora vem à tona com a publicação de “Tríade
poética” (Topbooks, Rio, 2004 - Lançamento no Ideal Clube, nesta
terça, 20h).
Como se diz popularmente, um cidadão para se sentir completo,
precisa fazer filhos, plantar uma árvore e escrever um livro. A Ary
faltava apenas a última missão, pois como homem cumpriu, com
decência e responsabilidade, as outras duas, constituindo uma
família, formando uma empresa e agindo ecologicamente. Concretiza-se
agora seu grande sonho com a publicação de um livro, em cujos
poemas, escritos nos últimos quatro anos, há uma espécie de encontro
de contas com a própria vida.
A coletânea, dividida em três partes - Ciclo do tempo, Poesia &
poesia e Diálogo com a memória - panoramiza seu olhar, aquele que
rastreia a memória, a passagem do tempo, a sua visão de mundo. Com
ela desnuda o universo, em suas projeções terrenas e anímicas,
centrado na reflexão sobre o quotidiano a partir de seu
privilegiado sentimento de observador, cuja experiência de sete
décadas deram-lhe argumento para essa revisão estética de tudo o que
viu e sentiu. E Ary o faz dentro de uma perspectiva poética bastante
peculiar, primando pela singeleza e elegância, num padrão que em
muito nos lembra o lirismo sem pieguice e as reflexões recheadas de
humor de Mário Quintana.
Há na obra uma construção diáfana e objetiva, em que o autor,
abstraindo-se de maiores preocupações acadêmicas ou formais, centra
seu foco na carga espiritual e afetiva de seus poemas para
transmitir ao leitor uma mensagem de cunho intimista. Ao lado de uma
sutil crítica ao mundo moderno, repleto de coisificação e etiqueta,
abre um espaço para falar também da simplicidade da vida, dos
sentimentos e valores cada vez mais exíguos nessa sociedade veloz e
utilitarista, como fraternidade, amor, solidariedade, a esperança e
a crença na família e em Deus.
Ary é um poeta que não se rotula, não se condiciona a esta ou aquela
escola literária. Lírico, adota tanto a rima quanto o verso livre
dos modernistas, para cantar o amor e a fé na humanidade, sem
perder-se no sentimentalismo vão. Crítico, não se deixa resvalar
pelo acúmulo de ódio nem seu verso se presta à panfletagem. Sua
poesia, com melodia e ritmo, mantém uma estreita sintonia com sua
realidade psicológica e as emergências do seu tempo, dialogando com
o passado e o presente, muitas vezes numa atitude contemplativa em
que faz um meio termo entre o saudosismo e a utopia.
A necessidade de cantar o mundo que o cerca é tão flagrante, que o
autor detonou, em menos de cinco anos, todo um processo criativo
acumulado ao longo de décadas. Em todo o tempo e lugar percebemos um
poeta detido nesse intenso mergulho existencial, num élan promissor.
Assim, um poema pode surgir tanto dentro de um avião, numa viagem
entre Fortaleza e São Paulo, ou do Rio a Paris ou Nova York, quanto
num recesso familiar nalguma praia, estância ou hotel. O autor vai
dando asas à imaginação e não há lugar nem hora para irromper dessa
poesia, como podemos perceber na maioria delas, em que o autor
registra a ocasião em que as elaborou.
É poesia que jorra num fluxo vertiginoso, represada durante a vida,
mas que chega com talento, força e magia, sondando o íntimo para,
finalmente, celebrar a vida, as pessoas, a família, os amigos, o
Ceará.
Sua tessitura é cheia de afeto e claridade, demonstrando não apenas
sua força vital, mas a jovialidade de alguém no resgate de seus
sentimentos. E aos 70 anos bem vividos, tem mais bala na agulha,
demonstrando muito espaço e fôlego para continuar essa comunhão
literária, e comunicar a sua arte. Como era em Drummond, também em
Ary Albuquerque, o tempo é sua matéria, o tempo presente, os homens
presentes a vida presente.
O livro, com primoroso trabalho gráfico, contou com a seleção do
prestigiado escritor e crítico José Alcides Pinto, apreciação e
apresentação de Adriano Espínola, Gerardo Mello Mourão e Ivan
Junqueira. Obra singular que mapeia o imaginário pessoal e coletivo,
dialoga com o mundo, a natureza e os sentimentos. Não se perde em
devaneios, evidencia a preocupação do autor em explicitar sua visão
de existência realizando uma catarse íntima, numa linguagem
realista, com algumas peculiaridades estilísticas, como a interface
com outros autores. Nota-se, também, que o poeta evita os excessos
metafóricos, e mesmo quando retrata o metafísico e o abstrato, busca
sempre a concisão e a clareza, ainda que nos poemas mais longos,
quando funde poesia e prosa. Características que demonstram sua
versatilidade na utilização da palavra e no domínio dos temas a que
se propõe.
O autor é um homem realizado e agora na plenitude de seu ofício
poético, quer dar-se por inteiro ao leitor, na meritória tarefa de
cantar a vida que o presenteou com um talento que ora desabrocha,
sem tardança e em grande estilo: “Quem me quiser conhecer/ que venha
já/ Não posso aguardar/ O tempo é breve/ como posso esperar?
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