Soares
Feitosa
Do bolo-só-casca
ou
Da beleza só-superfície
Enquanto
divagava de mim para mim sobre o sim, sobre o não, ninguém
deu um pio. Ou se deu, “ausente”, não reparei. Sequer o
senhor Capitão, naquele instante também circunspeto e
interior, tentou interromper o recolhimento que era geral,
para perguntar sobre o deus-mais-terrível. Quem será mesmo
esse deus? Terrível? E existiria algum que não o seja? Mas ele
faz questão do “mais-mais”.
Bruscamente
como chegara — a partir da decifração do nosso Filósofo
Sertanejo — o silêncio rompeu-se. Era o tropel da carruagem do
Piloto nº 1, trazendo de volta o estudante. Piloto e
estudante, cada um trazia uma lata daquelas antigas, de
bolachas cream-cracker. Abriram-nas ou já vinham
abertas. Um cheiro de padarias e cozinhas impregnou o pouco
que restava de nosso silêncio, agora de festas e seus
barulhos. O estudante dirigiu-se ao Coronel com a primeira
lata:
—Pronto,
Coronel, minha mãe lhe mandou, com um “aprovado!”
O
Coronel agradeceu e pegou um pedaço. Cheirar para quê, se o
cheiro estava no mundo?! Mordeu-o e confirmou:
—
Uma delícia! A senhora sua mãe é mestra! Parabéns!
E,
imediato, distribuiu o produto com os da sala. Vi que ele iria
começar pela madrinha, mas na hora H, desviou-se para a mãe.
Entregou o dela e virou-se para a madrinha. Agora de costas
para a mãe, dois pedaços à madrinha. Pelo gesto da mãe,
crítico mas não raivoso, deu para notar que vira o
“favorecimento”. Em seguida, dona Rosa Parks, a jovenzinha
das anotações, o reverendo Kolbe
— e, na frente de muita gente ilustre, eu, certamente
por ser o “dono” da cela —, cada qual ganhou o seu.
Os
cegos, sem saber o que se passava, arrebitavam as ventas no
ar, de tanto cheiro, também ganharam, mas desconfio que o
Coronel tenha dado um pedaço maior ao cego cantador,
Aderaldo, conterrâneo dele. O Capitão, o lutador Mr.
Clay, o professor Pedro César, o magistrado Benedito, o
Historiador e assim sucessivamente, de modo que nunca vi lata
tão rendosa.
E
cheiros! Aquelas coisas torradas, grelhadas, assadas,
salgadas, quando abafadas em lata..., se a
gente destampa uma em ambiente restrito. E, sobretudo,
“faminto”— quem não lembra?
Todos
foram contemplados. Até os diabéticos, sem exceção. O
Coronel distribuía o produto e ia dizendo:
—
Por favor, é o bolo-só-casca... uma receita que andei
inventando... a mãe do meu grande amigo Sávio terminou de
aprontar.
À
medida que a sala ia elogiando o produto, e o Coronel elogiava
as habilidades da senhora mãe do estudante, dava para ir
notando o crescente ar de muxoxo da madrinha-preta, mas o
Coronel fazia de conta que não via.
Em
seguida, foi a vez de o senhor Piloto botar em cena a outra
lata. Uma vergonha, era pão. Isto mesmo, apenas pão. Pão-d’água,
dito pão-francês, mas simplesmente pão. Porém com um
formato novo: bolotas, bolotas de pão, não muito maiores do
que uma cabeçulinha. O
cheiro de pão-quente espalhou-se em toda a sala. Como se fora
um cesto de pão, dos maiores e bem quente, daqueles bem longínquos...
sob uma lona verde, no abafo. O Coronel as distribuiu, cinco
bolotas, no mínimo, para cada um. Ele disse que aquilo era a
outra receita que também inventara: o pão-de-bico.
—Pão-de-bico,
senhor?
