Entrevista de Ruy Proença
a Rodrigo de Souza Leão
Ruy Proença:
São Paulo, SP. Nascido a 9 de janeiro de 1957. Engenheiro
de minas. Autor de: Pequenos Séculos, poemas,
Klaxon, São Paulo, 1985; A lua investirá com
seus chifres, poemas, Giordano, São Paulo, 1996. Como um dia
come o outro, Nankin, 1999. Participou das coletâneas
de poesia do Grupo Cálamo: Lição de Asa,
Iluminuras, São Paulo, 1993; Vila Lira Rica, dos
Autores, São Paulo, 1995; Desnorte, Nankin, São
Paulo, 1997. Teve poemas publicados na Anthologie
de la poésie brésilienne, edição
bilíngüe, organização de Renata Pallottini,
Chandeigne, França, 1998; Coletânea de poesia Fui eu,
organização de Eunice Arruda, Escrituras,
São Paulo, 1998; Revista Continente Sul Sur, nº
9, Porto Alegre, 1998; Revista Orion, nº 1, São Paulo,
1998; Jornal RioArtes, nº 25, Rio de Janeiro, 1998; Revista
Cult, nº 13, São Paulo, 1998; Revista Anto, nº 3,
Portugal, 1998; Revista Inimigo Rumor, nº 4, Rio de Janeiro,
1998; Revista Poesia Sempre, nº 9, Rio de Janeiro, 1998; Jornal Correio
Brasiliense, 15.03.98; Revista Ruptures, nº 13, Canadá,
1997; Jornal Versus, São Paulo, n° 17, 1977.
Desde 1990 integra o grupo Cálamo de
criação poética. Críticas sobre a obra
do autor: Paes, José Paulo. Boletim de saúde.
In: O lugar do outro – ensaios, Topbooks, Rio de Janeiro,
1999; Pacheco, Ana Paula. Revelação
em negativo. In Revista Cult, nº 24, São Paulo, 1999.
Rodrigo Souza Leão
- O título do seu segundo livro, “A lua investirá com
seus chifres”, foi tirado do poema “Varanda”, onde diz: “a poesia
envenenou-me / já não há mais tempo”. A poesia é
a salvação ou o começo da perdição?
Uma vez poeta sempre poeta? É uma corrida para dizer tudo
enquanto há tempo?
Ruy Proença - Escreve-se
menos por saber de antemão sobre as coisas, mais
por buscar compreendê-las. A pergunta “o que você
quis dizer com isso?” é uma pergunta que, no fundo, o poeta
faz a si mesmo o tempo todo, sem ter a resposta
na ponta da língua. Se no fazer poético houvesse
o império da razão, não haveria poesia.
A poesia é uma espécie de lógica às
avessas. Você tocou na ambigüidade
do símbolo do envenenamento: o que envenena, mata. Mas, paradoxalmente,
se ? veneno for a poesia, a vítima pode estar
“condenada” a voltar ao paraíso. É um ponto
nevrálgico na leitura, sem dúvida. Igualmente,
a idéia da finitude do tempo (“já não há
mais tempo”), contraposta ao final (“exatamente
assim / passará um milênio”). Isso me faz lembrar uma
frase do Joyce:
“com ou sem mim, todos os
dias vão ao seu fim”. Mas é preciso ir mais adiante.
Associar lua com cebola, cebola com olho, olho com coração.
Às vezes acontece isso: o poema detona uma reação
em cadeia, algo parecido com as fissões nucleares.
Outro dia li que o Roland Barthes dizia que o poema deve ser lido
como uma cebola. Tem várias camadas concêntricas
de significação. É preciso ir abrindo
camada a camada, até chegarmos a alguma compreensão
mais globalizante. A propósito do verso que deu título
ao livro, e já fugindo à sua pergunta, é curioso
observar o seguinte. Cheguei a ele por caminhos
tortos. Minha mãe costumava dizer: é preciso
segurar o touro pelos chifres, querendo dizer:
é preciso enfrentar a vida de frente. Imaginei
essa imagem da lua investindo com seus chifres,
à semelhança de um touro. Sim, porque a poesia
pode ser perigosa. Mas como todos os poetas já pensaram
tudo antes de nós, não deixaram
nada para descobrirmos, aos poucos eu, o Fabio
Weintraub e outros amigos, fomos descobrindo várias
referências a esse topos, o chifre da lua, começando
por Horácio (“lua, rainha bicorne dos astros”),
passando por Alvarenga Peixoto, Mallarmé,
Dámaso Alonso, Garcia Lorca, Sosígenes Costa, Carlos
Felipe Moisés etc.
