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Ruy Proença

Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido
 

 

 

 

 

 

 

 

 

Albrecht Dürer, Mãos

Uma notícia do poeta: 

  • Ruy Proença nasceu em São Paulo, a 9 de janeiro de 1957. Engenheiro de minas. Publicou, entre outros,  Pequenos Séculos, Editora Klaxon, São Paulo, 1985; A lua investirá com seus chifres, Editora Giordano, São Paulo, 1996. Participa da Anthologie de la poésie brésilienne, organização de Renata Pallottini, Éditions Chandeigne, França, 1998. Desde 1990 integra o grupo Cálamo de criação poética. 

  • Entrevista concedida a Rodrigo de Souza Leão

 


Poesia:


 

 

Crítica, ensaio e comentário:

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Fortuna crítica:

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Culpa

 

 

 

Velazquez, A forja de Vulcano

 

Tiziano, Mulher ao espelho

 

 

 

 

 

 

Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Slave market

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Da Vinci, Madona Litta_detalhe.jpg

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Antigona

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ruy Proença


 

A GALINHA




a galinha tem pavor ao mar
e mal sabe dar braçadas no ar

a galinha tem garras pontiagudas
para plantar-se no chão
e desejar-se raiz

a galinha cisca o terreiro
e a cal do muro

e mal distingue a quirera do sol
que se levantou no passado
e migra para o escuro

ciosa do ovo perfeito
pois nele guarda o futuro
estende sua teia de nervos
e estaca como um pára-raios

choca como uma árvore
dia e noite
para ver maduro seu fruto

e quando um pé-de-vento
põe a poeira em remoinho

lá está ela
comandante louca
de olhos esbugalhados
ancorados no seco da tempestade








O HOMEM-CARACOL




O homem-caracol
caminha pela parede do viaduto.

Sua casa invisível
guarda parcos pertences.

Aonde vai
arrasta a amnésia entre os badulaques.

Sonhos de alguma infância
cimentaram-se-lhe nos olhos.

Sua dignidade é o osso — 
sua casa.

As pombas o frio
no caminho

são sua gente.
Amor? Gesto cariado

dor
que pratica em público.

É um dos poucos homens públicos
que Deus perdoa.

Se não me engano
já o teremos visto

rebarbativo —  na parede de casa
num fim de tarde.







NOVA ORDEM


o ciclone
tenta arrancar pelos cabelos
a vegetação terrestre

os terroristas estão dormindo
há mais de 24 horas

bois nasceram com guelras
na Nova Caledônia

(voltará a primavera
voltarão as aves
as ovelhas perderão o pelame)

o relâmpago
estilhaça a abóbada celeste

a faca 
talha a melancia
pelo abdômen

nada
tem piedade 
de nada

(voltará a primavera
voltarão as aves
as ovelhas perderão o pelame

sim, o dia renascerá

mas já preparado
para outro envelhecimento precoce)






VARANDA


a poesia envenenou-me
já não há mais tempo


a lua investirá com seus chifres
e as cebolas no escuro despertarão
o olho do coração


da cadeira
de balanço
a Paciência contempla a penugem dourada das horas
enquanto um gato dorme
sobre sua cabeça


uma tempestade de diamantes
arremessará suas flechas
sobre o Estreito de Magalhães


exatamente assim
passará um milênio








LUGARES


há lugares na alma
tão escuros
que até os cegos
podem contar as estrelas
cadentes


contar as estrelas
e fazer muitos desejos
tantos quantos cabem na alma
de um cego


há praias na alma
tão escuras
que até os videntes
pensam que é céu


cada grão de mica encerra
uma estrela que caiu
de modo que o mundo
da alma
parece não ter pé nem cabeça



* * *



o cheiro da mexerica
não é o cheiro da morte

a casca rasgada no canto do prato
é o mapa de Guadalamaxica

o gomo atravessado nos dentes, como onda na areia,
infiltra o beijo úmido, por séculos tão esperado

chupa longamente o sumo da tangerina!
contra o gemido do prazer não há vacina

a vida toda é uma muiraquitã
o tempo em que se mordisca a carne da poncã

tudo é cegueira, nada mais se nota
quando se come a fundo a bergamota

o cheiro
não é o cheiro da morte

a chama laranja do amor
cresce por dentro da boca

depois, pode-se ler o rascunho do fogo:
cascas, bagaços, sementes e a excêntrica flor felicidade

