Ruy Proença
Entrevistado
por Rodrigo de Souza Leão
Ruy
Proença:São Paulo, SP. Nascido a 9 de janeiro de 1957. Engenheiro
de minas. Autor de: Pequenos Séculos, poemas, Klaxon, São Paulo,
1985; A lua investirá com seus chifres, poemas, Giordano, São
Paulo, 1996. Como um dia come o outro, Nankin, 1999.Participou das
coletâneas de poesia do Grupo Cálamo: Lição de Asa, Iluminuras,
São Paulo, 1993; Vila Lira Rica, dos Autores, São Paulo, 1995;
Desnorte, Nankin, São Paulo, 1997. Teve poemas publicados na
Anthologie de la poésie brésilienne, edição bilíngüe, organização
de Renata Pallottini, Chandeigne, França, 1998; Coletânea de
poesia Fui eu, organização de Eunice Arruda, Escrituras, São
Paulo, 1998; Revista Continente Sul Sur, nº 9, Porto Alegre, 1998;
Revista Orion, nº 1, São Paulo, 1998; Jornal RioArtes, nº 25, Rio
de Janeiro, 1998; Revista Cult, nº 13, São Paulo, 1998; Revista
Anto, nº 3, Portugal, 1998; Revista Inimigo Rumor, nº 4, Rio de
Janeiro, 1998; Revista Poesia Sempre, nº 9, Rio de Janeiro, 1998;
Jornal Correio Brasiliense, 15.03.98; Revista Ruptures, nº 13,
Canadá, 1997; Jornal Versus, São Paulo, n° 17, 1977. Desde 1990
integra o grupo Cálamo de criação poética. Críticas sobre a
obra do autor: Paes, José Paulo. Boletim de saúde. In: O lugar do
outro – ensaios, Topbooks, Rio de Janeiro, 1999; Pacheco, Ana
Paula. Revelação em negativo. In Revista Cult, nº 24, São Paulo,
1999.
Rodrigo
Souza Leão - O título do seu segundo livro, “A lua investirá
com seus chifres”, foi tirado do poema “Varanda”, onde diz:
“a poesia envenenou-me / já não há mais tempo”. A poesia é a
salvação ou o começo da perdição? Uma vez poeta sempre poeta?
É uma corrida para dizer tudo enquanto há tempo?
Ruy Proença - Escreve-se menos por saber de antemão sobre as
coisas, mais por buscar compreendê-las. A pergunta “o que você
quis dizer com isso?” é uma pergunta que, no fundo, o poeta faz a
si mesmo o tempo todo, sem ter a resposta na ponta da língua. Se no
fazer poético houvesse o império da razão, não haveria poesia. A
poesia é uma espécie de lógica às avessas. Você tocou na ambigüidade
do símbolo do envenenamento: o que envenena, mata. Mas,
paradoxalmente, se ? veneno for a poesia, a vítima pode estar
“condenada” a voltar ao paraíso. É um ponto nevrálgico na
leitura, sem dúvida. Igualmente, a idéia da finitude do tempo
(“já não há mais tempo”), contraposta ao final (“exatamente
assim / passará um milênio”). Isso me faz lembrar uma frase do
Joyce:
“com ou sem mim, todos os dias vão ao seu fim”. Mas é preciso
ir mais adiante. Associar lua com cebola, cebola com olho, olho com
coração. Às vezes acontece isso: o poema detona uma reação em
cadeia, algo parecido com as fissões nucleares. Outro dia li que o
Roland Barthes dizia que o poema deve ser lido como uma cebola. Tem
várias camadas concêntricas de significação. É preciso ir
abrindo camada a camada, até chegarmos a alguma compreensão mais
globalizante. A propósito do verso que deu título ao livro, e já
fugindo à sua pergunta, é curioso observar o seguinte. Cheguei a
ele por caminhos tortos. Minha mãe costumava dizer: é preciso
segurar o touro pelos chifres, querendo dizer: é preciso enfrentar
a vida de frente. Imaginei essa imagem da lua investindo com seus
chifres, à semelhança de um touro. Sim, porque a poesia pode ser
perigosa. Mas como todos os poetas já pensaram tudo antes de nós,
não deixaram nada para descobrirmos, aos poucos eu, o Fabio
Weintraub e outros amigos, fomos descobrindo várias referências a
esse topos, o chifre da lua, começando por Horácio (“lua, rainha
bicorne dos astros”), passando por Alvarenga Peixoto, Mallarmé, Dámaso
Alonso, Garcia Lorca, Sosígenes Costa, Carlos Felipe Moisés etc.
