Mal
terminaram de bater nas latas, conferindo-as vazias, outro
barulho tomou conta de minha modesta cela. Era o senhor Piloto
nº 1, em sua carruagem de fogo, apeando-se, descarregando, desdobrando e armando,
rapidíssimo, uma
mesinha dessas de bar-de-calçada, já com toalha e tudo. Aliás,
para ser honesto, não lembro se havia toalha.
Antes
de qualquer função porém, Sávio, o estudante, disse que
queria dar um testemunho sobre a estranha "viagem"
que o Coronel fizera, de jumento, em torno de uma árvore.
Contou que um dia o pai o levara, ainda muito pequeno, para um
passeio na linha Sul, de trem, até Quixeramobim.
Alguns
protestos por conta da interrupção, mas não era eu apenas
que estava curioso para saber o que Sávio, o estudante, teria
"visto". Acenei que sim.
Ele
contou que na curva do "S", na subida da serra de
Baturité, quando menos se deu conta, o carro em que iam, o último da composição da antiga RVC, quase pegou a
máquina do trem, assim tão de perto que lhe deu vontade de
esticar a mão pela janela para segurá-la. Aliás, até
esticou não só a mão, mas o corpo inteiro, e que nem sabe
como não caiu lá embaixo, no abismo, salvo que foi pelo pai
que lhe agarrou, ligeiro, as pernas. E, susto maior, a
locomotiva, imediato, "mudou-se" para o outro lado. E
tudo aquilo que estava à sua esquerda mudou-se para a
direita. Disse que fez carreira para também mudar-se à outra
janela, mas o pai, assustado, o segurou pela mão.
Contou
que reparou no semblante do pai enquanto este o segurava.
Disse que o pai lhe pareceu por demais enlevado com vagão
deles pega-não-pega a locomotiva que ia lá na frente,
polmando fumaça, na subida, nas curvas.
—
Agora eu sei, meus amigos, como é esta "vertigem"!
— disse Sávio, o estudante, com redobrado fervor, tanto
pela história em si mesma como também pela lembrança do pai
— o melhor pai do mundo! — como ele costuma dizer, já se
benzendo e levantando a mão direita aos céus não sei
quantas vezes.
A
súbita emoção de Sávio, o Estudante, parece que despertou
em cada um de nós algo semelhante para contar. Até os cegos,
os surdos, os mudos, os coxos e os aleijados teriam, cada
qual, a sua respectiva "viagem". A minha? Não.
Não!
Desculpem-me.
Os
trabalhos foram então retomados em direção à mesinha de
ferro que o senhor Piloto acabara de armar.
Rapidamente,
a senhora mãe do Coronel achegou-se à “tenda” recém-armada.
Confirmou-a em ordem, e desculpou-se:
—
Falha minha, senhor Bibliotecário! Meu filho não avisou...
As frutas do quadro mostrado há pouco, desse tal Rugendas,
estavam aqui mas não havia mesa para servi-las...
Eu
disse que sim. Maldade minha porém, tenho que ela as mandou
buscar pelo Piloto, ligeiríssimo, já sabemos de suas
velocidades. Bom, de uma forma ou de outra, se as frutas
estavam em sua indecifrável bolsa de palha de carnaúba ou se
o Piloto as pegou, nenhuma diferença, porque todos fomos
servidos, e bem, com destaque ao monge cego, Jorge, do Sancto
Officio.
O
monge ficou muito admirado com o mamão. E com os seus
respectivos doces: o branco, de só-açúcar, que pode ser com
ou sem coco; o escuro, bem mais saboroso, opinião quase unânime
na sala, com rapadura ou mascavo (no lugar do açúcar), coco, cravo-da-índia,
raspas de casca de limão e fragmentos de cascas cristalizadas
de laranja.