—
Exato, meu caro professor Pedro César! O pão-de-bico, ou
como queira chamar, o pão-só-bico, tal qual o bolo-só-casca
que, por sua vez é um bolo comum, qualquer bolo, o souza-leão,
o luiz-felipe ou de milho, apenas um bolo, porém sem miolo.
Tal qual no bolo-só-casca, no pão-de-bico também não há
miolo. Com isto, evitamos a confusão dos adolescentes, em
casa, querendo que a mãe, coitada, se transforme em bico de pão.
Falou
que inventara o pão-de-bico para resolver um segundo
problema: o desperdício! Comentou que os gordotes, sobretudos
as gordotinhas, botam fora o miolo do pão como imprestável,
num “ódio” como se lidassem com um veneno muito forte ou
um vírus de computador. «Pronto, de uma cajadada, matamos os
meninos e as gordinhas!» — disse, todo atrapalhado,
“matando” a quem não devia, o nosso Pardal,
revelando agora mais duas profissões: padeiro e boleiro.
Comentaram
que o Coronel “legislava em causa própria”, em franco
nepotismo, no caso do pão-sem-miolo, porque a futura monja,
consta que andava meio fora das medidas... E, para terminar de
bagunçar, alegaram que a segunda profissão — boleiro, nem
sei se o fabricante de bolos tem esse nome, vá lá que tenha!
— não seria compatível para um auditor. O Coronel objetou
que era ex-auditor, por isto mesmo poderia exercê-la sem
constrangimento, sobretudo se o bolo não fosse de dinheiro
frio nem de conta na Suíça.
Surgiu,
como seria de esperar, uma discussão tremenda do professor
Pedro César com o senhor Coronel, este garantindo que a Suíça
seria o país mais atrasado do mundo, enquanto que o professor
afirmava que, pelo contrário, lá estaria a mais apurada
civilização de todos os tempos.
—
O senhor já esteve lá, Coronel? — indagava o professor,
exibindo para quem quisesse ver a carteira de estudante e,
mais recente, a de professor visitante, dos melhores
estabelecimentos teuto-suícos. De leve, insinuava que o
senhor Coronel não passava de um sertanejo acostumado com
vacas e bodes. Muita gente aplaudiu o professor.
Acho
que foi bem feito! Contudo, se culpa houve de aparecerem
bolos-só-casca e pães-de-bico ou pães-só-bico na reunião
da Biblioteca, tal pecado não pode ser atribuído
exclusivamente ao senhor Coronel porque quem os trouxe foi o Sávio,
o estudante. Por outra, confesso que botei reforço na certeza
de que o senhor Coronel não gira em bom juízo. Ora, ora!, um
matutão dos mais selvagens querer enfrentar o professor Pedro
César, um homem extremamente culto, que estudou no
estrangeiro! Entretanto, esse senhor Coronel, o sofisma em
grau absoluto, é muito capaz de nos provar que pedra é água
ou água é pedra, ou ambas as coisas ao mesmo tempo — tanto
faz. Agora, que o tal bolo-só-casca e o pão-de-bico ou pão-só-bico
estavam uma delícia, estavam. Isto veremos, quem tem razão
na Suíça — ou conta bancária? — mais adiante.
231
– A visão do Coronel. Ou minha?
Fiquei
com muita vontade de perguntar ao Sávio, o estudante, se ele
dissera à mãe os desaforos atrasados — e parece que o
estoque seria devastador. Mas nem foi preciso, porque o senhor
Piloto nº 1 contou que o estudante ao avistá-la
desmanchou-se em «Bença, minha mãe!», beijos e abraços,
sobretudo quando se deu conta de que ela aprontara as receitas
do senhor Coronel que ele, Sávio, lhe havia passado.
Foi
o suficiente para alguém comentar a prudência de Sávio, o
estudante. Ora, se a mãe havia testado justamente as receitas
que ele havia levado, e não outras receitas, sobretudo as de
alguém vazado no desaforo... Conclusão: ele, Sávio, é que
seria o filho amado.
