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			Ronaldo Cagiano 
 
            
 Quem são os verdadeiros animais?
 
            
			
 
 
 
            Na literatura, a utilização dos bichos 
			como personagens, na maior parte das vezes, se situa no terreno da 
			fábula ou da anedota, apropriados simbolicamente como projeção do 
			mundo dos humanos. A transposição metafórica do universo humano para 
			o dos animais tem em “A revolução dos bichos”, de George Orwell, a 
			sátira de que a luta para a destruição do poder culmina na 
			instituição de outras tiranias, igualando-se homens e bichos.  
            É sobre esses paradigmas de relação do 
			homem com a natureza e os animais de que fala o livro de contos 
			“Verdadeiros animais”, da jovem escritora americana Hannah Tinti. 
			Nos 11 textos, os animais servem como ponte para um mergulho 
			conceitual e reflexivo. 
 O abandono e a submissão da vida animal
 
 
            As histórias são repletas de situações 
			bizarras, permeadas de surrealismo e mistério, em que “humanos” e os 
			“selvagens” são agentes das mesmas tensões e ambigüidades. O livro 
			revela a inquietação dos animais em seus momentos de desatino ou 
			estresse, quando acabam se rebelando contra a opressão e os 
			condicionamentos impostos pela civilização.  
            No conto que dá título ao livro, no 
			estilo do mais apurado realismo fantástico, o leitor vai deparar com 
			a insurreição de girafas, que fingem um suicídio coletivo reagindo 
			contra as regras e as condições do cativeiro no zoológico. Em outro 
			momento, presente uma sutileza filosófica, um ex-soldado da guerra 
			do Camboja e um escritor que trabalham no mesmo local discutem seus 
			problemas existenciais. Enquanto aquele trata de elefantes e mantém 
			limpo o seu ambiente, o outro tenta driblar suas atividades e vender 
			seu livro de poesia longe dos olhos do chefe.  
            Em todas as histórias nota-se uma 
			profunda preocupação da autora em explicitar o caráter de solidão, 
			abandono e submissão da vida animal. E ainda que realçando num ou 
			noutro caso o amor que os homens têm pelos animais, fica a sensação 
			de uma afetividade escravizante, subordinada a uma hierarquia de 
			valor existencial. Assim como ocorre nas re(l)ações entre os homens, 
			tão cheios de desencontros e frustrações em seus sistemas de 
			convivência, provocando comportamentos que beiram o tênue limite 
			entre o delírio e a morbidez, resultado de uma frieza escatológica 
			que tem origem na superficialidade da sociedade contemporânea.  
            Nessa fauna interessante de 
			protagonistas, Hannah Tinti vai deslindando territórios surreais e 
			atmosferas que refletem as aventuras ou os momentos de 
			claustrofobia, violência, loucura, caos psicológico e morte. É o 
			caso de “Lar, doce lar”, que retrata um crime passional cuja única 
			testemunha é um cão. Ou em “Como reanimar a cobra de sua vida”: uma 
			estudante de medicina convive em seu apartamento com uma jibóia 
			deixada pelo seu namorado, enquanto desfia lembranças de um cadáver 
			que lhe serviu como objeto de estudo em suas aulas de anatomia, até 
			que um dia decide matar a cobra e servi-la num jantar. Em “Conversa 
			de perus”, três meninos roubam um carro e fogem de casa pelo 
			interior do país para escapar da violência doméstica.  
            Acontecimentos como esses, em que o 
			absurdo e o supra-real são tratados com humor, ironia e forte 
			inclinação ao estranhamento e à provocação, refletem o universo em 
			que vivemos, em que os sentimentos humanos são postos à prova nos 
			momentos em que valores primários são negligenciados e tanto homens 
			como animais vivem encurralados e tentam transpor seus limites, 
			romper amarras e desatar algemas. É quando irrompem as reações mais 
			inesperadas.  
            As demais histórias ajudam a compor um 
			cenário que em muito lembra o clímax dos filmes de Hitchcock e dos 
			contos de Edgar Allan Poe, mas revestindo-se de uma sutileza e de 
			uma poesia que enfeixam uma linguagem ricamente trabalhada e que 
			funciona como um alçapão, prendendo o leitor e preparando-o para 
			desfechos surpreendentes. 
 Domínio da narrativa no terreno da dicção surrealista
 
 
            Os contos de Hannah Tinti marcam a sua 
			estréia em grande estilo. Habilidosa, versátil e inventiva, revela 
			grande domínio da técnica narrativa no terreno pantanoso da dicção 
			surrealista, em que nem sempre as inovações conseguem vencer os 
			velhos clichês. Suas histórias, embora distintas, estruturam-se 
			dentro de um mesmo liame temático, pois a preocupação com os animais 
			reverbera a denúncia, sem maniqueísmo ou panfletagem, dos rumos da 
			própria sociedade, contaminada pela falta de humanidade que mina a 
			vida moderna. No caso, não há dúvida: somos nós os mais hediondos 
			animais.
 
 
 Verdadeiros animais, de Hannah Tinti. Tradução de Ryta 
			Vinagre. Editora Rocco, 200 páginas. R$ 28
 
 
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