Rodrigo
- No poema “Lugares” o escuro é oposição a
praias/estrelas/vidente. O que é a escuridão para um escritor?
Como é o seu processo de criação/iluminação?
RP
- Em princípio toda criação vem do escuro, assim como vem do silêncio.
Se já estamos prenhes até as tampas de imagens e sons, somos
obrigados a nos descondicionarmos para novamente perceber o milagre
da vida. A poesia é a memória da chama de um fósforo na escuridão.
O fogo se apagou, mas deixou um rastro em algum canto da memória.
É a imagem deste fogo, do espanto, do deslumbramento que tivemos
enquanto a chama existiu a ponto de nos queimar os dedos, que nos dá
alento para viver. É portanto algo de sagrado, uma centelha divina,
que nos alimenta. E precisamos disso, pois toda tecnologia
inventada, todo conforto, não foram ainda capazes de nos tirar das
cavernas.
No poema “Lugares” mencionado, o que me chama a atenção é
esse espaço desconhecido dentro de nós, que chamo de alma, como
poderia chamar de outra coisa, “o eu profundo”, por exemplo. É
um espaço invisível, nem sequer podemos contar com a ajuda de um fósforo
para clareá-lo. Nossa única arma então é nossa intuição, o
olho voltado para dentro. E nesse espaço, talvez um cego enxergue
mais que um vidente. Nele, céu e praia são geograficamente
intercambiáveis, o mundo da alma não tem pé nem cabeça. A
simetria do poema empresta uma forma à voz do poema, e por aí
vai... Duas imagens foram os estopins deste poema: a primeira, uma
amiga contando de uma praia na Bahia, Nova Viçosa, em que a noite e
a praia são tão escuras, que não se consegue distinguir bem a
areia reluzente do céu estrelado. A segunda, uma crônica do Nelson
Rodrigues, descrevendo o fantasma da cegueira em sua vida: na infância,
a imagem de um quarteto de músicos cegos tocando na calçada em
frente à sua casa; na idade adulta, a constatação trágica –
sua filha era cega.
RODRIGO
- Em “Teve esta sina” o amor não está “nem na miséria e nem
na opulência”. Qual o lugar que a lírica amorosa tem em seus
livros?
RP
- O amor é tudo na vida. Por conseqüência, também em minha
poesia. Há antes de mais nada um amor cósmico, pelos seres do
mundo, quer sejam eles vivos ou coisas. Falar de uma galinha é uma
forma de amá-la. Que o leitor não me interne num manicômio por tão
pouco!... Mas há também poemas sobre o amor stricto sensu. E há
também um desassossego, um desencanto em relação ao ser humano,
que não deixa de ser uma forma de amor ao contrário, isto é, como
seria bom se não houvesse tanta violência, tanta mediocridade,
tanta desigualdade. Alguns leitores, ainda apegados à poesia romântica
ou à poesia confessional, estranham só muito raramente encontrarem
o “eu” em minha poesia. Mas citando o poeta Ronald Polito, que
por sua vez dialoga com João Cabral..., “não há nada mais
subjetivo do que não falar de mim”. É essa minha lírica
amorosa: o que está solto por aí, o que faz parte da experiência
coletiva e não depende só de mim. Porque dificilmente imaginaria
que uma lírica amorosa puramente autobiográfica poderia interessar
a alguém mais, além de mim mesmo e de minha parceira.
RODRIGO
- “Edifício de heróis” é um poema piada? Muita gente torcia
os olhos para o humor no poema, como encara a questão?