Ruy Proença

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Albrecht Dürer, Mãos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Morte de César, detalhe

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Mignon Pensive

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), João Batista

 

 

 

 

 

 

 

 

Herbert Draper (British, 1864-1920), A water baby

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Um cronômetro para piscinas

 

 

 

 

 

 

 

 

A menina afegã, de Steve McCurry

Ruy Proença

Entrevistado por Rodrigo de Souza Leão


 

Entrevistado por Rodrigo de Souza Leão
 

 

Ruy Proença:São Paulo, SP. Nascido a 9 de janeiro de 1957. Engenheiro de minas. Autor de: Pequenos Séculos, poemas, Klaxon, São Paulo, 1985; A lua investirá com seus chifres, poemas, Giordano, São Paulo, 1996. Como um dia come o outro, Nankin, 1999.Participou das coletâneas de poesia do Grupo Cálamo: Lição de Asa, Iluminuras, São Paulo, 1993; Vila Lira Rica, dos Autores, São Paulo, 1995; Desnorte, Nankin, São Paulo, 1997. Teve poemas publicados na Anthologie de la poésie brésilienne, edição bilíngüe, organização de Renata Pallottini, Chandeigne, França, 1998; Coletânea de poesia Fui eu, organização de Eunice Arruda, Escrituras, São Paulo, 1998; Revista Continente Sul Sur, nº 9, Porto Alegre, 1998; Revista Orion, nº 1, São Paulo, 1998; Jornal RioArtes, nº 25, Rio de Janeiro, 1998; Revista Cult, nº 13, São Paulo, 1998; Revista Anto, nº 3, Portugal, 1998; Revista Inimigo Rumor, nº 4, Rio de Janeiro, 1998; Revista Poesia Sempre, nº 9, Rio de Janeiro, 1998; Jornal Correio Brasiliense, 15.03.98; Revista Ruptures, nº 13, Canadá, 1997; Jornal Versus, São Paulo, n° 17, 1977. Desde 1990 integra o grupo Cálamo de criação poética. Críticas sobre a obra do autor: Paes, José Paulo. Boletim de saúde. In: O lugar do outro – ensaios, Topbooks, Rio de Janeiro, 1999; Pacheco, Ana Paula. Revelação em negativo. In Revista Cult, nº 24, São Paulo, 1999.

 

Rodrigo Souza Leão - O título do seu segundo livro, “A lua investirá com seus chifres”, foi tirado do poema “Varanda”, onde diz: “a poesia envenenou-me / já não há mais tempo”. A poesia é a salvação ou o começo da perdição? Uma vez poeta sempre poeta? É uma corrida para dizer tudo enquanto há tempo?
Ruy Proença - Escreve-se menos por saber de antemão sobre as coisas, mais por buscar compreendê-las. A pergunta “o que você quis dizer com isso?” é uma pergunta que, no fundo, o poeta faz a si mesmo o tempo todo, sem ter a resposta na ponta da língua. Se no fazer poético houvesse o império da razão, não haveria poesia. A poesia é uma espécie de lógica às avessas. Você tocou na ambigüidade do símbolo do envenenamento: o que envenena, mata. Mas, paradoxalmente, se ? veneno for a poesia, a vítima pode estar “condenada” a voltar ao paraíso. É um ponto nevrálgico na leitura, sem dúvida. Igualmente, a idéia da finitude do tempo (“já não há mais tempo”), contraposta ao final (“exatamente assim / passará um milênio”). Isso me faz lembrar uma frase do Joyce:
“com ou sem mim, todos os dias vão ao seu fim”. Mas é preciso ir mais adiante. Associar lua com cebola, cebola com olho, olho com coração. Às vezes acontece isso: o poema detona uma reação em cadeia, algo parecido com as fissões nucleares. Outro dia li que o Roland Barthes dizia que o poema deve ser lido como uma cebola. Tem várias camadas concêntricas de significação. É preciso ir abrindo camada a camada, até chegarmos a alguma compreensão mais globalizante. A propósito do verso que deu título ao livro, e já fugindo à sua pergunta, é curioso observar o seguinte. Cheguei a ele por caminhos tortos. Minha mãe costumava dizer: é preciso segurar o touro pelos chifres, querendo dizer: é preciso enfrentar a vida de frente. Imaginei essa imagem da lua investindo com seus chifres, à semelhança de um touro. Sim, porque a poesia pode ser perigosa. Mas como todos os poetas já pensaram tudo antes de nós, não deixaram nada para descobrirmos, aos poucos eu, o Fabio Weintraub e outros amigos, fomos descobrindo várias referências a esse topos, o chifre da lua, começando por Horácio (“lua, rainha bicorne dos astros”), passando por Alvarenga Peixoto, Mallarmé, Dámaso Alonso, Garcia Lorca, Sosígenes Costa, Carlos Felipe Moisés etc.

