Fernando Segolin
 
Mestre Caeiro
 
 

in Jornal O Povo, 07/03/97 

 
Caeiro é, como o próprio Pessoa o confessa em sua famosa carta a Adolfo Casais Monteiro sobre a gênese da heteronímia - ``Aparecera em mim o meu mestre'' -, o mestre de todos os demais heterônimos e, inclusive, de seu criador. Isto porque os textos poéticos que levam a assinatura de Alberto Caeiro têm, na obra pessoana, a finalidade de encarnar a essência do ``sensacionismo'', espécie de tese filosófico-estético-poética que serve de fundamento para toda a poesia de Pessoa.  
  
Se tivermos em mente os três princípios básicos do ``sensacionismo'', tal como Pessoa os formulou:  
  
``1. Todo objeto é uma sensação nossa; 2. Toda arte é a conversão de uma sensação em objeto;3. Portanto, toda arte é a conversão de uma sensação numa outra sensação.''  
  
Podemos facilmente verificar, pela leitura dos poemas de Caeiro, que ele é, dentre os heterônimos, aquele que representa a postura mais radical face a esses postulados pessoanos: para o mestre, o que importa é vivenciar o mundo, sem peias e máscaras sígnicas, em toda a sua multiplicidade sensacionista.  
  
É por este motivo que, repetidamente, Caeiro, em seus poemas, insiste naquilo que ele mesmo chama de ``aprendizagem de desaprender'', ou seja, o homem deve aprender a não pensar, a silenciar a mente, libertando-se assim de todos os padrões, modelos, máscaras e pseudo-certezas ideológicas, culturais, sígnicas enfim, que desde cedo lhe foram impostas, para dedicar-se só e simplesmente à revolucionária e reveladora aventura do contato direto e sem mediações com a realidade concreta, palpável, que nos cerca e de que fazemos parte.  
  
A verdadeira vida para Caeiro reduz-se, deste modo, ao ``puro sentir'', sendo o sentimento da ``visão'' o mais relevante de todos, por ser o que nos coloca em relação mais estreita e integral com o mundo objetivo:  
  
``O essencial é saber ver, Saber ver sem estar e pensar, Saber ver quando se vê, E nem pensar quando se vê, Nem ver quando se pensa.''  
  
Nascido em Lisboa, em 1889, e falecido, vítima de tuberculose, na mesma cidade, em 1915, Caeiro passou quase todos os anos de sua curta vida no Ribatejo, na quinta de propriedade de uma tia velha, onde pastorava ovelhas e procurava, diariamente, exercitar o que ele mesmo chamou de a ``perversa ciência de ver''.  
  
Em decorrência dessa sua postura face à vida e dessa prática sensacionista, nasce uma estranha poesia empenhada em fazer a crítica mais radical da linguagem, da cultura, das ideologias e, paradoxalmente, da própria atividade poética, via negação/rejeição/recusa de qualquer tipo de pensamento.  
  
A poesia de Caeiro é, neste sentido, uma curiosa poesia da anti-poesia, feita com o objetivo específico de pôr em xeque todas as máscaras sígnicas (palavras, conceitos, pensamentos, ideologias, religiões, arte) com que estamos habituados a ``vestir'' a realidade, esquecidos de que ela simplesmente ``é'' e vale por si mesma, e de que a única experiência que vale a pena é a de uma espécie de silêncio sígnico total (o homem, neste caso, libertar-se-ia do poder constrangedor de todo e qualquer signo, deixando, portanto, de atribuir significados ao mundo), o único caminho que, segundo Caeiro, nos possibilitaria a visão e, conseqüentemente, o conhecimento do real em toda a sua verdade, enquanto pura presença e pura existência:  
  
``A espantosa realidade das coisas É a minha descoberta de todos os dias. Cada coisa é o que é, E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra, E quanto isso me basta.''  
   
Clássico Reis 
  
Reis é o heterônimo que encarna, no contexto da poesia de Pessoa, uma espécie de reexperimentação de pensamento e da prática estética-poética da Antiguidade Greco-Latina.  
  
Nascido na Porte, a 1° de setembro de 1887, foi educado num colégio de jesuítas, onde teve contacto com a língua latina e com a cultura clássica. Por isto, foi, segundo seu criador, um latinista por educação alheia e um semi-helenista por educação própria. Formado em medicina, sem nunca ter realmente exercido a profissão, viu-se obrigado, por força de suas idéias monarquistas, a exilar-se durante certo tempo no Brasil, depois da proclamação da República em Portugal.  

Leitor apaixonado de Horácio, poeta latino do século I A.C., é o autor de odes, na sua maioria curtas, inspiradas temática e formalmente na poesia horaciana.  

Identificado, como aliás todos os demais heterônimos, com os postulados poético-sensacionists de Pessoa, Reis, como antípoda que é de Caeiro, dedica-se a vivenciar poeticamente um ``sensacionismo'' de caráter ``reflexivo'', tendo por base o que chama de ``pensamento elevado'' ou ``pensamento alto'', ou seja, o pensamento equilibrado, onde a emoção comparece, mas inteiramente sujeita ao controle da razão, e voltado apenas para a articulação de idéias e questões que dizem respeito aos grandes temas e inquietações do homem: os deuses, o destino, o próprio homem, o sentido da vida, a beleza, a virtude, o tempo, a arte, a morte, a alegria, o prazer, a dor etc. E tudo isto temperado por inflexões filosóficas de caráter estóico-epicurista, em versos rítmica e metricamente regulares e num português erudito e latinado.  

As odes de Reis procuram ser, assim, a tradução em linguagem poética, naturalmente nobre, de temas nobres e elevados, oriundos da análise equilibrada e racional das sensações, com o objetivo de extrair delas lições e conceitos universais de cunho ético-estético.  

Representante, em pleno século XX, da poética clássica e do paganismo, além de adepto do ``pensamento alto'' e defensor de teses estóico-epicuristes, Reis prega a indiferença solene do homem diante do arbítrio e do poder dos deuses, diante do destino inelutável e da morte como termo definitivo de toda vida. Inerme em face de tais forças, cabe ao homem apenas a sabedoria de viver avida de forma equilibrada e serena, ``sem desassossegos grandes'' e também sem grandes alegrias, já que tudo passa e tudo perde o sentido diante da morte inevitável. O que importa é somente a experiência desapegada do momento presente e de pequenos prazeres, que não deixam traço nem saudade e, portanto, não são capazes de provocar nenhum abalo ou desvio descentrador:  

``Segue o teu destino, Rega as tuas plantas, Ama as tuas rosas. O resto é a sombra De árvores alheias.''  

Viver a vida com a nobre e aristocrática lucidez dos ``grandes indiferentes'', que sabem que tudo tem seu fim e de que tudo já está irremediavelmente traçado, eis o trágico lema que perpassa toda a poesia de Ricardo Reis:  

``Cada um cumpre o destino que lhe cumpre, E deseja o destino que deseja; Nem cumpre o que deseja, Nem deseja o que cumpre.  

Como as pedras na orla dos canteiros O Fado nos dispõe, e ali ficamos; que a Sorte nos faz postos Onde houvemos de sê-lo.  

Não tenhamos melhor conhecimento Do que nos coube que de que nos coube. Cumpramos o que somos. Nada mais nos é dado.''

 
 
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