RP
- Não entendo bem porque a pergunta foi colocada no pretérito
imperfeito. Posso tranqüilamente imaginar que ainda haja pessoas
que torçam o nariz... Há muitos escritores que tendem a sacralizar
a poesia. A sacralização ritualista da poesia pela poesia é
asfixiante, não passa de uma maquiagem. O verdadeiro sagrado
respira humor por todos os poros, e é bem possível que Deus agora
esteja se divertindo com essa conversa. A vida é feita de contradições
e o humor pode ser uma senha para compreendê-las e suportá-las. O
humor é uma arma poderosíssima para enfrentar os desencantos do
mundo. Digo uma arma e não a arma. O que estraga é querer
transformá-lo em dogma. É apenas um caminho possível que, se bem
utilizado, pode mitigar nossa dor de existir. Há diferentes formas
de humor, das mais sutis às mais escrachadas, e a literatura está
repleta de exemplos: lato sensu, há humor em Machado, em Mário de
Andrade, em Guimarães Rosa, em Paulo Leminski e em Dora Ferreira da
Silva, por paradoxal que isto possa parecer no caso de Dora. O
importante, é que esse humor é sempre particular. Em Dora e Rosa
aproxima-se do epifânico. Em Leminski é mais luciferino. De resto,
toda grande poesia recente, de Pessoa a Drummond, é recheada de
humor. Como diz Sebastião Uchoa Leite, “radicalmente sério / só
o cemitério”.
RODRIGO
- Qual tipo de ferramenta é o poema? “É preciso quebrá-lo (...)
// destruí-lo / reconstruí-lo?”
RP
- Octávio Paz, se não me engano, assim como Manoel de Barros,
dizem que a poesia é uma arte que lida com o inútil. A poesia não
tem valor de mercado. Esta talvez seja sua maior virtude. Talvez se
constitua num dos raros domínios em que a ditadura do dinheiro não
conta, assim como todo processo civilizatório conta muito pouco.
Isso a transforma num ponto privilegiado de encontro. É quase um
encontro primordial, tribal, no melhor sentido. Nesse espaço,
nossos ancestrais dialogam conosco em pé de igualdade. O poema pode
ser uma ferramenta, na medida em que nos transporta para outros
lugares inusitados. Neste sentido, o poema “O Chevrolet”, do
livro “Como um dia come o outro”, é um desdobramento desta temática.
São poemas metalingüísticas, que colocam em cheque a construção
do poema. O poema ao qual você se refere procura mostrar o quanto há
de trabalho por trás de um poema, muito pouco ou quase nada nasce
espontaneamente. Há trabalho de experiências pessoais acumuladas,
leituras, escritura do poema, retrabalho. Além disso, o poema
tematiza o deslocamento, o descondicionamento, para criar um
ambiente propício à desautomatização de nossas idéias,
comportamentos, gestos etc. Se formos pensar no tanto que há de
suor na composição de um poema ou texto literário, talvez mudemos
de idéia com relação a um Deus bem humorado.
RODRIGO
- Em tempo onde a metáfora e a linguagem conotativa não são
alicerces tão comuns de uma dicção poética, você utiliza estes
“motores” para construir os seus poemas. Qual a importância da
tradição? Quais são os poetas e escritores que admira?
RP
- Desculpe-me, mas dizer que a linguagem conotativa não é um
alicerce da poesia me parece um grande equívoco. A linguagem
conotativa se confunde com a própria função poética, tão
procurada pelos teóricos da linguagem. De resto, nenhuma linguagem
é puramente conotativa, nem puramente denotativa. O que talvez você
tenha razão em afirmar, é que determinados poetas são menos metafóricos.
Mas são raros e é preciso relativizar esta afirmação. Mesmo em
poetas como Chico Alvim, onde a metáfora imagética é menos freqüente,
ainda assim se faz presente. Além disso, um poeta nunca é o mesmo
ao longo da vida, e pode ser que o próprio Chico Alvim não se
reconheça neste juízo. Se com sua pergunta você quis dizer que
minha poética é muito imagética, concordo. E sinceramente, não
sei bem porque é assim. A visão é um sentido hegemônico em nós,
caso contrário ainda estaríamos farejando o chão e cheirando na
rua as partes pudendas das pessoas. O que, aliás, não seria nada
mal... Quanto à segunda parte da questão, sinto que muitos de nós
desprezamos a tradição quando começamos a escrever, arrogando-nos
soberbamente a propriedade de sermos originais. É uma bobagem!
Quando nada conhecemos, quando nossa referência é o nada, nos
superestimamos, porque diante do zero tudo passa a ser original...