 

Rodrigo - No poema “Lugares” o escuro é oposição a praias/estrelas/vidente. O que é a escuridão para um escritor? Como é o seu processo de criação/iluminação?

RP - Em princípio toda criação vem do escuro, assim como vem do silêncio. Se já estamos prenhes até as tampas de imagens e sons, somos obrigados a nos descondicionarmos para novamente perceber o milagre da vida. A poesia é a memória da chama de um fósforo na escuridão. O fogo se apagou, mas deixou um rastro em algum canto da memória. É a imagem deste fogo, do espanto, do deslumbramento que tivemos enquanto a chama existiu a ponto de nos queimar os dedos, que nos dá alento para viver. É portanto algo de sagrado, uma centelha divina, que nos alimenta. E precisamos disso, pois toda tecnologia inventada, todo conforto, não foram ainda capazes de nos tirar das cavernas.
No poema “Lugares” mencionado, o que me chama a atenção é esse espaço desconhecido dentro de nós, que chamo de alma, como poderia chamar de outra coisa, “o eu profundo”, por exemplo. É um espaço invisível, nem sequer podemos contar com a ajuda de um fósforo para clareá-lo. Nossa única arma então é nossa intuição, o olho voltado para dentro. E nesse espaço, talvez um cego enxergue mais que um vidente. Nele, céu e praia são geograficamente intercambiáveis, o mundo da alma não tem pé nem cabeça. A simetria do poema empresta uma forma à voz do poema, e por aí vai... Duas imagens foram os estopins deste poema: a primeira, uma amiga contando de uma praia na Bahia, Nova Viçosa, em que a noite e a praia são tão escuras, que não se consegue distinguir bem a areia reluzente do céu estrelado. A segunda, uma crônica do Nelson Rodrigues, descrevendo o fantasma da cegueira em sua vida: na infância, a imagem de um quarteto de músicos cegos tocando na calçada em frente à sua casa; na idade adulta, a constatação trágica – sua filha era cega.

 

RODRIGO - Em “Teve esta sina” o amor não está “nem na miséria e nem na opulência”. Qual o lugar que a lírica amorosa tem em seus livros?

RP - O amor é tudo na vida. Por conseqüência, também em minha poesia. Há antes de mais nada um amor cósmico, pelos seres do mundo, quer sejam eles vivos ou coisas. Falar de uma galinha é uma forma de amá-la. Que o leitor não me interne num manicômio por tão pouco!... Mas há também poemas sobre o amor stricto sensu. E há também um desassossego, um desencanto em relação ao ser humano, que não deixa de ser uma forma de amor ao contrário, isto é, como seria bom se não houvesse tanta violência, tanta mediocridade, tanta desigualdade. Alguns leitores, ainda apegados à poesia romântica ou à poesia confessional, estranham só muito raramente encontrarem o “eu” em minha poesia. Mas citando o poeta Ronald Polito, que por sua vez dialoga com João Cabral..., “não há nada mais subjetivo do que não falar de mim”. É essa minha lírica amorosa: o que está solto por aí, o que faz parte da experiência coletiva e não depende só de mim. Porque dificilmente imaginaria que uma lírica amorosa puramente autobiográfica poderia interessar a alguém mais, além de mim mesmo e de minha parceira.

 

RODRIGO - “Edifício de heróis” é um poema piada? Muita gente torcia os olhos para o humor no poema, como encara a questão?