Rodrigo -
No poema “Lugares” o escuro
é oposição a praias/estrelas/vidente.
O que é a escuridão para
um escritor? Como é o seu processo de criação/iluminação?
RP - Em princípio
toda criação vem do escuro, assim como vem do silêncio.
Se já estamos prenhes até as tampas de imagens e sons,
somos obrigados a nos descondicionarmos para novamente perceber o milagre
da vida. A poesia é a memória da chama de um
fósforo na escuridão. O fogo se apagou, mas
deixou um rastro em algum canto da memória. É
a imagem deste fogo, do espanto, do deslumbramento que
tivemos enquanto a chama existiu a ponto
de nos queimar os dedos, que nos dá alento para viver.
É portanto algo de sagrado, uma centelha divina, que nos
alimenta. E precisamos disso, pois toda tecnologia inventada,
todo conforto, não foram ainda capazes de
nos tirar das cavernas.
No poema “Lugares”
mencionado, o que me chama a atenção é
esse espaço desconhecido dentro de nós, que chamo
de alma, como poderia chamar de outra coisa, “o
eu profundo”, por exemplo. É um espaço invisível,
nem sequer podemos contar com a ajuda de um fósforo para clareá-lo.
Nossa única arma então é nossa intuição,
o olho voltado para dentro. E nesse espaço, talvez um
cego enxergue mais que um vidente. Nele, céu e
praia são geograficamente intercambiáveis, o mundo
da alma não tem pé nem cabeça. A simetria do
poema empresta uma forma à voz do poema,
e por aí vai... Duas imagens foram os estopins
deste poema: a primeira, uma amiga contando de uma praia na
Bahia, Nova Viçosa, em que a noite e a praia são tão
escuras, que não se consegue distinguir bem a areia reluzente do
céu estrelado. A segunda, uma crônica do Nelson Rodrigues,
descrevendo o fantasma da cegueira em sua vida: na infância,
a imagem de um quarteto de músicos cegos tocando na
calçada em frente à sua casa; na idade adulta, a constatação
trágica – sua filha era cega.
RODRIGO - Em “Teve esta sina”
o amor não está “nem na miséria e nem na opulência”.
Qual o lugar que a lírica amorosa tem em seus livros?
RP - O amor é tudo
na vida. Por conseqüência, também em minha poesia. Há
antes de mais nada um amor cósmico, pelos seres do mundo,
quer sejam eles vivos ou coisas. Falar de uma galinha é uma
forma de amá-la. Que o leitor não me
interne num manicômio por tão pouco!... Mas há
também poemas sobre o amor stricto sensu. E há também
um desassossego, um desencanto em relação ao ser humano,
que não deixa de ser uma forma de amor ao contrário,
isto é, como seria bom se não houvesse tanta violência,
tanta mediocridade, tanta desigualdade. Alguns leitores,
ainda apegados à poesia romântica ou
à poesia confessional, estranham só muito raramente
encontrarem o “eu” em minha poesia. Mas citando o poeta Ronald Polito,
que por sua vez dialoga com João Cabral...,
“não há nada mais subjetivo do
que não falar de mim”. É essa minha
lírica amorosa: o que está solto
por aí, o que faz parte da experiência
coletiva e não depende só de
mim. Porque dificilmente imaginaria que uma
lírica amorosa puramente autobiográfica poderia
interessar a alguém mais, além de mim mesmo e de minha
parceira.
RODRIGO - “Edifício
de heróis” é um poema piada? Muita gente torcia os olhos
para o humor no poema, como encara a questão?
RP - Não
entendo bem porque a pergunta foi colocada no pretérito
imperfeito. Posso tranqüilamente imaginar que ainda haja pessoas
que torçam o nariz... Há muitos escritores que tendem
a sacralizar a poesia. A sacralização ritualista
da poesia pela poesia é asfixiante, não passa de uma
maquiagem. O verdadeiro sagrado respira humor por todos os poros,
e é bem possível que Deus agora esteja
se divertindo com essa conversa. A vida é feita de contradições
e o humor pode ser uma senha para compreendê-las
e suportá-las. O humor é uma arma poderosíssima
para enfrentar os desencantos do mundo. Digo uma arma
e não a arma. O que estraga é querer transformá-lo
em dogma. É apenas um caminho possível
que, se bem utilizado, pode mitigar nossa dor de existir.