Quanto mais ficamos sabendo das coisas, quanto mais lemos, mais
vamos tendo consciência do nosso tamanho reduzido. Corremos até o
risco de descobrir que nosso lugar é tão pequeno, quem sabe menor
que uma cabeça de alfinete, que desistamos da empreitada. Pode
muito bem ocorrer este fato. Então teremos descoberto que tudo não
passou de vaidade. Mas até chegar esse dia... Depois, cá pra nós,
mesmo que não déssemos a mínima pela tradição, seríamos dela
reféns à nossa revelia. Estou com Ana Cristina Cesar quando diz:
“podemos optar pela estética da preguiça, mas nunca pela preguiça
da estética”. Eleger os poetas e escritores de nossa admiração
é tarefa ingrata e falaciosa. Poderemos estar mentindo para nós
mesmos. Para a poesia, uma bituca de cigarro é tão importante
quanto um grande amor. Um catecismo do Carlos Zéfiro, tão
importante quanto um Bernardo Soares. E depois, serão três, trinta
ou trezentos e cinquenta, como preferia Mário de Andrade? Nossa
pretensão não tem limites: queremos no mínimo ? absoluto...
Minhas leituras não diferem muito das de todos os poetas... E a
vida inteira é pouca para ler o que desejamos. Espero que ao morrer
me deixem passar na alfândega com todos os livros que quero ler e
ainda não tive tempo. Se me limitarem a bagagem a 20 ou 30 kg,
tratarei de levar o que já li: Guimarães Rosa, Pessoa, Borges,
Drummond, Bandeira, Jorge de Lima, Murilo Mendes, Sosígenes, João
Cabral, José J. Veiga, além, é claro, de alguns livros dos
amigos. Primeiro porque gosto deles; depois, porque odiaria que
falassem mal de mim na minha ausência... E ia me esquecendo: também
o famoso livro “A criação das criaturas”, do professor Tacus,
que não era professor, e muito menos Tacus.
RODRIGO
- No seu terceiro livro “Como um dia come o outro” há uma
radicalização da temática rumando ao absurdo. Longe de ser
surrealista, como assinala Fernando Paixão na orelha do livro, qual
o lugar do absurdo em sua poesia? É um projeto literário, uma
escolha?
RP
- É possível que os leitores vejam na minha poesia o que eu próprio
não vejo. Eu jamais diria que minha poesia é uma poesia do
absurdo, embora reconheça que em alguns poemas o fantástico, no
que este tem de síntese entre o real e o imaginário, esteja
presente. Pessoalmente, vejo meus textos deste último livro mais
como uma pequena cosmogonia, ou, quem sabe, um pequeno bestiário.
Nele estão presentes animais reais e animais mitológicos. O homem
também faz parte desta paisagem, embora de modo menos prestigioso.
Agora, não gostaria que o livro fosse reduzido a esse esquema. Cada
tema abordado é usado para falar do mundo, segundo uma determinada
visão. Há, assim, temas variados que se entrecruzam: a infância,
o medo, o poder, a miséria, o amor... E uma questão de fundo, que
é uma tentativa desesperada de reencontrar Pasárgada. A vida civil
é muito opressora; ela é que é o verdadeiro absurdo.
Quanto ao projeto literário, se for pensado como um grande sistema
pré-concebido, não tenho nada a ver com ele. Mal consigo ter um
projeto para o dia seguinte. Outra coisa é que um livro significa
uma escolha, segundo alguns critérios. Quero dizer que o que está
no livro não reflete totalmente o trabalho de criação. Outras
ramificações, outras experiências são exploradas paralelamente.
Vistos a posteriori, uma parte dos textos engavetados não passam de
simples exercícios. Mas quem sabe se entre eles não há também
poemas que eventualmente sejam o início de um outro livro, adiante,
de dicção bem diferente da que aflorou neste...
RODRIGO
- Você gosta de números! Há números por todos os lados em sua
obra. Gostar da matemática aproximou o engenheiro ao construtor poético?
RP
- Primeiramente, gostaria de fazer uma restrição quanto ao
enunciado da sua pergunta. Quando você diz que em meus livros “há
números por todos os lados” você está sendo hiperbólico. Os
desavisados podem pensar que se trata de manuais de matemática...