RP - Não entendo bem porque a pergunta foi colocada no pretérito imperfeito. Posso tranqüilamente imaginar que ainda haja pessoas que torçam o nariz... Há muitos escritores que tendem a sacralizar a poesia. A sacralização ritualista da poesia pela poesia é asfixiante, não passa de uma maquiagem. O verdadeiro sagrado respira humor por todos os poros, e é bem possível que Deus agora esteja se divertindo com essa conversa. A vida é feita de contradições e o humor pode ser uma senha para compreendê-las e suportá-las. O humor é uma arma poderosíssima para enfrentar os desencantos do mundo. Digo uma arma e não a arma. O que estraga é querer transformá-lo em dogma. É apenas um caminho possível que, se bem utilizado, pode mitigar nossa dor de existir. Há diferentes formas de humor, das mais sutis às mais escrachadas, e a literatura está repleta de exemplos: lato sensu, há humor em Machado, em Mário de Andrade, em Guimarães Rosa, em Paulo Leminski e em Dora Ferreira da Silva, por paradoxal que isto possa parecer no caso de Dora. O importante, é que esse humor é sempre particular. Em Dora e Rosa aproxima-se do epifânico. Em Leminski é mais luciferino. De resto, toda grande poesia recente, de Pessoa a Drummond, é recheada de humor. Como diz Sebastião Uchoa Leite, “radicalmente sério / só o cemitério”.

 

RODRIGO - Qual tipo de ferramenta é o poema? “É preciso quebrá-lo (...) // destruí-lo / reconstruí-lo?”

RP - Octávio Paz, se não me engano, assim como Manoel de Barros, dizem que a poesia é uma arte que lida com o inútil. A poesia não tem valor de mercado. Esta talvez seja sua maior virtude. Talvez se constitua num dos raros domínios em que a ditadura do dinheiro não conta, assim como todo processo civilizatório conta muito pouco. Isso a transforma num ponto privilegiado de encontro. É quase um encontro primordial, tribal, no melhor sentido. Nesse espaço, nossos ancestrais dialogam conosco em pé de igualdade. O poema pode ser uma ferramenta, na medida em que nos transporta para outros lugares inusitados. Neste sentido, o poema “O Chevrolet”, do livro “Como um dia come o outro”, é um desdobramento desta temática. São poemas metalingüísticas, que colocam em cheque a construção do poema. O poema ao qual você se refere procura mostrar o quanto há de trabalho por trás de um poema, muito pouco ou quase nada nasce espontaneamente. Há trabalho de experiências pessoais acumuladas, leituras, escritura do poema, retrabalho. Além disso, o poema tematiza o deslocamento, o descondicionamento, para criar um ambiente propício à desautomatização de nossas idéias, comportamentos, gestos etc. Se formos pensar no tanto que há de suor na composição de um poema ou texto literário, talvez mudemos de idéia com relação a um Deus bem humorado.

 

RODRIGO - Em tempo onde a metáfora e a linguagem conotativa não são alicerces tão comuns de uma dicção poética, você utiliza estes “motores” para construir os seus poemas. Qual a importância da tradição? Quais são os poetas e escritores que admira?

RP - Desculpe-me, mas dizer que a linguagem conotativa não é um alicerce da poesia me parece um grande equívoco. A linguagem conotativa se confunde com a própria função poética, tão procurada pelos teóricos da linguagem. De resto, nenhuma linguagem é puramente conotativa, nem puramente denotativa. O que talvez você tenha razão em afirmar, é que determinados poetas são menos metafóricos. Mas são raros e é preciso relativizar esta afirmação. Mesmo em poetas como Chico Alvim, onde a metáfora imagética é menos freqüente, ainda assim se faz presente. Além disso, um poeta nunca é o mesmo ao longo da vida, e pode ser que o próprio Chico Alvim não se reconheça neste juízo. Se com sua pergunta você quis dizer que minha poética é muito imagética, concordo. E sinceramente, não sei bem porque é assim. A visão é um sentido hegemônico em nós, caso contrário ainda estaríamos farejando o chão e cheirando na rua as partes pudendas das pessoas. O que, aliás, não seria nada mal... Quanto à segunda parte da questão, sinto que muitos de nós desprezamos a tradição quando começamos a escrever, arrogando-nos soberbamente a propriedade de sermos originais. É uma bobagem! Quando nada conhecemos, quando nossa referência é o nada, nos superestimamos, porque diante do zero tudo passa a ser original... Quanto mais ficamos sabendo das coisas, quanto mais lemos, mais vamos tendo consciência do nosso tamanho reduzido. Corremos até o risco de descobrir que nosso lugar é tão pequeno, quem sabe menor que uma cabeça de alfinete, que desistamos da empreitada. Pode muito bem ocorrer este fato. Então teremos descoberto que tudo não passou de vaidade. Mas até chegar esse dia... Depois, cá pra nós, mesmo que não déssemos a mínima pela tradição, seríamos dela reféns à nossa revelia. Estou com Ana Cristina Cesar quando diz: “podemos optar pela estética da preguiça, mas nunca pela preguiça da estética”. Eleger os poetas e escritores de nossa admiração é tarefa ingrata e falaciosa. Poderemos estar mentindo para nós mesmos. Para a poesia, uma bituca de cigarro é tão importante quanto um grande amor. Um catecismo do Carlos Zéfiro, tão importante quanto um Bernardo Soares. E depois, serão três, trinta ou trezentos e cinquenta, como preferia Mário de Andrade? Nossa pretensão não tem limites: queremos no mínimo ? absoluto... Minhas leituras não diferem muito das de todos os poetas... E a vida inteira é pouca para ler o que desejamos. Espero que ao morrer me deixem passar na alfândega com todos os livros que quero ler e ainda não tive tempo. Se me limitarem a bagagem a 20 ou 30 kg, tratarei de levar o que já li: Guimarães Rosa, Pessoa, Borges, Drummond, Bandeira, Jorge de Lima, Murilo Mendes, Sosígenes, João Cabral, José J. Veiga, além, é claro, de alguns livros dos amigos. Primeiro porque gosto deles; depois, porque odiaria que falassem mal de mim na minha ausência... E ia me esquecendo: também o famoso livro “A criação das criaturas”, do professor Tacus, que não era professor, e muito menos Tacus.