—
Isto mesmo, meu caro Sávio! Ela aceitou sua oferenda! —
disse o monge Jorge, cheio de regozijo.
Acho
que não foi de má-fé, mas vejam só o que o senhor Profeta
aprontou:
—
Sávio, meu caro, quando você chegou lá na casa da senhora
sua mãe, as cascas de bolo, aliás, as tiras do bolo-só-casca
e as bolotas do pão-de-bico já estavam dentro das latas?
—
Sim, meu caro Profeta, já estavam nas latas. Por falar nisto,
a nota-fiscal das latas vazias estava em cima do oratório,
junto com as receitas que o Coronel me passara. Por distração,
coloquei a nota no bolso, mas a intenção era reembolsar
minha mãe das despesas. Ah! encontrei: «Seis pares de latas
vazias».
—
Veja, meu caro Sávio, se vocês são cinco irmãos... Se sua
mãe nunca guarda nada para si, assim você nos contou... Por
que então ela haveria de comprar seis pares de latas e não
cinco? Evidente que alguém... gan... ganh... — «Não, não,
mestre Camundo! Pare com isto, pelo amor de Deus! Suspenda a
auditoria! Deixe meu amigo Sávio em paz!» — gritou, num
tom distinto, afinal dirigia-se ao comparsa, mas com toda
energia, com o máximo de energia, o senhor Coronel.
Não,
meus amigos! Por quê? O Profeta pediu desculpas. Eu disse que
sim. Ele, para sair do apuro, perguntou à madrinha se
ainda havia café. Havia. Com outro pedaço do tal bolo-só-casca,
emborcou de goela abaixo,
ligeira — talvez até tenha queimado a língua — a xícara
cheia.
Com
alguma habilidade para os que demais não escutassem,
perguntei ao senhor Coronel se ele confirmava a minha ausência
da sala, há pouco. Ele disse que não, porque também ficara
momentaneamente "suspenso" depois daquela história do novilho
misturado com os talentos de um outro coronel, amigo do
Cristo.
Contou-me,
em particular, que, enquanto silenciávamos, ele incluso, na
sala, aliás, na minha modesta cela, também se ausentara, ou
apenas se “ausentara”, coisa que não sabia muito ao
certo. Disse que “viajara” a um fim de tarde. Não, não
era uma tarde do sertão, cheia de aboios, bodes, campinas e
pores-de-sol. Era na cidade grande, as pessoas retornando da
faina, um trânsito enlouquecido, quando uma anciã, negra, do
outro lado da rua, sinalizou, diretamente a ele, que queria
passar. Ele confirmou que sim. E, quando reparou nela, já
pelas costas, depois de atravessar a fila de carros, ela —
uma roupa bem modesta, de bolotinhas miúdas de uma cor indefinida,
seu cupim-carapinha quase branco, as canelas já meio tortas
de velhice... E falando em voz baixa, para que ninguém nos escutasse,
disse-me ele que, de imediato, se tomou de uma intensa ternura.
Quando olhou novamente, ela sumira do outro lado dos ônibus
que eram muitos e passavam com grande barulho, mas aquele
olhar a lhe pedir passagem se não fora da madrinha, de quem
haveria de ter sido? «O problema, meu caro Djalma, é que a
madrinha está morta há séculos!» disse-me.
Esclareceu
que estava mais confuso ainda porque, a rigor, o problema começara
mais cedo. Na manhã daquele dia, aparecera por lá, no escritório,
a mãe de um cliente, uma sertaneja — aqueles mesmos olhos
claros, dançantes, ligeiros. Rústica e gentil ao mesmo
tempo, daquela estirpe que reza e chama por Deus e Lho
agradece até de coisas que nem recebeu. Era uma professora,
que não sabe se também seria ou teria sido parteira. Ele
disse:
—Parecida
com quem, meu Deus? E o mais grave, meu caro Djalma, é que,
no escritório, no fim do expediente da manhã, sozinho,
quando saía
para o almoço, logo depois de avistar aquela mulher, fui tomado daquela mesma ternura que me
afligiu a cena da tarde. Descia as escadas, não
havia ninguém por perto, mas ouvi, da mesma voz que ouvi no
trânsito assim que a negra terminou de atravessar: «Meu
filho, tu és o meu filho amado!»