Há diferentes formas de humor, das mais
sutis às mais escrachadas, e a literatura está
repleta de exemplos: lato sensu, há humor em Machado,
em Mário de Andrade, em Guimarães Rosa, em
Paulo Leminski e em Dora Ferreira da Silva, por paradoxal que isto
possa parecer no caso de Dora. O importante, é que esse humor é
sempre particular. Em Dora e Rosa aproxima-se do epifânico. Em
Leminski é mais luciferino. De resto, toda grande poesia recente,
de Pessoa a Drummond, é recheada de humor. Como diz
Sebastião Uchoa Leite, “radicalmente sério
/ só o cemitério”.
RODRIGO - Qual tipo
de ferramenta é o poema? “É preciso quebrá-lo (...)
// destruí-lo / reconstruí-lo?”
RP - Octávio
Paz, se não me engano, assim como Manoel de Barros,
dizem que a poesia é uma arte que lida com o inútil.
A poesia não tem valor de mercado. Esta talvez seja sua maior virtude.
Talvez se constitua num dos raros domínios em que a ditadura
do dinheiro não conta, assim como todo processo
civilizatório conta muito pouco. Isso a transforma num ponto
privilegiado de encontro. É quase um encontro
primordial, tribal, no melhor sentido. Nesse espaço,
nossos ancestrais dialogam conosco em pé de igualdade.
O poema pode ser uma ferramenta, na medida
em que nos transporta para outros lugares inusitados.
Neste sentido, o poema “O Chevrolet”, do livro “Como
um dia come o outro”, é um desdobramento desta temática.
São poemas metalingüísticas, que colocam em cheque
a construção do poema. O poema ao qual você se refere
procura mostrar o quanto há de trabalho por trás de
um poema, muito pouco ou quase nada nasce espontaneamente.
Há trabalho de experiências pessoais
acumuladas, leituras, escritura do poema,
retrabalho. Além disso, o poema
tematiza o deslocamento, o descondicionamento, para criar
um ambiente propício à desautomatização
de nossas idéias, comportamentos, gestos etc. Se formos
pensar no tanto que há de suor na composição
de um poema ou texto literário, talvez mudemos de idéia
com relação a um Deus bem humorado.
RODRIGO - Em tempo onde a
metáfora e a linguagem conotativa não são alicerces
tão comuns de uma dicção poética,
você utiliza estes “motores” para construir
os seus poemas. Qual a importância da tradição?
Quais são os poetas e escritores que admira?
RP - Desculpe-me, mas dizer
que a linguagem conotativa não é um alicerce
da poesia me parece um grande equívoco.
A linguagem conotativa se confunde com a
própria função poética, tão
procurada pelos teóricos da linguagem. De resto, nenhuma linguagem
é puramente conotativa, nem puramente denotativa.
O que talvez você tenha razão em afirmar, é
que determinados poetas são menos metafóricos. Mas são
raros e é preciso relativizar esta afirmação.
Mesmo em poetas como Chico Alvim, onde a
metáfora imagética é menos freqüente,
ainda assim se faz presente. Além disso, um poeta nunca é
o mesmo ao longo da vida, e pode ser que o próprio Chico Alvim
não se reconheça neste juízo. Se com sua pergunta
você quis dizer que minha poética é muito imagética,
concordo. E sinceramente, não sei bem porque é
assim. A visão é um sentido hegemônico em nós,
caso contrário ainda estaríamos farejando o chão
e cheirando na rua as partes pudendas das
pessoas. O que, aliás, não seria nada mal... Quanto
à segunda parte da questão, sinto que muitos de nós
desprezamos a tradição quando começamos a escrever,
arrogando-nos soberbamente a propriedade de sermos originais.
É uma bobagem! Quando nada conhecemos, quando nossa referência
é o nada, nos superestimamos, porque diante do zero tudo passa
a ser original... Quanto mais ficamos sabendo
das coisas, quanto mais lemos, mais vamos tendo
consciência do nosso tamanho reduzido. Corremos até
o risco de descobrir que nosso lugar é tão
pequeno, quem sabe menor que uma cabeça
de alfinete, que desistamos da empreitada.