Grande
admiração também aos tomates, que só foram introduzidos na
região do mosteiro do senhor monge alguns séculos depois. A mãe do
Coronel os garantiu saudabilíssimos para a próstata, um tal
licopeno pelo meio. E, surpresa minha, os tomates também
foram servidos em compota. Doce de tomate, quem já viu!? A
madrinha afirmou que é facílimo de fazer. E, no ato, passou
a receita:
—
Pegar uns tomates não excessivamente maduros, metê-los na
cuscuzeira de vapor para lhes retirar a película. Pode
fazer também sem retirá-la, mas é melhor retirar porque o tomate é uma das hortaliças mais
maltratadas com o veneno de combater insetos. Preparar uma calda de açúcar,
cravo e um fio de mel. Não dispensar a raspa de casca de
limão nem os fragmentos de casca de laranja secos ao sol.
Adicionar os tomates inteiros, com ou sem sementes, tanto faz.
Dar o ponto, evitando que fique rala a calda. Botar para
esfriar e gelar numa bela compoteira ou até mesmo numa
tigela. Servir no estilo e arrebatar o elogio. E se botar
dentro uma bola de sorvete de baunilha?! Melhor nem botar, frei
Jorge, se não a visita retornará todas as noites. É prejuízo
garantido!
Ah,
ia-me esquecendo: o doce de mamão, tem que ser com a fruta
ainda verde, cortada em tirinhas bem finas — assim instruiu
a tal madrinha-preta. Pode usar o cortador de cenoura. Bom,
depois desse pequeno ensaio gastro-culinário, o monge bem
mais calmo, pediu ao senhor Coronel que explicasse melhor a
tal estética de superfície, mas advertiu que o Sancto
Officio seria impiedoso com blasfêmias e desrespeito aos
santos da Igreja, única e verdadeira, segundo ele, a de Roma.
Contudo,
a curiosidade maior era mesmo a minha. Pedi licença e
interrompi:
—
Coronel, por favor, qual é mesmo a mágica do delicioso
bolo-só-casca?
—
Ora, meu caro Djalma, é muito fácil! Tenha em mente que o
sabor do pão e do bolo é dado pela área exposta à fonte de
calor. A rigor, saboreamos a “quantidade de fogo” de que
se impregnou o produto, nem de mais, nem de menos... Não há quem consiga comer a massa crua...
—
?
—Veja,
uma rede de dormir estendida ao sol, para secar, bem espalhada, quanto
mais espalhada, melhor. Contudo, você pode secar a mesma rede
na sombra do vento, dentro de casa ou na secadora elétrica.
Mas quem disse?! Sabor de sol, cheiro de sol, gosto de sol e
saúde de sol, só se a rede estiver muito bem esticada no
caramanchão de sol. Pode até ser no lajedo, que grandes
lajedos para secar redes é o que não falta por lá, no sertão...
—
?
—
Agora experimente embolotar uma roupa para secar. Por mais bem
lavada que tenha sido, ficará fedendo! É uma questão de
fonte, seja do calor, seja do frescor
da noite, no caso da água de beber...
—
Cuidado, senhor Coronel! Não me venha com as “artes” da
noite! Isto começa a perigar feitiçarias.
—
Não, frei Jorge! Veja, por seu favor, uma questão de emanação...
Como diria o filósofo que andava pra lá e pra cá na sala de
aula...
—
Aristóteles — gritou alguém.
—
Sim, ele mesmo! O primeiro motor... Qual, meus amigos, o
primeiro motor do assado? É o fogo, é claro! Qual o primeiro
motor da rede cheirosa? É o sol-quente. Logo, se você
aumenta a área de exposição ao fogo, ao sol... Rudimentar,
meu caro Watson!
—
Elementar, Coronel! — corrigiu alguém, mas ele nem se
tocou.
—
Tem um porém, senhor Bibliotecário! Cada fogo é um fogo
diferente! Nem pense que assar bolos no forno de gás é a
mesma coisa que assá-los no “joão-de-barro”.
Churrasqueira elétrica? Só se for para passar mal! Tem que
ser na brasa de lenha seca. Se a lenha ou o carvão for de
sabiá, uma madeira de aroma culinário, o elogio será em dobro. Todo
mundo sabe que se o fogo for feito no barro será muito
proveitoso. Tanto melhor se diretamente no chão. Ah!, senhor
Djalma, prepare-se para comer além da conta!
