Antônio Carlos Secchin
Nos passos do poeta-viajante, João
Cabral de Melo Neto
3.8.1996
O jornalista José Castello procura no longo itinerário percorrido
por João Cabral de Melo Neto durante 40 anos a chave para
compreender as emoções do homem arredio e a sua obra, feita de
concisão e racionalidade.
João Cabral de Melo Neto:
O homem sem alma
José Castello,
Rocco, 184 páginas R$ 17,50)
A vida de João Cabral é um livro fechado, e que a
custo se deixa entreabrir. Vista de fora - o ângulo preferido do
poeta - apresenta tantos atrativos quanto a lista telefônica dos
habitantes da Antuérpia. Visitá-la por dentro foi a dura tarefa que
se impôs José Castello: extrair da pétrea resistência cabralina
algum material propício à construção de uma biografia. É notória a
aversão do poeta a tudo que se abeira do confessional. Sua obra
deseja camuflar a presença do sujeito pela fixação ostensiva em
realidades que lhe sejam fisicamente externas. Agrada-lhe deixar
fluir a matéria a fim de ocultar-se em suas dobras e quinas - poesia
de quem necessita clamar pelo visível para postar-se, invisível, à
sua sombra.
Esse "homem sem alma" atraiu seu biógrafo pela
miragem (frustrada, como qualquer miragem) de, afinal, esclarecer
como foi possível extrair tanta poesia de um manancial de vida tão
contido e distante. É sedutora a hipótese de Castello: não, não se
trata de um homem sem alma. Seu esforço para sufocá-la demonstraria,
pelo avesso, a existência de um mundo informe e subjetivo, cujo
desesperado exorcismo a aparente frieza do verso procuraria efetuar.
O biógrafo, numa argumentação persuasiva, não se furta à tentação do
"psicanalisar" o biografado, chegando mesmo a falar em "cura" do
poeta através da matéria concreta, uma vez que o imaterial seria a
fonte de sua angústia. "O sintoma que o atormenta (...) é o medo do
incontrolável", afirma à página 23. Após um prefácio em que expôs
afetos e temores, Castello controla o ímpeto de privilegiar suas
próprias oscilações e concede primazia à elaboração de uma espécie
de biografia intelectual do poeta. Seu discurso deriva para um tom
mais impessoal, reforçado pela estratégica utilização do presente
como tempo narrativo. Assim, o relato reveste de certo
distanciamento uma série de episódios já em si afastados do caráter
espetacular que a expectativa do leitor, em geral, associa à vida
dos grandes artistas.
O biografado ideal seria aquele que cedesse ao apelo
implícito dos versos de Berceo, escolhidos por João Cabral para
epígrafe de "O rio" (1954): "Quero que componhamos eu e tu uma
prosa" - amistosa cumplicidade transformada em texto tramado a duas
vozes. Provavelmente não terá sido essa a experiência de Castello na
maioria dos 20 encontros que teve com Cabral entre março e dezembro
de 1991. Diversos depoimentos concedidos à imprensa foram, no juízo
do biógrafo, fontes tão fundamentais para a feitura do livro quanto
as 30 horas de entrevista que colheu do poeta. José Castello desfaz,
com bastante coragem e algum lamento, a imagem de que pudesse ter
sido ungido à condição de interlocutor privilegiado, situando-se,
antes, como atento ouvinte e leitor, inclusive de outros leitores
cabralinos.
No longo prefácio, o autor se dedica a examinar o
ambiente de penumbra e desânimo que cerca o poeta, e sua
irreprimível vocação centrífuga, na tentativa de desalojar-se do
incômodo de si mesmo e de tornar-se apenas um foco de pura percepção
do outro, daquilo que lhe é exterior. O primeiro capítulo
reconstitui a infância em Pernambuco, os anos de formação do poeta e
sua vinda para o Rio de Janeiro. Já nesta quadra surgem nomes da
literatura brasileira que ocuparão para sempre lugar privilegiado no
círculo de relações de Cabral: Augusto Frederico Schmidt, Rubem
Braga, Carlos Drummond de Andrade e, sobretudo, Vinícius de Moraes,
a quem, por mais de uma vez, e por evidentes contrastes (de natureza
pessoal e poética), Castello se refere como o "anti-Cabral" por
excelência. O segundo capítulo relata a presença avassaladora da
Espanha na vida e na obra do poeta, desde os primórdios da
experiência em Barcelona a partir de 1947 até um retorno fugaz e
algo desencantado em 1994.