 

RODRIGO - No seu terceiro livro “Como um dia come o outro” há uma radicalização da temática rumando ao absurdo. Longe de ser surrealista, como assinala Fernando Paixão na orelha do livro, qual o lugar do absurdo em sua poesia? É um projeto literário, uma escolha?

RP - É possível que os leitores vejam na minha poesia o que eu próprio não vejo. Eu jamais diria que minha poesia é uma poesia do absurdo, embora reconheça que em alguns poemas o fantástico, no que este tem de síntese entre o real e o imaginário, esteja presente. Pessoalmente, vejo meus textos deste último livro mais como uma pequena cosmogonia, ou, quem sabe, um pequeno bestiário. Nele estão presentes animais reais e animais mitológicos. O homem também faz parte desta paisagem, embora de modo menos prestigioso. Agora, não gostaria que o livro fosse reduzido a esse esquema. Cada tema abordado é usado para falar do mundo, segundo uma determinada visão. Há, assim, temas variados que se entrecruzam: a infância, o medo, o poder, a miséria, o amor... E uma questão de fundo, que é uma tentativa desesperada de reencontrar Pasárgada. A vida civil é muito opressora; ela é que é o verdadeiro absurdo.
Quanto ao projeto literário, se for pensado como um grande sistema pré-concebido, não tenho nada a ver com ele. Mal consigo ter um projeto para o dia seguinte. Outra coisa é que um livro significa uma escolha, segundo alguns critérios. Quero dizer que o que está no livro não reflete totalmente o trabalho de criação. Outras ramificações, outras experiências são exploradas paralelamente. Vistos a posteriori, uma parte dos textos engavetados não passam de simples exercícios. Mas quem sabe se entre eles não há também poemas que eventualmente sejam o início de um outro livro, adiante, de dicção bem diferente da que aflorou neste...

 

RODRIGO - Você gosta de números! Há números por todos os lados em sua obra. Gostar da matemática aproximou o engenheiro ao construtor poético?