E,
com a mesma emoção, agora segurando-me os braços falou-me
em voz reservada, mas firme: «Djalma, a voz que você
escutou é a mesma voz!»
Tive
vontade de lhe dizer que não escutara voz alguma. Com que
direito esse
sujeito estava a adivinhar meus pensamentos? Confesso-lhes: em
determinados momentos, neste, sobretudo, tive a certeza de que
o Coronel, o Profeta, o Historiador, o Magistrado, a mãe do
Coronel, a tal madrinha-preta, o professor Pedro César e toda
aquela multidão de santos e facínoras presentes e ausentes à
Biblioteca são uma única pessoa!
O Coronel? Claro que não! Quem haveria de ser senão
eu?
231
– Gritaram por mim, mas quem saltou lá longe foi o senhor
Coronel
—
Senhor Coronel! — gritou o monge, mas quem saltou bem acolá,
de puro susto — eu que saltei. Todos riram, menos o Coronel.
Menos o monge.
—
Consta que o senhor escutou vozes?
—
Não, meu caro monge! Quem as escutou foi o Cristo, justamente
quando ainda não sofrera nem um milésimo do que Lhe cabia
sofrer... Por isso mesmo, os céus se abriram num clarão de
fogo, de granizo e relâmpago, e a mãe dEle gritou lá de
cima: «Meu filho, Tu és o meu filho amado!» É uma
senha do sofrimento a que todas as mães se obrigam. Um ritual
de véspera, meu caro monge.
—
A mãe!? Uma mulher? O senhor blasfema!
—
Senhor monge, melhor perguntar à poeta Adelaide Peters
Lessa... Ela que me garantiu que Deus é mãe. Veja:
Deus-Mãe
Aos
sofredores do mundo,
quisera
escrever um poema
que
fosse de alívio eterno,
assim
como,
na
hora extrema,
Deus
é todo materno
|
Choveram
palmas, menos do monge, que pediu o endereço da autora. O
Coronel informou que bastava abrir o Jornal de Poesia.
Ele anotou, garantindo que ela não ficaria sem punição.
233
– Interpelaram sobre o bolo-só-casca
O
professor Pedro César interpelou o Coronel sobre o bolo-só-casca.
Afinal, a reputação de suas gentes estava em jogo. O
professor também é sertanejo, aliás, nasceu por lá, mas
sempre viveu na cidade grande, inclusive na Europa. Reclamou
que nunca ouvira falar em semelhante produto. O Coronel disse:
—
Não seja por isto, meu caro professor. Se nunca ouviu, vai
ouvir, aliás, terminou de ouvir! E garanto-lhe que todos
ouvirão e comerão a boa nova. Muito a propósito, estou
mandando passar neste exato instante uma mensagem para o meu
amigo Ivens, das bolachas e dos biscoitos, para que ponha o
bolo-só-casca em linha de montagem, bem como o pão-de-bico!
Quanto às patentes, o escritório dos meus filhos as
providenciará em todo o planeta, com franquia idêntica à
dos sanduíches dos americanos. E, por favor, meu caro Djalma,
pode anotar em sua caderneta: assim que o bolo-só-casca e o pão-de-bico
começarem a render royalties, farei uma polpuda doação
à Biblioteca! Agora me diga, senhor professor, aqui só
entre nós, o produto presta ou não presta?
[Em
tempo: no mesmo instante, o senhor Capitão confirmou que a
mensagem fora passada para o fabricante. Se ele iria ou não
botar o bolo-só-casca e o pão-de-bico na linha de produção,
isto não ficou esclarecido. Torço que sim, afinal, há a doação
em jogo]
—
Bom, quanto a isto — disse o professor —, não há dúvidas...