Pode muito bem ocorrer este fato. Então
teremos descoberto que tudo não passou de vaidade.
Mas até chegar esse dia... Depois, cá pra nós,
mesmo que não déssemos a mínima pela tradição,
seríamos dela reféns à nossa revelia.
Estou com Ana Cristina Cesar quando diz: “podemos optar
pela estética da preguiça, mas nunca pela preguiça
da estética”. Eleger os poetas e escritores de nossa
admiração é tarefa ingrata e
falaciosa. Poderemos estar mentindo para
nós
mesmos. Para a poesia, uma
bituca de cigarro é tão importante quanto um
grande amor. Um catecismo do Carlos Zéfiro, tão
importante quanto um Bernardo Soares. E depois, serão
três, trinta ou trezentos e cinquenta, como
preferia Mário de Andrade? Nossa pretensão não
tem limites: queremos no mínimo ? absoluto... Minhas leituras
não diferem muito das de todos os poetas... E
a vida inteira é pouca para ler o
que desejamos. Espero que ao morrer me deixem passar na alfândega
com todos os livros que quero ler e ainda não tive tempo.
Se me limitarem a bagagem a 20 ou 30 kg, tratarei de levar o que já
li: Guimarães Rosa, Pessoa, Borges, Drummond, Bandeira,
Jorge de Lima, Murilo Mendes, Sosígenes, João Cabral, José
J. Veiga, além, é claro, de alguns livros dos
amigos. Primeiro porque gosto deles; depois, porque odiaria
que falassem mal de mim na minha ausência...
E ia me esquecendo: também o famoso livro “A criação
das criaturas”, do professor Tacus, que não era professor,
e muito menos Tacus.
RODRIGO - No seu terceiro
livro “Como um dia come o outro” há uma radicalização
da temática rumando ao absurdo. Longe de ser surrealista,
como assinala Fernando Paixão na orelha
do livro, qual o lugar do absurdo em sua poesia? É um
projeto literário, uma escolha?
RP - É possível
que os leitores vejam na minha poesia o que eu próprio
não vejo. Eu jamais diria que minha poesia é uma poesia
do absurdo, embora reconheça que em alguns poemas o
fantástico, no que este tem de síntese entre
o real e o imaginário, esteja presente.
Pessoalmente, vejo meus textos deste último livro mais como
uma pequena cosmogonia, ou, quem sabe, um pequeno bestiário.
Nele estão presentes animais reais e animais mitológicos.
O homem também faz parte desta paisagem, embora
de modo menos prestigioso. Agora, não
gostaria que o livro fosse reduzido a esse esquema. Cada tema abordado
é usado para falar do mundo, segundo uma determinada visão.
Há, assim, temas variados que se entrecruzam:
a infância, o medo, o poder, a miséria, o amor... E uma questão
de fundo, que é uma tentativa desesperada
de reencontrar Pasárgada. A vida civil é muito
opressora; ela é que é o verdadeiro
absurdo.
Quanto ao projeto
literário, se for pensado como um grande sistema pré-concebido,
não tenho nada a ver com ele. Mal consigo
ter um projeto para o dia seguinte. Outra coisa é que um livro
significa uma escolha, segundo alguns critérios.
Quero dizer que o que está no livro não reflete totalmente
o trabalho de criação. Outras ramificações,
outras experiências são exploradas paralelamente. Vistos
a posteriori, uma parte dos textos engavetados não passam
de simples exercícios. Mas quem sabe se
entre eles não há também
poemas que eventualmente sejam o início de um outro
livro, adiante, de dicção bem diferente da que
aflorou neste...
RODRIGO - Você gosta
de números! Há números por todos os lados em
sua obra. Gostar da matemática aproximou o
engenheiro ao construtor poético?
RP - Primeiramente, gostaria
de fazer uma restrição quanto ao enunciado da sua pergunta.
Quando você diz que em meus livros “há números
por todos os lados” você está sendo hiperbólico.