Poeta voltou ao Brasil em 1986
João Cabral é definido por José Castello como um
homem sob o signo da viagem permanente, "trânsfuga que jamais cessa
de fugir", mesmo que a fuga conduza "sempre ao ponto de retorno,
pois todo viajante é refém de sua origem"; por aí se pode explicar,
em sua obra, a obsessiva analogia Pernambuco/Espanha. O capítulo 3
relata as demais experiências estrangeiras, eventualmente atreladas
a reincidências hispânicas, além do retorno compulsório de João
Cabral ao Brasil nos anos 50, afastado que fora do Itamaraty sob
suspeição de envolvimento com o comunismo. O capítulo seguinte
retoma a linha mais interpretativa e menos factual do prefácio, e o
epílogo retrata as últimas incursões diplomáticas do poeta, bem como
o seu regresso definitivo ao Rio, em 1986. Encerrado o périplo,
constatamos que apenas dois lugares, praticamente, não conseguiram
despertá-lo para a poesia: o Paraguai e o Rio de Janeiro.
O homem sem alma não traça a vida palpitante de um
indivíduo, nem o amplo painel de uma geração. Anti-lírico, João
Cabral se quer também antibiografável. Em diversas ocasiões revela
desprezo ou antipatia pelo gênero, pelo risco de, nele, a vida
sobrepor-se à obra. Paradoxalmente, Cabral nunca se esquivou de
conceder entrevistas, que, de certa forma, acabaram por
configurar-lhe um nítido perfil. Curiosa tensão entre eximir-se e
exibir-se: o poeta expõe-se na prosa da entrevista, e se eclipsa na
voz do verso. Como todo criador, Cabral revela o melhor de si
naquilo que mais sutilmente resguarda. Na certeira observação do
biógrafo, "a verdade, se existe, está na poesia. Jamais fora dela".
Por isso, enfatizemos a seriedade e a importância do trabalho
realizado por José Castello, mas sem esquecer de levar suas próprias
palavras à última conseqüência: pela poesia, a vida de João Cabral é
um livro aberto, e que muito dificilmente se deixará fechar.
Antonio Carlos Secchin é autor de João Cabral: a
poesia do menos (Livraria Duas Cidades). Editou os Primeiros poemas
de João Cabral (Faculdade de Letras da UFRJ) e organizou os Melhores
poemas de João Cabral (Global)
Trechos
1 - Recife
A paisagem nordestina, desenhada em luz lancinante, dissolve
rapidamente o luto. O Capibaribe, mesmo sujo, é majestoso. Ao longo
de suas águas desfilam areeiros, vacarias, olarias, pescadores e
catadores de caranguejos; personagens que povoam as primeiras
lembranças de nosso viajante, como figuras pinceladas em uma tela
virgem. A visão féerica da seca, que dará o tom de sua obra poética,
ainda está distante. A natureza, aqui, é razoável. Comedida, mas
generosa, ela abre os espaços de que o homem necessita para viver. A
margem do rio está decorada por coqueiros, oitizeiros, mangueiras,
sapotizeiros. A miséria fica exposta na fachada dos casebres
instáveis e revestidos por lama negra. Há, entre eles, casarões
coloniais erguidos com a arrogância de castelos e capelinhas onde a
fé toma ares de confeito. E muitos quintais sombrios, armados para o
rio e não para a rua, em que a exuberância da natureza se confunde
com os dejetos da miséria.
2 - Barcelona
Se não está manejando sua prensa, Cabral se concentra em uma só
atividade: percorrer Barcelona com a ansiedade própria de um
descobridor. O que deseja encontrar? Isso não importa, pois o poeta
aceita o que a cidade tiver para lhe oferecer. Devora todos os
livros que pode comprar sobre a Catalunha e se entrega a caminhadas
de ida e volta pela calle Grandia e pelo paseo de Gracia, onde fica
a Livraria Ler, que logo se torna sua favorita. Entre as prateleiras
dessa livraria conhece uma figura-chave em sua primeira temporada
espanhola: o poeta Joan Edoardo Cirlot é um poeta ligado ao
surrealismo, autor de um importante dicionário de símbolos e muito
chegado a André Breton, a quem sempre visita em Paris. Por meio
dele, Cabral se deixa tocar novamente pela influência surrealista,
que aparecerá de modo mais gritante em um poema como O cão sem
plumas, um dos mais belos que já escreveu.
3 - Genebra
A carreira o conduz a paisagens ainda mais silenciosas. Depois de
sua segunda temporada em Sevilha, Cabral chega a Genebra, Suíça,
como conselheiro da embaixada brasileira. (...) A temporada em
Genebra se torna uma fronteira em sua vida. As viagens começam, a
partir daqui, a perder o poder revigorante e o fascínio. Tornam-se,
ao contrário, uma obrigação a cercear sua liberdade. Sempre
atormentado com a dor de cabeça lancinante, o poeta se submete a uma
cirurgia para cortar o nervo nasal na esperança de que, com isso, o
mal desapareça. Feita a operação, porém, a dor de cabeça continua a
latejar na mesma intensidade. O médico suíço, então, lhe dá um
diagnóstico que parece definitivo; "Se cortando esse nervo, sua dor
não desapareceu, é porque ela tem origem nervosa". E arremata: "Viva
com ela. E não deixe de tomar aspirinas". O poeta perde, aqui, todas
as esperanças de se livrar de seu tormento. E passa a ter a medicina
sob suspeita.
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