Mas precisa ficar claro: seria um produto transgênico? O
Partido Verde foi avisado?
O
problema é que o professor, enquanto falava, esticou os
olhos na direção da lata de bolos, o que foi imediatamente interpretado pela mãe do senhor Coronel. Tiras
inteiras do bolo-só-casca, não. Contudo, deram um jeito de
bater a lata de cabeça para baixo, juntando os resíduos numa
tigela que só pode ter saído da bolsa daquela senhora. Ah!
que farra! Exigi, evidentemente, o meu “quinhão”. E o café,
das últimas xícaras. Também ganhei a minha.
Aproveitei
a distração do professor com os “fragmentos” para fazer
uma pergunta, mas antes tenho que confessar, foi uma injustiça
que cometi contra o senhor Coronel, de que agora me desculpo.
O problema é que os primos dele tanto falaram em feitiçarias
que acusá-lo de mais uma não me pareceu muito grave:
—
Frei Jorge, veja, o senhor Coronel inventou esse rico manjar,
o bolo-só-casca e o pão-de-bico. Não tenho dúvidas de que
são excelentes. O que me surpreende é que nos garantiu
tratar-se da mesma massa, com os mesmos ingredientes. Ora,
senhor monge, se não há nenhuma alteração na receita...
Seria possível alguma coisa, digamos, uma reza forte, alguma
manding.../ — «O que é isso, meu caro Bibliotecário? A
explicação é muito fácil: a beleza está na superfície!»
— atalhou de lá, antes mesmo que eu completasse a infâmia,
o Profeta, nosso Filósofo Sertanejo, o Camundo.
—
Beleza? Na superfície? O senhor enlouqueceu? Beleza na superfície?
Foi isto mesmo que escutei, senhor Profeta? — Esbravejou o
monge.
—
Sim, meu caro frei Jorge! Sabor e beleza são a idêntica face
de uma mesma moeda, a superfície de todas as coisas!
—
Face de todas as coisas?
—
Os astronautas, senhor monge, batem lá de cima uma
fotografia. A Terra, em seu contorno de sombra e azuis. O
Coronel me mostrou na revista da National Geographic! É
só superfície. De puro contorno! O Belo, frei Jorge, está
na casca, só na superfici.../ — Sequer concluíra, e o
monge, feito uma caninana,
avançou, dando botes no vento, “enxergando” até
demais:
—
O senhor está louco! A beleza só existe se for a partir do
interior! Filósofo de coisa nenhuma! Fundado no âmago, o
Belo é o Bem!
A
sorte é que o Profeta desvira-se a tempo! E já foi gritando:
«Coronel, me acuda!» O monge passou feito uma bala!
Cego?!
Contudo,
não foi apenas o monge que se assustou com a fantástica
teoria do Belo do nosso Profeta. Pedi paciência à sala
inteira. Ah, gentes loucas! Um Belo-só-casca?
Igualzinho ao bolo e aos bicos de pão sem miolo, de há
pouco? Ter-se-iam combinado, de modo que um assunto levasse ao
outro? Olhei para o Sávio, o estudante, afinal ele quem
trouxera o bolo e o pão desmiolados. Acenou que nada tinha a ver com a
tal estética de cascas. O jurista Rafael também sinalizou
que não. O jeito foi mandar ver o que de novo os sertanejos
teriam a demonstrar. Silêncio geral, ou melhor, o silêncio
possível, e o Coronel, tomando o lugar do Profeta, a socorrê-lo,
disse:
—
Senhor monge Jorge, ainda lembro como se fosse hoje. Tinha uns
quinze anos, não mais. Era
uma manhã de sol, de muito sol quente, quase a pingo do
meio-dia. Eu e a
madrinha havíamos ido buscar uma partida de arroz em
pagamento de um parto complicadíssimo que minha mãe fizera.