RP - Primeiramente, gostaria de fazer uma restrição quanto ao enunciado da sua pergunta. Quando você diz que em meus livros “há números por todos os lados” você está sendo hiperbólico. Os desavisados podem pensar que se trata de manuais de matemática... Bem joeiradas as coisas, salvo 2 ou 3 poemas em que os números entram propositalmente em profusão – eu citaria “mesmo que tivesse cem bocas”, em “A lua investirá com seus chifres”, e “Balada”, em “Como um dia come o outro”, a aparição dos números é bastante comedida e pedestre. Mas afinal, os números fazem ou não parte de nosso cotidiano tanto quanto as palavras? Por que discriminá-los? Seria desprezar uma série de talentos acumulados, das civilizações antigas – fenícios, árabes, gregos etc. – até nossos dias, passando por muitos filósofos. Quando digo que os números fazem parte do dia-a-dia tanto quanto as palavras, quero dizer que não se vai a uma padaria comprar pão e leite sem que se faça uma conta. Ademais, por ironia ou não, os poetas costumam estar entre os mais viciados em números. Faz apenas cerca de um século e meio que a poesia metrificada foi contestada e, mesmo assim, continuará talvez resistindo por séculos afora. Isso vem ao encontro do que digo. Aliás, nas artes, a matemática não é privilégio da poesia: a música erudita, a pintura geométrica (um Escher, por exemplo), fazem igualmente largo uso de suas noções. Após todas essas considerações, posso responder objetivamente à sua pergunta. Embora reconheça que a matemática, assim como a filosofia, a história, a teoria literária e outras áreas do conhecimento concorram para enriquecer a construção do poema, eu diria que, para mim, num primeiro momento, escrever poesia foi uma reação vital contra o predomínio das ciências ditas exatas. Hoje em dia, vendo as coisas em retrospectiva, imagino que há duas noções da minha formação específica de engenheiro de minas – e mais particularmente ainda como engenheiro de beneficiamento de minérios –, que de alguma forma transparecem em meu trabalho. A primeira delas é a idéia de concentração, de depuração: fazer o máximo de esforço para separar o mineral útil da ganga, até obter um produto o mais concentrado possível. A segunda idéia é a noção do tempo geológico que, para nossa escala, é quase um tempo metafísico, e, por isso, se aproxima de um tempo sagrado.

 

Rodrigo - “A cerejeira / poderá // um dia // provar de suas cerejas” é um belo poema curto. Como encara a vertente que avalia por tamanho a qualidade de uma obra?

RP - Nunca ouvi falar dessa vertente. Felizmente não existe essa fita métrica mágica capaz de avaliar um poema. Isso nos obriga a estudar, pesquisar, refletir, lançar o olhar curioso sobre as coisas. Não queremos ser o balconista que vende tecidos a metro no balcão. Queremos algo maior, como desorganizar o mundo para reconstruí-lo à nossa maneira.
O bom poema é aquele que é conciso. Isso nada tem a ver com o tamanho do poema. Um poema longo como “Os lusíadas”, guardadas as devidas proporções, é um poema tão conciso quanto o “Amor / humor” de Oswald de Andrade, ou “Cronologia” de José Paulo Paes (“A.C. / D.C. / W.C.”). O que importa, é a velha máxima: dizer o máximo no mínimo. Cada qual saberá dizer até onde vai o seu talento para escrever um poema longo, sem afrouxar o verbo no meio do caminho. Além do que, muitas vezes, um poema longo é a somatória de vários poemas menores. Incluo nessa categoria “Invenção de Orfeu” de Jorge de Lima.

 

Rodrigo - Deus anda cada vez mais científico? Em que ciência Ele existe?

RP - Não me julgo com autoridade suficiente para avaliar a existência de Deus. Se existe, o abandonamos pelo caminho. Principalmente aquele patriarcal, onipotente. Em nossa ânsia de dominar e domar a natureza, fizemos Deus sair de cena. Na história da filosofia podemos acompanhar o seu declínio. Hoje vivemos um mundo feito de fragmentos. Deus faz muita falta ao poeta. O poeta é um ser atemporal. Está mais bem representado pelos alquimistas do que pelos cientistas contemporâneos. Mas somos tão bons em ciência, que freqüentemente nos espantamos com nossas criações. Em certo sentido, nos tornamos superiores aos deuses, e hoje em dia eles se sentam em bancos escolares para aprender conosco. Mas nada seríamos se não houvesse uma centelha divina em cada um de nós. E, se em matéria de tecnologia fomos tão longe, em outros assuntos somos um zero à esquerda. É por isso que, como já disse, se corrigirmos nosso acentuado grau de miopia, veremos que ainda vivemos numa caverna escura.

 

RODRIGO - Como é pertencer ao grupo de estudos “Cálamo”?