Bem joeiradas as coisas, salvo 2 ou 3 poemas em que os números
entram propositalmente em profusão – eu citaria “mesmo que
tivesse cem bocas”, em “A lua investirá com seus chifres”, e
“Balada”, em “Como um dia come o outro”, a aparição dos números
é bastante comedida e pedestre. Mas afinal, os números fazem ou não
parte de nosso cotidiano tanto quanto as palavras? Por que discriminá-los?
Seria desprezar uma série de talentos acumulados, das civilizações
antigas – fenícios, árabes, gregos etc. – até nossos dias,
passando por muitos filósofos. Quando digo que os números fazem
parte do dia-a-dia tanto quanto as palavras, quero dizer que não se
vai a uma padaria comprar pão e leite sem que se faça uma conta.
Ademais, por ironia ou não, os poetas costumam estar entre os mais
viciados em números. Faz apenas cerca de um século e meio que a
poesia metrificada foi contestada e, mesmo assim, continuará talvez
resistindo por séculos afora. Isso vem ao encontro do que digo. Aliás,
nas artes, a matemática não é privilégio da poesia: a música
erudita, a pintura geométrica (um Escher, por exemplo), fazem
igualmente largo uso de suas noções. Após todas essas considerações,
posso responder objetivamente à sua pergunta. Embora reconheça que
a matemática, assim como a filosofia, a história, a teoria literária
e outras áreas do conhecimento concorram para enriquecer a construção
do poema, eu diria que, para mim, num primeiro momento, escrever
poesia foi uma reação vital contra o predomínio das ciências
ditas exatas. Hoje em dia, vendo as coisas em retrospectiva, imagino
que há duas noções da minha formação específica de engenheiro
de minas – e mais particularmente ainda como engenheiro de
beneficiamento de minérios –, que de alguma forma transparecem em
meu trabalho. A primeira delas é a idéia de concentração, de
depuração: fazer o máximo de esforço para separar o mineral útil
da ganga, até obter um produto o mais concentrado possível. A
segunda idéia é a noção do tempo geológico que, para nossa
escala, é quase um tempo metafísico, e, por isso, se aproxima de
um tempo sagrado.
Rodrigo
- “A cerejeira / poderá // um dia // provar de suas cerejas” é
um belo poema curto. Como encara a vertente que avalia por tamanho a
qualidade de uma obra?
RP
- Nunca ouvi falar dessa vertente. Felizmente não existe essa fita
métrica mágica capaz de avaliar um poema. Isso nos obriga a
estudar, pesquisar, refletir, lançar o olhar curioso sobre as
coisas. Não queremos ser o balconista que vende tecidos a metro no
balcão. Queremos algo maior, como desorganizar o mundo para
reconstruí-lo à nossa maneira.
O bom poema é aquele que é conciso. Isso nada tem a ver com o
tamanho do poema. Um poema longo como “Os lusíadas”, guardadas
as devidas proporções, é um poema tão conciso quanto o “Amor /
humor” de Oswald de Andrade, ou “Cronologia” de José Paulo
Paes (“A.C. / D.C. / W.C.”). O que importa, é a velha máxima:
dizer o máximo no mínimo. Cada qual saberá dizer até onde vai o
seu talento para escrever um poema longo, sem afrouxar o verbo no
meio do caminho. Além do que, muitas vezes, um poema longo é a
somatória de vários poemas menores. Incluo nessa categoria
“Invenção de Orfeu” de Jorge de Lima.
Rodrigo
- Deus anda cada vez mais científico? Em que ciência Ele existe?
RP
- Não me julgo com autoridade suficiente para avaliar a existência
de Deus. Se existe, o abandonamos pelo caminho. Principalmente
aquele patriarcal, onipotente. Em nossa ânsia de dominar e domar a
natureza, fizemos Deus sair de cena. Na história da filosofia
podemos acompanhar o seu declínio. Hoje vivemos um mundo feito de
fragmentos. Deus faz muita falta ao poeta. O poeta é um ser
atemporal. Está mais bem representado pelos alquimistas do que
pelos cientistas contemporâneos. Mas somos tão bons em ciência,
que freqüentemente nos espantamos com nossas criações. Em certo
sentido, nos tornamos superiores aos deuses, e hoje em dia eles se
sentam em bancos escolares para aprender conosco. Mas nada seríamos
se não houvesse uma centelha divina em cada um de nós. E, se em
matéria de tecnologia fomos tão longe, em outros assuntos somos um
zero à esquerda. É por isso que, como já disse, se corrigirmos
nosso acentuado grau de miopia, veremos que ainda vivemos numa
caverna escura.
