Rodrigo Petronio
Nova Atlântida
Um azul-magenta
carcome as bordas do horizonte enquanto o vento circula e em
precipitações lentas derruba pétalas de papoula sobre um colo branco
que sonha. Aves de metal expulsam o ouro das narinas e desalinham o
tecido mineral da noite: amanhece. Chaminés trabalham as nuvens com
seu bafejar monótono de cravo. Torres de ouro cingidas por argolas
de cinamomo assoviam com a brisa que leva o cheiro de lótus e do
asfódelo para oeste. Homens desentranham tapetes de fiandeiras de
prata, reluz no chão uma constelação de várias cores: ônix,
turquesa, quartzo, turmalina. Fúcsias, crisântemos, rododendros,
magnólias, begônias, hortênsias e prímulas se agitam sob o
vermelho-vítreo do céu de inverno. Dançam calicantos e íris. Clívias
e aparinas se entrelaçam à gestação amarela do dia que entra líquido
e lento pelas cortinas do palácio.
− E tudo isso
vai ruir um dia? – interpela o Viajante.
− Não – responde
o Rei. – Porque nada disso de fato existe. Somos a condição para que
outros reinos e cidades possam vir a ser. Eles bebem em nós as suas
formas, inspiram em nosso movimento o seu movimento. Somos a cidade
que gesta em si todas as cidades. Como o pássaro Simorg, de cuja
sombra nascem todos os pássaros da Terra.
− Por que então
tanta miséria pelos rincões do mundo?
− Eu não disse
que contemos todas as cidades potencialmente? Por que seríamos
alheios ao domínio dos abutres e aves de rapina? O que vês é pura
simulação. Mal o sol declina e tudo se reveste do seu avesso: o ouro
se transforma em zinco, as fiandas em terra batida, ramos verdes em
ramos tintos, este tapete de céspede faz-se areia e o céu, que ora é
esse veludo vivo, míngua extinto. As aves caem mortas à beira das
estradas e o rosto dos homens se apaga como uma tocha dentro da
noite. As rosáceas se fecham em luto e só o cadáver de flores
fatigadas se contempla forrando todas as latitudes do campo. As
crianças ressecam e estalam e os galhos se vergam ao peso do orvalho
e do limo. Os fantasmas saem do subterrâneo, saqueiam as estrelas e
derrubam as estátuas de nossos antepassados.
− Para quê então
o espetáculo? Para quê a pirotecnia? − indagou o Viajante.
− Para que a
Terra possa prosseguir girando. Para que nós, do Hemisfério Sul,
sigamos trabalhando a matéria imprecisa e maleável do futuro.
− Tudo como se
fosse o sonho de um sono ininterrupto. Noite e dia se intercalam no
seu reino. E quando ele se alegra nem se nota o que lhe é contrário.
Mas quando tudo acabar...
− Muda-se o
cenário − acrescentou o Rei.
− E o que se
ganha com isso?
− Somos assim os
promotores de mundos possíveis e passíveis de construção, um grande
laboratório que funciona diuturnamente engendrando novos horizontes
para a vista. Quem sabe um dia não seremos o Lugar que fundamenta
todos os lugares? Não predizemos o que está por vir: redescobrimos
territórios virgens e novas formas de felicidade no passado.
− E a vida das
formas fugazes? O império dos espíritos voláteis que move as folhas
por dentro, desfaz as anáguas invisíveis das nuvens e desliga as
pétalas com seus dedos de vento?
− Vai continuar
se movendo como agora se move sob a água.
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