Ruy Câmara
Paraty é uma festa
(in Jornal OPOVO, 17/07/2004)
Burros e tropeiros
Aspirante a tornar-se Patrimônio
Mundial da Unesco, Paraty viu-se contingenciada a decretar o fim dos
burros e tropeiros e agora vive um novo ciclo em sua história. Quem
participou da Festa Literária Internacional leu dezenas de panfletos
contando que, nos séculos 18 e 19, a vila foi o caminho dos grandes
saques de ouro das Minas Gerais, tornou-se a maior produtora de
cachaça do país e acumulou divisas com a exportação de café. No fim
do século 19, com o advento da ferrovia em substituição aos burros e
aos tropeiros, Paraty parou para ver a mão destruidora do tempo
demolir suas casas coloniais, testemunhou a areia soterrar seu
calçamento pé-de-moleque, deixou que o abandono preservasse suas
ilhas e praias paradisíacas, e só calhou de despertar um século
depois, com o turismo náutico, e agora com o triunfo do turismo
cultural, que vem crescendo exemplarmente a cada dia.
Gafe proposital
Beber uma boa substância etílica é um
modo peculiar de comprazimento do espírito e ler bem é estar diante
de um espelho que se estilhaça em milpartes para refletir a luz em
todos os sentidos. Mas no ofício literário a ironia só deve ser
utilizada por quem se vê numa situação temerária e não deseja dizer
explicitamente o que pensa. Por essa razão, sempre que posso, evito
os questionários de críticas e sugestões. Ali sentado, em meio a
tantos best sellers, ouvindo um escrevinhador do mercado fonográfico
falar de um tema vazio de conteúdo e sentido, "O romance dentro do
romance", saí da tenda dos autores e fui à livraria tomar conhaque
com café. Após haver assinado um exemplar de "Cantos de outono" em
obséquio a uma jornalista gaúcha, ousei sugerir a uma das vendedoras
da livraria que nos fizesse o favor de retirar o entulho literário
que um bruto ia pondo sobre as obras de Câmara Cascudo e Guimarães
Rosa. Guimarães Rosa, nascido em Cordisburgo, Minas Gerais
(1908-1967), vem sendo considerado como o mais importante escritor
da Literatura Brasileira do século 20. Com "Grande sertão: Veredas",
seu único romance, Rosa renovou a ficção nacional inventando mundos
e palavras do sertão do Brasil, mas nenhum crítico ousa dizer que
sua fonte inesgotável é precisamente a obra do erudito e genial
Câmara Cascudo.
Julia Mann
Numa manhã nublada fui ao cais e lá
encontrei minha agente literária, Mónica Herrero, que acabara de
chegar de Barcelona com Jorge Herrero, seu marido, e com o escritor
argentino Pablo de Santis, autor do romance "O calígrafo de
Voltaire". Após os festejos do inesperado encontro, alugamos uma
embarcação e fomos até a outra margem da Baia de Paraty para
conhecer in loco o casarão onde nasceu Julia Mann, mãe dos
escritores Heinrich e Thomas Mann. Ao chegarmos à casa de Julia,
hoje refúgio do navegador solitário Amyr Klink, cometi o erro de
dizer que havia retirado da minha biblioteca todas as obras de
Thomas Mann. Dom Pablo de Santis estranhou e fato e, de certo modo,
me forçou a narrar um dos mais desprezíveis descometimentos que
envolveu o mais ilustre membro da família Mann. Claro que não tive o
propósito de quebrar o entusiasmo dos meus convidados quando
insinuei que Julia Mann tinha sido uma mulher de caráter invejável e
bem mais firme do que seu filho Thomas Mann, que após a premiação do
Nobel teve um laivo de desvairada pederastia e ousou desprezar a sua
origem brasileira dizendo: "O Rio de Janeiro, terra de minha mãe,
certamente é maravilhoso, mas eu não preciso tê-lo visto."
Uma festa à parte
Andávamos naquelas ruas pedregosas
quando esbarramos com o ministro Ciro Gomes e Patrícia Pillar. Após
os cumprimentos e uma rápida troca de idéias sobre a sucessão
municipal em Fortaleza, eles se foram em direção à tenda dos autores
e nós fomos, debaixo de chuva, ao Empório da Cachaça, prestigiar o
lançamento de um livro primorosamente bem escrito, intitulado
"Cachaça, prazer brasileiro", de autoria do primo Marcelo Câmara, um
pingófilo (apreciador da boa pinga) e cachaçólogo (estudioso da
cachaça). Tomamos os primeiros tragos e eis que o autor da noite
recebe a notícia oficial do secretário de Cultura, José Pital, dando
conta de que a Casa da Cultura de Paraty terá o nome do seu extinto
pai, o jornalista e advogado potiguar José Augusto da Câmara Torres,
que radicou-se no Rio e tornou-se ferrenho defensor das comunidades
primitivas de Angra dos Reis e Paraty.
Flip-se
Quando Liz Calder, da editora inglesa
Bloomsbury, responsável pela escalada de Harry Potter, da escritora
J.K. Rowling, agradeceu aos autores, convidados e ao público, com um
solene "Flip-se", logo pensei no que pode produzir de concreto uma
idéia genial. Depois dos ciclos do ouro, da cana-de-açúcar e do
café, uma nova economia desperta Paraty: a tão negligenciada
economia da cultura. Uma idéia tão simples, como unir a literatura
com as demais artes, com a boa culinária e com a diversidade de
lazer e entretenimento local, pode fazer de uma pacata vila no Ceará
um point desenvolvimentista e uma referência internacional. Basta
compatibilizar o orçamento do Estado com a necessidade de
investimentos em Cultura e rapidamente estaremos no caminho do
desenvolvimento. O que nos impede de realizar uma Festa Literária em
Canoa Quebrada e Aracati? Além da rima pobre, há algo em comum entre
Paraty e Aracati. Ambas são cidades históricas e litorâneas,
cortadas por rios, com populações em torno de 50 a 60 mil
habitantes, lugares conhecidos mundialmente como redutos festivos,
que atraem divisas e pessoas de diversas nacionalidades e culturas.
A grande diferença é a sonegação dos investimentos públicos para o
desenvolvimento pacífico e sustentável do nosso Estado. Mas como os
nossos gestores pararam no tempo em que o desenvolvimento dependia
dos burros e tropeiros, resta-nos insinuar que a incompreensão
cultural somatiza o atraso social, as decepções coletivas e derrotas
políticas. Tanto é verdade que, nestas alturas, até os índios da
Baia de Ilha Grande já se deram conta de que Cultura é uma fonte
inesgotável de energia para a vida humana. Apesar da prosperidade,
Paraty continua a ser uma cidade colonial, espremida entre o mar
azul e as montanhas de mata atlântica, onde a arte fez um pacto com
o que restou de um século vigoroso de ouro, e hoje até as pedras
toscas das ruas sabem que as artes se expressam com mais vigor no
tempo do que o ouro, a cana-de-açúcar e o resto.
Ruy Câmara é romancista, autor de "Cantos
de outono, o romance da vida de Lautréamont", Editora Record.
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