Soares
Feitosa
Sobre
as mãos
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- Sobre as mãos
O
Coronel falou sobre as mãos. Direcioná-las aos punhos de uma
rede, não para armar uma forca, mas a desmanchá-los e refazê-los
novos, quando rotos, no dia de alguma grande chateação.
Confirmou
que o processo mais eficiente para aplacar a tempestade
interior é com as mãos, justamente elas, disponíveis porque
do lado de fora do compasso, tal qual nos desenhos que há
pouco nos mostrara. Serrar madeira para fazer uma porta,
consertar um ventilador. Ou até mesmo bater um ovo. Isto
mesmo! Comentou que haveríamos de abordar também a técnica
de bater ovos, com as mãos, de prato e garfo, no momento em que
fôssemos discutir a didática.
Didática?
Seria ele também professor além de eletricista de
ventiladores e tecelão de punhos de rede, como acabou de
afirmar? Tenho todo o direito de pensar que este relato maluco
e respectiva reunião da Biblioteca “viajam” em espiral, a
cena seguinte ganhando complexidade sobre a anterior. Vejam,
neste lance das mãos, lembrei-me imediatamente da história
do Coronel adolescente, na casa do padre, partindo para uma
bomba de puxar água, possesso, louco, dizendo à beata que ia
passando que estrangulava o rival com uma mão e com a outra
alisava o lombo de uma novilha gorducha; desculpem, de uma
noviça, quando, real, apenas puxava água em grande fúria,
em tempo de rebentar os encanamentos e secar a cisterna da
casa paroquial.
Seriam
aquelas mesmas mãos de pura fúria de então que ele dizia
agora capazes de mostrar o caminho de errar ao descaminho?
Antes mesmo que eu formulasse a pergunta, ele já veio com a
resposta:
—
Sim, meu caro Djalma, elas mesmas! Temos que “amarrá-las”!
E, para isso, nada mais proveitoso do que botá-las a
trabalhar. À caixa de ferramentas, meu caro Bibliotecário!
Toda casa tem uma caixa de ferramentas! Talvez aqui mesmo em
sua cela tenha uma. [Tem, é claro, das ferramentas de
restaurar as velhas revistas e reencadernar algum livro mais
precioso]. E mais falou:
—
Derramar tudo no chão, em cima de um jornal. Limpar todos os
parafusos, catalogá-los pelo tamanho em vidros vazios, desses
de azeitona ou palmito. Botar rótulo em cada um, bem
legível, coberto com fita gomada transparente para sujar
depois. Azeitar o
mandril da furadeira. Amolar as brocas, lubrificá-las e guardá-las
em papel manteiga, devidamente catalogadas, embrulhando a
maior com uma volta completa do papel, melhor com duas voltas;
depois a seguinte com mais duas voltas, e assim
sucessivamente, sempre da maior para a menor.
E,
tomando-se de um novo fôlego, concluiu:
—
Pronto, senhor Bibliotecário! Levantar-se do chão! Nesse
contato com a terra, justamente pelo lado correto do Compasso
da Terra, com a bunda diretamente enfiada no chão — e as mãos
em boa porfia! — quando menos você se der conta, terá
“matado” todos os inimigos. Em paz. Pacificado. Um banho
frio, uma espiga de milho assado. Um bom pedaço de queijo de
coalho com rapadura do Cariri. Um copo d’água gelada. E café!
E se tiver tapioca, tanto melhor que seja com tapioca e
manteiga da terra. E a rede! É evidente que a rede, agora de
punhos novos, já deve estar armada para receber um corpo
inteiramente combalido depois de luta tão severa: a luta
consigo mesmo, da parte alta, as mãos; com a parte baixa, a
serpente.
Foi
o suficiente para me ocorrer um pensamento cruel: seriam
aquelas mãos, isto mesmo, as mãos do senhor Coronel, quando
enfiadas na bagaceira da gaiola quebrada pela mãe... Teria
sido aquele ato de enfiá-las, mãos, em novo labor, sentado
no chão, à luz de uma lamparina, reconstruindo a gaiola,
fazendo o alçapão, que o livrou, ainda menino, de estrangulá-la?
Não
me atrevi ao comentário. Nem a olhar para ela. Nem para ele.
Apenas olhei para o judeu do cavanhaque, que alisava as dele,
mãos, e com elas tentava enrolar uma cigarrilha. Enrolou e
enrolou, mas desistiu, ainda bem, de fumá-la. Perguntei:
—
Coronel, o senhor me desculpe, mas o Professor sem
braços não tem mãos...!
—
Claro que tem, meu caro Djalma! Embora não as tenha porque as
perdeu para a gangrena, mas as mãos, ainda que aleijadas pela
talidomida, só os botões no alto do ombro, sempre estarão
presentes no homem, senão pelo físico, hão de estar pelos
olhos, pelos pés, pela boca... Você já viu, meu claro
Bibliotecário, como é que Professor sem braços pega num
copo d’água para beber? Claro que é como qualquer um de nós...
Com os dentes! Ele morde o copo e bebe a aguinha dele sem
derramar um trisco! Sim, só as mãos é que são algo
irremissível! O Homem, o Homo Faber, de pura luz...
As nossas mãos... Em busca do rosto do outro, que
quanto mais distante, mais legítimo. Não! Não há desastre
que nos rompa as mãos! — e concluiu:
—
O senhor quer violência? Saia por aí, com elas, mãos,
gesticulando, esbravejando, bradando e brotando. É
morte certa, de matar ou morrer.
—
E os algemados, Coronel, como ficam os algemados?
—
É soltá-los imediatamente! Todo aquele que tiver sido
condenado com base em depoimento sob algemas, tem o direito à
imediata liberdade!
Não
preciso contar o tamanho da salva de palmas ao senhor Coronel,
afinal de contas isto aqui é um presídio. Ele disse:
—
Vejam, meus amigos, se o cidadão for culpado, o seu aspecto
aterrorizado e aterrorizante — pelas algemas — induzirá a
“mais culpado”, um agravante à margem da lei. Se for
inocente, as algemas lhe desfigurarão a face. Em qualquer
caso, inocente ou culpado, as algemas, sobretudo na hora de se
entrevistar com a autoridade, são um absurdo.
—
E o camburão, Coronel?
—
Veja, meu caro Djalma, a lei de trânsito determina que ninguém
pode viajar no espaço da bagagem. Muito menos que não esteja
sentado e com o cinto de segurança devidamente afivelado.
Ora, se o preso vai conduzido a granel, igual a porco e bode,
no vão da bagagem, é claro que não estão zelando nem um
pouco por sua integridade. Como se dissessem: se morrer, um a
menos!
Marton,
meu segundo auxiliar de bibliotecário, sugeriu que seria razoável
verificar se haveria alguma viatura transportando alguém a
granel, ali, naquela hora. Claro que havia! Era meu compadre
Manoel Severino de Souza, libertado recentemente, e preso logo
depois, quando tomava, de assalto, um televisor de uma farmácia
na Vila Matilde.
Manoel
ficou muito encabulado em retornar assim tão ligeiro e
encontrar a prisão sob aquela aparente festa que era a reunião
da BIblioteca. O Coronel deu ordem que o soltassem
daquele chiqueirinho dito camburão. Soltaram-no sem discutir
—
Uma falha do sistema previdenciário! — disse o Coronel.
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