—
Sim, vá dizendo!
—
Era longe, lá perto do Catolé, aliás, depois do Catolé, no
sítio de seu Lulu Ximenes e dona Dedeca, ela em grande
sofrimento, há vários dias com um filho morto dentro do
bucho, em tempo de também morrer, nas mãos de um médico
novato, que nunca fora parteiro, para cima e para baixo, num
jipe, só fazendo despesa, o doutor dizendo que iria levá-la
para a capital, uma estrada cheia de atoleiros, claro que ela
haveria de morrer no caminho.
—
Prossiga. Não estou entendendo!
—
Então, os homens da cidade disseram: Lulu, tenha juízo,
homem-de-Deus! Chame a comadre! Ele chamou. De início, o
doutor novato, e, em todo o trecho não havia outro, ficou
meio renitente, mas ante o desespero do caso, entregou os
pontos. Ah, frei Jorge, foi num instante! Dona Dedeca desocupou-se
daquela criança morta e ficou boazinha da silva, num minuto.
Seu Lulu Ximenes disse: comadre, mande buscar dois alqueires de
arroz pilado, além do pagamento que vou-lhe fazer agora
mesmo, um conto de réis, que vi minha mãe contar e botar no
bolso do vestido, abotoar um broche por dentro, que ela não
era boba, a rua cheia de malandros.
—
Não consigo, senhor Coronel, imaginar o que semelhante caso possa ter a ver!
—
Então, senhor monge, fomos buscar o arroz. Eu e a madrinha, com
os animais, para trazer a carga de uma única viagem, mais de duzentos
quilos de arroz, o suficiente para comer um ano inteiro ou
mais!
—
Um instante, senhor Bibliotecário Djalma! — gritou o monge
— o Coronel tresvaria! Vejam se está febril. Enlouqueceu!
Apliquem-lhe uma sangria. Também um sinapismo! O que essa
história, tão estapafúrdia, pode ter a ver com a Esthetica?!
Uma estética de partos? De médicos incompetentes e batedores de
carteira? Arroz para comer por mais de um ano?! Estética? Ponham-no no
isolamento! Pode ser contagioso!
De
fato, um absurdo, assim também me pareceu a tal nova estética
do senhor Coronel. O problema é que o outro Jorge, a platéia
inteira e eu também queríamos ouvir a doideira dos
sertanejos, ainda que fosse só para atanazar o monge. A mãe
conferiu-lhe o pulso. Pelo jeito, normal.
—Prossiga,
senhor Coronel, com a viagem do arroz, sem dispensar detalhes,
por seu favor —disse-lhe sob “olhar” malicioso dos
outros cegos.
—
Sim, meu caro Djalma — disse o Coronel, agora mudando de
interlocutor —, era um sobe-e-desce que não tinha fim. Uma
pena que o senhor não conheça a estrada do Catolé. Assim,
ó! — e desenhou no ar uma onda bem sinuosa, aliás,
repetidas ondas, fundas, ligeiras, a pique, subindo e descendo. E
prosseguiu:
— Mal a gente termina de descer e subir um alto, bem alto,
começa outro abismo ainda mais fundo! O sol tinindo de
quente! Eram três jumentos de carga; com o meu, o jumento
Moleque, comigo em cima,
quatro. A madrinha, no cavalinho Bacalhau.
Cinco animais, eu e a madrinha
—
?
—
Então, senhor Bibliotecário, vínhamos descendo um daqueles
muitos altos, eu e o jumento Moleque. Nós éramos dois
grandes camaradas! Como se fosse gente de carne e osso, o
jumento Moleque! Depois mandei buscá-lo já bem velhinho,
acho que ele nem se lembrava mais de nossas presepadas, para
seus últimos dias, noutra fazenda que comprei na praia,
depois que vendemos tudo por lá, naqueles socavões.
—
?