Os desavisados podem pensar que se trata
de manuais de matemática... Bem joeiradas as coisas,
salvo 2 ou 3 poemas em que os números entram propositalmente
em profusão – eu citaria “mesmo que tivesse
cem bocas”, em “A lua investirá com seus chifres”, e
“Balada”, em “Como um dia come o outro”, a aparição
dos números é bastante comedida e pedestre. Mas afinal,
os números fazem ou não parte de nosso
cotidiano tanto quanto as palavras? Por que
discriminá-los? Seria desprezar uma série de
talentos acumulados, das civilizações antigas –
fenícios, árabes, gregos etc. – até nossos dias,
passando por muitos filósofos. Quando digo que
os números fazem parte do dia-a-dia tanto
quanto as palavras, quero dizer que não
se vai a uma padaria comprar pão e leite sem que se
faça uma conta. Ademais, por ironia ou não, os poetas costumam
estar entre os mais viciados em números. Faz apenas cerca
de um século e meio que a poesia metrificada
foi contestada e, mesmo assim, continuará talvez resistindo
por séculos afora. Isso vem ao encontro do que digo. Aliás,
nas artes, a matemática não é privilégio
da poesia: a música erudita, a pintura geométrica
(um Escher, por exemplo), fazem igualmente largo uso de suas noções.
Após todas essas considerações, posso responder objetivamente
à sua pergunta. Embora reconheça que a matemática,
assim como a filosofia, a história, a teoria literária e
outras áreas do conhecimento concorram para enriquecer a construção
do poema, eu diria que, para mim, num primeiro momento, escrever poesia
foi uma reação vital contra o predomínio das
ciências ditas exatas. Hoje em dia, vendo as coisas em retrospectiva,
imagino que há duas noções da minha formação
específica de engenheiro de minas – e
mais particularmente ainda como engenheiro de beneficiamento
de minérios –, que de
alguma forma transparecem em meu trabalho. A primeira delas
é a idéia de concentração,
de depuração: fazer o máximo de esforço
para separar o mineral útil da ganga, até obter um produto
o mais concentrado possível. A segunda idéia
é a noção do tempo geológico
que, para nossa escala, é quase
um tempo metafísico, e, por isso, se aproxima de um
tempo sagrado.
Rodrigo - “A
cerejeira / poderá // um dia // provar de
suas cerejas” é um belo poema curto. Como encara a vertente
que avalia por tamanho a qualidade de uma obra?
RP - Nunca ouvi
falar dessa vertente. Felizmente não existe essa fita métrica
mágica capaz de avaliar um poema. Isso nos obriga a estudar,
pesquisar, refletir, lançar o olhar curioso sobre as
coisas. Não queremos ser o balconista que vende
tecidos a metro no balcão. Queremos
algo maior, como desorganizar o mundo para reconstruí-lo
à nossa maneira.
O bom poema é aquele
que é conciso. Isso nada tem a ver com o tamanho do
poema. Um poema longo como “Os lusíadas”,
guardadas as devidas proporções, é
um poema tão conciso quanto o “Amor / humor” de
Oswald de Andrade, ou “Cronologia” de José Paulo Paes (“A.C. / D.C.
/ W.C.”). O que importa, é a velha máxima: dizer
o máximo no mínimo. Cada qual saberá
dizer até onde vai o seu talento para escrever
um poema longo, sem afrouxar o verbo no meio do caminho. Além
do que, muitas vezes, um poema longo é a somatória
de vários poemas menores. Incluo nessa categoria “Invenção
de Orfeu” de Jorge de Lima.
Rodrigo - Deus
anda cada vez mais científico? Em que ciência Ele existe?
RP - Não
me julgo com autoridade suficiente para avaliar a existência
de Deus. Se existe, o abandonamos pelo caminho. Principalmente
aquele patriarcal, onipotente. Em nossa ânsia de dominar
e domar a natureza, fizemos Deus sair de cena. Na história da filosofia
podemos acompanhar o seu declínio. Hoje vivemos um mundo feito de
fragmentos. Deus faz muita falta ao poeta. O poeta é um ser atemporal.
Está mais bem representado pelos alquimistas do que pelos cientistas
contemporâneos. Mas somos tão bons em ciência,
que freqüentemente nos espantamos com nossas
criações. Em certo sentido, nos
tornamos superiores aos deuses, e hoje em dia eles se sentam em bancos
escolares para aprender conosco. Mas nada seríamos
se não houvesse uma centelha divina em cada um
de nós. E, se em matéria de
tecnologia fomos tão longe, em outros assuntos somos
um zero à esquerda. É por isso que, como já disse,
se corrigirmos nosso acentuado grau de miopia, veremos que ainda vivemos
numa caverna escura.