RODRIGO
- Como é pertencer ao grupo de estudos “Cálamo”?
RP
- O objetivo primeiro do Cálamo é ser um grupo de criação. Todo
o mais – pesquisa, estudo, divulgação – são conseqüência.
Trata-se de um trabalho de criação individual sob estímulos que são
partilhados. Neste sentido, até onde sei, o Cálamo é uma experiência
inédita. Sabemos de grupos de pintores, como os do grupo Santa
Helena, que saíam a campo com seus cavaletes para pintarem sob um
mesmo estímulo. Outros domínios artísticos dão abertura para o
trabalho conjunto, como o teatro, o cinema, a música. Já com a
criação literária, isso é muito difícil de ocorrer. Temos a
experiência de Murilo Mendes com Jorge de Lima em “Tempo e
eternidade”, mas é um caso isolado. Os escritores são em geral
ciosos de sua privatividade, de sua intimidade. Na verdade,
compensam o ato da criação isolada – a solidão voluntária –
comunicando-se com alguns de seus pares. O escritor que não troca
experiências, provavelmente estará perdendo, mais do que ganhando,
em termos de vivência. O trabalho realizado no grupo, pode não
resultar em nada mais do que um esboço ou pode, até, resultar num
bom poema. É importante frisar que o trabalho em grupo em hipótese
alguma exime os escritores de seu trabalho individual. As duas
coisas se potenciam e, no frigir dos ovos, acredito que o resultado
é um enriquecimento dos trabalhos pessoais. Estamos juntos há
praticamente 10 anos. Há pessoas no grupo que já publicaram mais
de um livro, como é o meu caso e o do Fabio Weintraub, outras
publicaram o primeiro, como o Cesar Garcia Lima e o Luiz Gonzaga
Neto, e outras estão prontas para estrear. Sem o trabalho em grupo,
talvez não tivéssemos chegado nem na metade do caminho de onde
estamos.
Rodrigo
- Como encarou a matéria da revista Veja que ridicularizou e
ironizou poetas?
RP
- É um pouco sintomático ver um jornalista como o Carlos Graieb,
que já fez boas críticas de poesia no tempo em que trabalhava para
o Estadão, entre elas da Hilda Hilst e do próprio Carlito Azevedo,
que aparece na reportagem, baixar tanto o nível. Infelizmente
algumas corporações hoje em dia fazem questão de quebrar a
espinha de seus servidores, para não dizer servos. Quero acreditar
que o próprio Carlos Graieb não acredita no que escreveu. O termômetro
de uma revista como essa, que, do jeito que está, está mais para
“Ratinho no lixão”, é mercadológico. O que estou dizendo não
justifica a postura do jornalista e não o exime de sua
responsabilidade. Mas vamos ao que interessa: nossa melhor resposta
para esse tipo de imprensa é nossa poesia.
RODRIGO
- Você tem alguma epígrafe que o acompanhe?
RP
- Não, não tenho. Mas como gosto muito do Aníbal Machado,
aproveito para citar uma epígrafe que uso na abertura do livro “A
lua investirá com seus chifres”: “Dizei-me se ando longe da
guitarra onde nasci.” É um pouco uma profissão de fé.
RODRIGO
- Qual o papel do escritor na sociedade?
RP
- O Drummond, que viveu numa época em que grandes utopias ainda
eram plausíveis, a uma certa altura de sua vida, na virada dos anos
50, percebeu que, como escritor, jamais conseguiria influir na máquina
do mundo como gostaria. Perto dos políticos profissionais,
sentia-se como uma criança desamparada. Tratou de limitar-se àquilo
que sabia fazer, dando o melhor de si. Acho um tanto paradigmático
este exemplo. Posso estar redondamente enganado, sendo reducionista,
mas acho que se cada um – o escritor, o guarda-noturno, o
motorista de ônibus, o professor, o médico, o advogado, o
jornalista, o jornaleiro, o lixeiro – dessem o melhor de si
naquilo que fazem, o mundo já seria um pouco melhor do que é.
Talvez conseguíssemos até ser melhor representados no Congresso
Nacional.
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