—
Pois bem, descendo o alto, sem ver de que nem porque, minha
vista se esbarrou numa
árvore bastante comum naqueles boqueirões de serra,
chamada pau-branco.
—
?
—
Se o jumento também olhou? É provável! O fato é que à
medida que a árvore ia ficando mais próxima, e havia não
sei quantas outras do mesmo tipo e porte naquele capão de
mato, víamo-la por um ângulo que ia mudando. Inicialmente,
quase de frente, na risca dos olhos. Diminuímos a marcha.
Digo isto no plural porque a marcha era do jumento, é claro, mas era
como se nós dois fôssemos um só. Não, ele nunca respondeu
nada, ou se respondeu não escutei, mas isto de não responder
nunca foi motivo de não conversar com ele. E muito!
—
?
—
O passo bem lento, descendo o alto, eu de olhos cravados
naquela árvore de pau-branco. No caule, só no caule. Se ela
tinha copa, raizame, flor, flores, bolotas, vagens, sementes,
frutos e bichos em derredor, isto não entrou em jogo.
Como se fosse um único caule em toda a vida, só aquele!, no
meio do garranchal que é a mata de lá.
—?
E
o giro girando, senhor Bibliotecário Djalma! Aquela árvore
que, inicial, vinha vindo bem de frente aos olhos, ia-se
mudando para o ombro; depois, lentamente, para as costas.
Pareceu, subitamente, que tudo estava parado, exceto aquela árvore...
ela é que girava agora bem dentro dos meus olhos. O passo
macio, de muita cadência, de uma calma absoluta de meu
compadre. Sim, meu caro Djalma, aquele jumento, ele era meu
compadre, meu irmão de leite.
—
Seu irmão, Coronel?
—
Sim, mas isto explico depois. Desculpe-me ter enfiado outro
assunto pelo meio. Então, de tanto girar, nem sabia mais quem
girava, se nós, aliás, eu mesmo, a minha cabeça, o
pescoço e o restante do torso. De tanto me virar em giro, com certeza
enviesei o jumento. Quando me cuidei, zonzo total, estava no
chão. Meu compadre assustou-se, é claro, mas esperou.
[Pescoço?!
De assombrar a coragem do senhor Coronel para falar em pescoço, se
justamente pescoço é o que ele não tem! Ninguém falou nada, nem
eu. Ele prosseguiu]:
—
Ah, senhor Bibliotecário, calmamente, com toda a aflição porém,
peguei meus próprios pés, me pus em cima deles e, como se
nada tivesse acontecido, aliás, como se tudo estivesse
acontecendo!, fiz o caminho de volta, olhando, até o alto
daquele alto. Olhei lá de cima, é claro, justo naquela árvore.
Só nela! Única! Voltei contornando-lhe o caule do mesmo jeito
que já havia olhado, subindo. Respirei fundo. O jumento esperando.
—
?
—
Bem que ele poderia ter ido embora, na companhia dos outros,
que eu nem teria reparado. Ah, jumento firme! Montei-o numa rápida
pernada. Ufa! Voltei a vista para ela, árvore, mais uma vez.
Vi que ia cair novamente, eu. Saltei rápido na sela e fiquei
de costas, em direção ao rabo do jumento, olhando, até
chegarmos ao cocuruto do alto, a árvore sumindo à medida que
descíamos para o outro abismo. Gritei o jumento em direção
à tropa: Vambora, meu compadre Moleque!
—
?
—
Medo? Não sei! Mas o coração em tempo de estourar.
Troteamos ligeiros para acompanhar a madrinha, mas ficamos por
longo tempo lá atrás. Aquela árvore, aliás, o seu caule não
me saía do tino. O
sol rachando de quente.
—
Sim, Coronel, por favor, agora nos explique o que de belo o
senhor viu naquela pobre árvore? — indagou, muito assustado
com o pouco juízo do conterrâneo, o professor Pedro César.