RODRIGO - Como é pertencer
ao grupo de estudos “Cálamo”?
RP - O objetivo primeiro
do Cálamo é ser um grupo de criação.
Todo o mais – pesquisa,
estudo, divulgação – são
conseqüência. Trata-se de um trabalho de criação
individual sob estímulos que são partilhados. Neste
sentido, até onde sei, o Cálamo é uma
experiência inédita. Sabemos de grupos de pintores,
como os do grupo Santa Helena, que saíam a campo com
seus cavaletes para pintarem sob um mesmo
estímulo. Outros domínios artísticos
dão abertura para o trabalho conjunto, como
o teatro, o cinema, a música. Já com a criação
literária, isso é muito difícil
de ocorrer. Temos a experiência
de Murilo Mendes com Jorge de Lima em “Tempo e eternidade”,
mas é um caso isolado. Os escritores são
em geral ciosos de sua privatividade, de sua intimidade.
Na verdade, compensam o ato da criação
isolada – a solidão voluntária –
comunicando-se com alguns de seus pares. O escritor
que não troca experiências, provavelmente
estará perdendo, mais do que ganhando, em termos
de vivência. O trabalho realizado no grupo, pode
não resultar em nada mais do que um esboço
ou pode, até, resultar num bom poema. É importante
frisar que o trabalho em grupo em hipótese alguma exime
os escritores de seu trabalho individual. As
duas coisas se potenciam e, no frigir dos ovos, acredito
que o resultado é um enriquecimento dos trabalhos pessoais.
Estamos juntos há praticamente 10 anos. Há pessoas
no grupo que já publicaram mais de um livro, como é
o meu caso e o do Fabio Weintraub, outras publicaram o primeiro,
como o Cesar Garcia Lima e o Luiz Gonzaga
Neto, e outras estão prontas para estrear. Sem
o trabalho em grupo, talvez não tivéssemos
chegado nem na metade do caminho de onde estamos.
Rodrigo - Como encarou
a matéria da revista Veja que ridicularizou e ironizou poetas?
RP - É
um pouco sintomático ver um jornalista como o Carlos Graieb,
que já fez boas críticas de poesia no tempo em
que trabalhava para o Estadão, entre elas da Hilda Hilst
e do próprio Carlito Azevedo, que aparece na reportagem,
baixar tanto o nível. Infelizmente algumas corporações
hoje em dia fazem questão de quebrar a espinha de seus
servidores, para não dizer servos. Quero acreditar que o próprio
Carlos Graieb não acredita no que escreveu. O termômetro
de uma revista como essa, que, do jeito que está, está
mais para “Ratinho no lixão”, é mercadológico. O que
estou dizendo não justifica a postura do jornalista
e não o exime de sua responsabilidade. Mas vamos ao
que interessa: nossa melhor resposta para esse tipo de imprensa é
nossa poesia.
RODRIGO - Você tem
alguma epígrafe que o acompanhe?
RP - Não, não
tenho. Mas como gosto muito do Aníbal Machado, aproveito para
citar uma epígrafe que uso na abertura do livro
“A lua investirá com seus chifres”: “Dizei-me se ando longe
da guitarra onde nasci.” É um pouco uma profissão
de fé.
RODRIGO - Qual o papel do
escritor na sociedade?
RP - O Drummond, que
viveu numa época em que grandes utopias ainda eram plausíveis,
a uma certa altura de sua vida, na virada dos anos
50, percebeu que, como escritor, jamais conseguiria influir
na máquina do mundo como gostaria. Perto dos políticos
profissionais, sentia-se como uma criança
desamparada. Tratou de limitar-se àquilo que sabia
fazer, dando o melhor de si. Acho um tanto paradigmático
este exemplo. Posso estar redondamente enganado, sendo
reducionista, mas acho que se cada um –
o escritor, o guarda-noturno, o motorista de ônibus,
o professor, o médico, o advogado, o jornalista, o jornaleiro,
o lixeiro – dessem o melhor de si naquilo que fazem,
o mundo já seria um pouco melhor do que é.
Talvez conseguíssemos até ser melhor representados
no Congresso Nacional.
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