Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Rodrigo Fonseca


 

Garimpando esperanças
 

 

24.12.2005


 

Falou-se muito, desde o recente lançamento de “Eu receberia as piores notícias dos seus lindo lábios” (Companhia das Letras), que Marçal Aquino estava diferente. Literariamente, a justificativa era clara. Há 20 anos na trilha das letras, desde que “cometeu” (nas suas próprias palavras) os poemas de “Por bares nunca dantes naufragados” e se consagrou com contos onde a violência era a vedete mais assediada, ele se reinventou, no novo romance, ao narrar uma love story ambientada longe das deselegantes esquinas paulistanas. Mas a mudança não tem nada a ver com o fato de o escritor e roteirista (um dos mais festejados e procurados do cinema nacional) ter criado aquele que a crítica vem celebrando (com pertinência) como seu melhor livro. A verdade é outra.

Aquino cometeu um crime: assassinou um anão. Para um principiante, o autor do conto “Os matadores” (celebrizado no filme homônimo de Beto Brant) até fez o “serviço” direitinho e se livrou de Edgar (sobrenome desconhecido), o anão, sem deixar vestígios. E sem fazer sujeira.

— Nem vale a pena mencionar essa história do anão — sugere ele, que deve ter se livrado do corpo no mesmo garimpo em que se ambienta “Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios”.

Edgar redimido no amor de Cauby e Lavínia
 

Presidente de uma multinacional, Edgar tinha uma história triste, que seria narrada no conto “Lilipute”: temerosa de ter um filho com nanismo, sua esposa pede a um amigo que a engravide, mas morre no parto, depois de dar à luz um bebê, também anão. Por vaidade — “Sei tanto sobre essa história, até o final. Por que escrever uma história que já conheço?”, alegou como desculpa — Marçal descartou o conto.

Porém, a redenção que Edgar não teve em vida, o fotógrafo Cauby, protagonista de “Eu receberia as piores notícias de seus lábios”, cobrou de seu criador: ver sua história ganhar um ponto final no parágrafo certo. E conseguiu. Refugiado em um garimpo paraense, numa região onde mortes, traição e paixões proibidas se complementam, Cauby comete o pecado de não perceber que, de um lado da sorte, conjuga-se o verbo “amar”; do outro, “viver”, seu antônimo. Fascinado por uma beldade misteriosa — Lavínia, a mulher do pastor — ele, aparentemente, assina sua sentença de morte. Mas ao perceber, graças aos ensinamentos que lê nos livros do professor Shianberg (uma espécie de Erich Fromm metido a Confúcio) que a realidade é um grande western spaghetti , com cara de “Era uma vez no Oeste” (ninguém é 100% bandido, ninguém é 100% mocinho, e Claudia Cardinale já está enrabichada por Henry Fonda), ele vai mudar sua sina.

— A realidade brasileira hoje é a encenação de um grande faroeste, tanto no campo quanto nas cidades. Um faroeste diferente, bem selvagem, em que, ao contrário dos filmes do gênero, valores como ética foram completamente abolidos. Nem sempre é claro quem é mocinho e quem é bandido nesse tiroteio. E paira no ar a incômoda sensação de que podemos morrer no fim — diz Aquino.

Recurso atípico para o autor: um final feliz
 

Vencedor do Jabuti pelos contos de “O amor e outros objetos pontiagudos”, Aquino concedeu a Cauby uma colher de chá atípica em sua obra: um final feliz. Nada adocicado ou hollywoodiano. Até porque a melancolia reside no tutano de cada osso de Cauby e da fauna de corações solitários que cruzam seu caminho.

— Pode ser que esse “final feliz” tenha a ver com meu desejo de experimentar novas possibilidades narrativas, de não trilhar caminhos que já passei — diz Marçal, que virou uma espécie de queridinho do cinema brasileiro.

Desde que foi convidado por Beto Brant para roteirizar “Os matadores”, de 1997, Aquino já escreveu cinco longas. Assinou “Ação entre amigos” (1998), “O invasor” (2002) e “Crime delicado” (2005), para Brant, e “Nina” e “O cheiro do ralo” (em finalização) para Heitor Dhalia. Apesar de sua escrita ter virado um fetiche para os cineastas brasileiros, ele recusa a tese dos que farejam celulóide entre seus parágrafos.

— Costumam mencionar o caráter cinematográfico da minha prosa e, de forma equivocada, veicular essa característica à minha atividade como roteirista. Minha escrita tem a ver com o cinema, mas não por causa dos roteiros.
 

 

Marçal Aquino

Leia Marçal Aquino


 

 

 

 

 

05.04.2006