—
Veja, professor, depois, muitos anos depois, tomei
conhecimento de um filósofo ou era poeta, ou ambas as coisas,
um tal Ponge, francês, Francis Ponge, especialista em pegar
um objeto qualquer, desses bem comuns, uma cadeira, um
caixote, uma fruta, coisas assim, e descrevê-lo tal e qual
naquela “viagem” que, muito jovem, fiz àquela árvore.
Ele dizia que era a fenomenologia do objeto. Não, não era um
tratado sobre o peso específico daquela madeira de que se
fizera o caixote, nem sua duração, sequer o tipo de madeira,
suas medidas e outros dados valorativos, mas uma viagem ao
periférico...
—
Periférico, senhor?! O monge está certo! O senhor confunde as
coisas! Deve andar lendo livros à-toa! É claro que as
confunde! O termo “periférico” que acaba de empregar
contradiz com fenomenológico! Afinal, responda-nos, por
favor, o que o senhor encontrou naquele pau seco, no meio da
caatinga de nossa terra? Que proveito um jovem teria de olhá-lo
tão devotamente como o senhor o olhou?
Tenho
que lhes dizer que
a discussão do professor
com o Coronel até que estava interessante, se não fora a
intromissão do tal engenheiro, o Doutor Fernando:
Desconfio,
Thiago, dessas águas todas, tuas,
de todos esses rios imensos, teus,
não podem ser de chuva só:
esse mundaréu de chãos de águas
são dos meus olhos, Thiago,
quando aí fugido,
entre polegar e indicador,
eu apertei a casca limosa da floresta vasta,
quando meus pés chiaram lama entre os dedos tarsos,
quando meu lombo se encharcou da chuva rápida...
Foi aí, Thiago, quando os meus olhos
se explodiram na lembrança
daquelas terras, daqui;
daquele vento, seco, meu;
daquele sol dos olhos
dela,
minha.
|
Além
de recitar sem ser chamado, dizendo que a tal cantoria do
Coronel fazia parte de um canto maior ao poeta Thiago de Mello, o
engenheiro ainda meteu o bedelho:
—
Senhor professor Pedro César, uma calculadora das mais
rudimentares sabe muito bem extrair uma raiz quadrada numa
rapidez que nem o olho mais ligeiro acompanha. Nem por isto,
os meninos hão de deixar de aprender a extrair uma raiz na
munheca, a pretexto de que a maquineta sabe extraí-la mais rápido
e mais seguro do que eles. Da mesma forma, o Coronel, sem
jamais ter botado os pés na mata amazônica, como poderia ter pegado
«entre polegar e indicador a casca limosa da floresta vasta»?
Ele nunca me contou sobre essa assombrosa viagem, no sol
quente, ao caule daquela tal árvore lá do sertão, pau-branco, de que nunca
ouvi falar, mas estou certo de que naquele caule estão
subsumidos todos os outros caules de árvores que já
desapareceram desde as mais remotas eras geológicas, até às espinhosas
de Madagascar ou à mais soberba das sequóias, passando,
obviamente pelo caule anônimo de que uma carpintaria também anônima fabricou
dois paus trançados... — concluiu o engenheiro, puxando do
bolso um crucifixo, beijando-o e
se benzendo, parece que entalado de emoção.
—
Senhor engenheiro, desculpe-me, mas seu "belo discurso profético"
— zombou o professor — não esclarece o tema proposto em discussão, aliás, discussão
instaurada com o tal bolo-só-casca, uma delícia, diga-se de passagem, mas isto nada tem a ver: onde, afinal, a beleza só-superfície?
Cá
para nós, acho que o professor olhou mais uma vez para as latas de bolo e
pão. Bateram nelas, mas o som percutido foi de vazio absoluto.
Nem café! Contudo, não ficaremos com fome. A não ser que a
senhora mãe do Coronel não seja a mãe do senhor Coronel.
Este texto é um capítulo de Salomão, um
livro em processo.
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Um cronômetro
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a estética - silêncios
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