RP - O objetivo primeiro do Cálamo é ser um grupo de criação. Todo o mais – pesquisa, estudo, divulgação – são conseqüência. Trata-se de um trabalho de criação individual sob estímulos que são partilhados. Neste sentido, até onde sei, o Cálamo é uma experiência inédita. Sabemos de grupos de pintores, como os do grupo Santa Helena, que saíam a campo com seus cavaletes para pintarem sob um mesmo estímulo. Outros domínios artísticos dão abertura para o trabalho conjunto, como o teatro, o cinema, a música. Já com a criação literária, isso é muito difícil de ocorrer. Temos a experiência de Murilo Mendes com Jorge de Lima em “Tempo e eternidade”, mas é um caso isolado. Os escritores são em geral ciosos de sua privatividade, de sua intimidade. Na verdade, compensam o ato da criação isolada – a solidão voluntária – comunicando-se com alguns de seus pares. O escritor que não troca experiências, provavelmente estará perdendo, mais do que ganhando, em termos de vivência. O trabalho realizado no grupo, pode não resultar em nada mais do que um esboço ou pode, até, resultar num bom poema. É importante frisar que o trabalho em grupo em hipótese alguma exime os escritores de seu trabalho individual. As duas coisas se potenciam e, no frigir dos ovos, acredito que o resultado é um enriquecimento dos trabalhos pessoais. Estamos juntos há praticamente 10 anos. Há pessoas no grupo que já publicaram mais de um livro, como é o meu caso e o do Fabio Weintraub, outras publicaram o primeiro, como o Cesar Garcia Lima e o Luiz Gonzaga Neto, e outras estão prontas para estrear. Sem o trabalho em grupo, talvez não tivéssemos chegado nem na metade do caminho de onde estamos.

 

Rodrigo - Como encarou a matéria da revista Veja que ridicularizou e ironizou poetas?

RP - É um pouco sintomático ver um jornalista como o Carlos Graieb, que já fez boas críticas de poesia no tempo em que trabalhava para o Estadão, entre elas da Hilda Hilst e do próprio Carlito Azevedo, que aparece na reportagem, baixar tanto o nível. Infelizmente algumas corporações hoje em dia fazem questão de quebrar a espinha de seus servidores, para não dizer servos. Quero acreditar que o próprio Carlos Graieb não acredita no que escreveu. O termômetro de uma revista como essa, que, do jeito que está, está mais para “Ratinho no lixão”, é mercadológico. O que estou dizendo não justifica a postura do jornalista e não o exime de sua responsabilidade. Mas vamos ao que interessa: nossa melhor resposta para esse tipo de imprensa é nossa poesia.

 

RODRIGO - Você tem alguma epígrafe que o acompanhe?

RP - Não, não tenho. Mas como gosto muito do Aníbal Machado, aproveito para citar uma epígrafe que uso na abertura do livro “A lua investirá com seus chifres”: “Dizei-me se ando longe da guitarra onde nasci.” É um pouco uma profissão de fé.

 

RODRIGO - Qual o papel do escritor na sociedade?

RP - O Drummond, que viveu numa época em que grandes utopias ainda eram plausíveis, a uma certa altura de sua vida, na virada dos anos 50, percebeu que, como escritor, jamais conseguiria influir na máquina do mundo como gostaria. Perto dos políticos profissionais, sentia-se como uma criança desamparada. Tratou de limitar-se àquilo que sabia fazer, dando o melhor de si. Acho um tanto paradigmático este exemplo. Posso estar redondamente enganado, sendo reducionista, mas acho que se cada um – o escritor, o guarda-noturno, o motorista de ônibus, o professor, o médico, o advogado, o jornalista, o jornaleiro, o lixeiro – dessem o melhor de si naquilo que fazem, o mundo já seria um pouco melhor do que é. Talvez conseguíssemos até ser melhor representados no Congresso Nacional.

 

Ruy Proença

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Ruy Proença


Fui eu

 

um quadro de Valdir Rocha

 


Leitura de Ruy Proença

Queremos saber quem foi    
não!, de novo em guerra  
a Criméia?  

despida sob o lençol  
ela suspira: não fui eu  

enquanto tomava um cafezinho na rua  
anos mais tarde  

abril de 1998: 53 homicídios na cidade  
num único fim de semana  

o vizinho de banco acaba de pensar em voz alta:  
devo ter sido eu (um helicóptero passou)  

perdeu-se o hábito de caminhar pelas alamedas  
procurando só claridade formigas e o crespo dos muros  

agora, sempre, ainda, vai-e-vem  
a indesejada Culpa nos surpreende em nosso esconderijo  

alguém (filósofo?) berra de uma janela perdida entre prédios:  
não fui eu nem ninguém!

 

Veja outras leituras do mesmo quadro 

Ruy Proença