—
Aroma culinário, senhor?
—
Sim! Cada madeira, em seu respectivo fogo, tem suas
características, de temperatura também. As brasas da aroeira
e do angico são muito mais quentes do que quaisquer outras.
É impossível assar carnes com troncos de coqueiro. Nem do
caule do mandacaru se extrai madeira aproveitável para lenha
e carvão. Não é apenas a quantidade de calorias. Um
termômetro apenas para conferir o fogo não é
suficiente...
—
Sim, Coronel. E o bolo-só-casca, qual a mágica?
— Bastou ampliar a área em contato com a fonte de emanação...
moldando a massa do bolo em tiras bem finas, redesenhando a
assadeira numa espiral necessariamente destra senão adoeceríamos
todos. No pão não foi diferente: uma pequena bolota, de modo
que, por quilograma de massa, tivéssemos uma maior área de
contato com a fonte do sabor, o braseiro do forno.
—
?
—
Veja, meu caro Djalma, aqueles furinhos aparentemente inúteis
nas bolachas e biscoitos, para quê? Ora, ora, aqueles furos todos são “área de assar”! No mesmo propósito,
aqueles desenhos de superfície que todo biscoito de qualidade
tem, relevos, sulcos e socavões.
Para quê? Para produzir maior contato com a fonte de emanação, o fogo,
o sabor. O fabricante
coloca o nome nos biscoitos, em relevo, alto ou baixo, tanto
faz. Divulga a marca e os assa melhor!
—
Coronel, o senhor me desculpe, mas ainda não consegui
entender o que essa sua culinária provaria no campo da
estética!
— interferiu o
professor Pedro César, mas cá para nós, sem demonstrar
convicção mais firme. Foi um dos que mais comeram.
Veja,
senhor professor, a beleza de um desenho de Da Vinci não está
no intrínseco da tela... Por favor, pegue este prospecto.
[Era um dos cartazes de turismo das ilhas onde se refugiara,
num tempo distante, aquele príncipe denunciado pelo irmão]. Peça, por favor, a
lente do Historiador. Repare agora: a imagem se compõe de múltiplos
pontinhos... Só superfície, só silêncios...
—?
De
fato, professor, a Arte se compõe mesmo é de ausências... De três
únicas cores, o vermelho, o amarelo e o azul que os
fabricantes de cartuchos de tinta para impressora chamam magenta,
yellow e cian.
Mas não será misturando as tintas num tinteiro que se vai
obter o matiz desejado... É “misturando”, sim, as três
cores... uma se ausentando das outras, de modo que cada uma
reflita uma pequena ligação na seguinte e vice-versa, em
rede... em web... em pensamento... Na cabeça do pintor... Só silêncios!
—
Em... em sinapse...?
—
Isto
mesmo, senhor professor! Da mesma forma, num prato qualquer, o
sabor verdadeiro é apenas uma alternância do
salgado, do doce, do azedo e do amargo, cada um se ausentando
do outro...
—?
—
Também na música, com maior destaque na música, onde há
muito mais silêncios do que barulhos. E na fala, senhor
professor!
—
Na fala, Coronel? — indaguei, assombrado porque nunca me
ocorreu alguém possa falar em silêncio, a não ser os mudos,
pela linguagem dos sinais.
—
Sim, meu caro Djalma, na fala também. Sobretudo na fala. Veja nesta
pequena frase que você terminou de pronunciar: «na fala,
Coronel?», há toda uma perfeita alternância de som e silêncio.
Uma escala de sons e respectivas pausas... Diziam os antigos
que na natureza não existe o vácuo... Meu ponto de vista é
outro: não existe o contínuo. Tudo é casca, tudo é
superfície. Veja [Então o Coronel pronunciou a frase muito pausadamente,
acentuando cada ênfase com a mão, sílaba a sílaba]: Na- -fá-
-la-
- -Có- -ro- -né