Ronaldo Cagiano
Aluvião
poético
Jornal do Brasil –
Caderno B – Livro
Rio de Janeiro – RJ, terça-feira, 25 de outubro de 2005
Poesia de
José Inácio Vieira de Melo
une coloquial e erudito com raro lirismo
Embora longe do grande público, em
razão das dificuldades de divulgação de suas edições independentes e
sem distribuição, e conseqüentemente, à margem do processo editorial
por residirem fora do hegemônico eixo Rio-São Paulo, há uma geração
de escritores em diversas regiões do País produzindo poesia e ficção
de qualidade. Principalmente no Nordeste, cada dia temos notícias de
autores que publicam, ora com parcos recursos pessoais, ora
revelados por algum concurso literário, que vêm despontando em sua
região com um trabalho bem recebido pela crítica local, apesar de
inalcançáveis pela mídia do Sudeste-sul.
Entre esses autores, José Inácio
Vieira de Melo, alagoano radicado em Salvador, autor de Códigos do
Silêncio (2000) e Decifração de Abismos (2002) se destaca tanto como
agente cultural, dirigindo o projeto “Poesia na Boca da Noite”, como
divulgando sua produção individual. Seu novo livro, A Terceira
Romaria (Aboio Livre Edições, 2005, 126 pgs., R$ 20), mostra toda a
força lírica e metafórica de uma poesia que traz na sua concepção o
coloquial e o erudito, o apelo à intertextualidade e alguns influxos
metalingüísticos e paródicos.
A versatilidade desse poeta
sintonizado com suas raízes e marcado pelas dores de seu povo,
constata-se tanto nos versos de “Bodas de sangue” (Ah Cristina Hoyos,
deusa de Espanha,/ vem bailando em nuvens e em versos de Garcia
Lorca,/ vem com teus punhais para a minha peixeira de 12 polegadas,/
pois as nossas bodas só podem ser de sangue.) e “Dois momentos”
(Entro no poema como quem come cuscuz/ e sai dia afora para encarar
a existência) como em “Epitáfio para Guinevere” (Para tu, que
trazias os céus dentro dos olhos,/ o relinchar da paixão pagã/ dos
cavalos que trago dentro de mim) e “Do pensamento” (O mistério me
leva à estrada/ e a estrada revela/ a poeira que sou.// O espanto me
conduz à reflexão/ e a reflexão revela/ a peneira que sou.). A sua
linguagem incorpora o conhecimento da literatura clássica e os
valores de uma poética polissêmica, assimilados no contato com a
tradição oral do sertão, marcadamente os mitos religiosos e os
signos profanos e no trânsito com outros autores e vertentes.
Nesse aluvião poético, extrai da
memória, da infância e do tempo elementos para estabelecer um
diálogo com a realidade e a compreensão da natureza de todas as
coisas, além de um lirismo que traz candentes abordagens de amores e
frustrações. Uma poesia que extravasa o grito interior do homem
sufocado por valores anacrônicos, cioso por extrapolar seus limites
rurais, inscrevendo um certo questionamento existencial. O autor
acaba por instaurar uma catarse espiritual e psicológica a partir de
universos lúdicos, de um retorno às suas experiências de vida e uma
visita ao homem e à terra castigados do sertão, explorando toda sua
carga rítmica e seu potencial mi(s)tico, sem artificialismo ou
exageros, porque fruto de rigorosa cuidado e pesquisa da linguagem.
E em momentos de profunda confissão, como nestes “Exercícios
crísticos” (Trago comigo todos os pecados do mundo/ e sou o cordeiro
imolado que alimenta o delírio,/ por isso a glória e a humilhação do
vinho:/ não é nada fácil ser juiz da própria loucura.), José Inácio
desabafa, expondo seu sentimento do mundo e trazendo fôlego novo à
poesia brasileira.
Ronaldo Cagiano é poeta, contista e
ensaísta. Nasceu em Cataguases (MG) e vive em Brasília desde 1979.
Publicou vários títulos, dentre eles “Canção dentro da noite”
(poesia, 1999), “Dezembro indigesto” (contos, 2001) e “Concerto para
arranha-céus” (contos, 2004).
Leia José Inácio
Vieira de Melo
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