Soares
Feitosa
A prova do
fogo
Mal
o comerciante sumiu, levando consigo o tal cronômetro de
piscinas — que "arma" mais esquisita, meu Deus!
—, o professor Pedro César não se dando por satisfeito:
—
Exijo, senhor bibliotecário Djalma, em nome da Biblioteca,
que o senhor Coronel justifique porque, afinal, a arma de fogo
seria uma coisa maldita.
[Talvez
a nova "arma" funcione! Ora, segundo o Coronel,
basta dominar as mãos na hora do caos. Portanto, se o cidadão
estiver ali, entretido, demarcando, no tal cronômetro, a
"vastidão" do tempo que vai do intuito à ação,
quem sabe, por isto mesmo, dominado o tempo, funcione. Acho
que vou pedir um ao Coronel]
—
Meu caro senhor professor Pedro César — retorquiu o Coronel
—, qual o critério para julgar o bem ou o mal; o bendito e
o maldito?
[Do
intuito à ação? — intuitação? Seria isto aquela
ânsia, a compulsão que nos domina no limiar do mal? O
Coronel teria dito, assim contou o comerciante, que mão e mãe
seriam a mesma coisa!? Parece que o tal cronômetro de
piscinas deve funcionar! A mão, isto mesmo, a mão! Espero
que ele não me negue o presente. E, é claro, de modelo
igualzinho ao do comerciante]
O
professor respondeu que o único critério legítimo seria a
Lei. Falou num tal Kelsen, Hans Helsen. Disse que se o
procedimento estiver na Lei, será legítimo. Se não estiver,
também será válido, porque tudo aquilo que não estiver
proibido será permitido, de modo que o mal haverá de ser
estritamente aquilo que for proibido pela Lei, e ponto final.
[Nem
sei porque, mas enquanto teimavam ambos, professor Pedro César
e Coronel, me veio à idéia a tremenda desproporção entre
aquele tempo "cronometrável", aterrador... Esganar
um menino teimoso, sopapeá-lo até parar de respirar, ele...
Esfaquear a amante até a última gota de sangue... Um “latro”,
de uma fornida paulada bem na cabeça de quem, descuidado,
esteja a dormir em cima de uma bolsa de dinheiro... ou apenas
por uma jaqueta, um boné ou um par de tênis... Milímetros
de segundos..., se é que segundos têm milímetros. Um tempo
assim, tão estreito, a comparar com o doloso do 121 — trint’anos,
mais os agravantes torpes! Trocar esta vastidão de noites,
aqui, por alguns milímetros do não-recuar... Pior, jogar nas
costas, para dormir e assustar, assustar e dormir, ainda que a
custa de remédios, todo o resto de tempo possível! Ah! meu
Deus, já não seriam suficientes, dia e noite os sustos
interiores, para nos aparecer agora esse Coronel com suas
estranhas histórias do sertão?! Afinal, funcionaria ou não,
de verdade, o tal cronômetro de piscinas?]
O
Coronel rebateu que a maneira mais fácil de determinar se a
lei seria legitimamente legítima é mediante uma simples
pergunta: «Em prol do Homem?» Se a resposta for positiva, a
lei tem tudo para ser legítima. Se a resposta for um "Não,
pelo contrário", a lei será ilegítima. Portanto, um
artefato destinado estritamente a matar o Homem, será todo o
tempo e por todo o tempo absolutamente ilegítimo. Logo, nada
mais ilegítimo do que a arma de fogo. E completou:
—
Fogo?! Acaso o revólver serve para acender o fogo, senhor
professor? Claro que não! Legítimo é um pau de fósforo que
serve para acender o fogo a nos aprontar um café. Anote aí,
por seu favor: um palito de fósforo também serve para
incendiar uma pastagem invadida ou tocar fogo nas macegas
paraguaias repletas de crianças disfarçadas de guerreiros,
ardendo, gritando, queimando, torrando... Serve para desalojar
posseiros renitentes de dentro de uma favela, ou desmanchar
uma invasão sem-teto. Mas a finalidade primária do fósforo
é o bem! Para acender de manhã bem cedo o fogo para um
gomoso ao inocente ou preparar o almoço do pai a comandar a
mesa da sala de jantar... Porque tudo no mundo, meus amigos,
tem uma finalidade primária, inclusive o Homem! — disse e
se benzeu.
Estranho,
ainda não reparara no Coronel se benzendo, mas desta vez,
quando falou na mesa do pai — que pai?, se ele não teve
pai!—, benzeu-se.
Finalidade
primária? O monge cego aproveitou para dizer que a única
finalidade primária de todas as coisas vivas e inanimadas
seria a glória dos caminhos de Nosso Senhor Jesus Cristo e da
Santa Madre Igreja.
O
Coronel protestou:
—
O único caminho possível ao Homem, meu caro monge Jorge, é
o Outro.
[Agora,
o idiota daquele matuto vendendo os bois, as vacas e os bodes
para sustentar as castanhas e o uísque do
Coronel e toda uma máfia de polícias, escrivães, políticos
e macumbeiros. Uns urubus!, presentes em todos os processos,
quando não, muito pior, juízes, seus filhos e amantes. Por
que aquele fela-da-puta não esperou?! Uma topada que lhe
arrancasse a unha do dedão, no batente do terreiro!? E se a
camionete tivesse estourado um pneu, a tempo de o cabra ter-se
levantado dos macios lençóis de dona Vera, que Deus a tenha,
e saído calmamente pela porta da cozinha afora, tomando um
café com queijo de coalho e um cuscuz com leite antes de se
despedir, sem aquele tiroteio do matuto pelas costas?!]
Foi
um pega terrível. A mãe do Coronel abriu a famosa bolsa de
palha de carnaúba, sacou o vidrinho de água benta e jogou
uns pingos grossos no filho, mas ele continuou blasfemando:
—
Deus, meu caro monge?! O único caminho a achá-Lo é através
do Outro e nenhum outro.
Ainda
bem que o professor conseguiu desviar o assunto. Contou que
ficara pensando sobre aquele suposto fogo, aceso dia e noite,
inicialmente no navio negreiro; depois, dentro das senzalas e
até mesmo na casa grande do Coronel. Comentou que só poderia
ser lorota, porque nas aulas do Historiador, ali presente, no
cursinho do pré-vestibular, nunca se falou em fogo algum.
Muitos
protestaram porque esse assunto que o Coronel acabara de
comentar, uma finalidade primária, boa ou má para as coisas,
inclusive o caminho para chegar a Deus através do Outro —
outro Deus?
— pareceu-lhes por demais interessante.
[Haveria
um "começo", um ponto inicial no caminho do
sem-volta? Naquele primeiro bofete, antes daqueles mais outros
muitos, na criança pequena, até lhe esmagar o baço, os
rins, o crânio? Ainda lá longe, na formação daquele
esturro primitivo, da primeira fúria, teria o mal ali um...
Um retorno aceitável? Antes mesmo que as mãos se explodissem
no puro soco, no rosto, no estômago, na carótida, onde mais
que fosse, poderia ter-se explicado em si mesmas, mãos,
digamos, apenas num sacolejo, num quase-puxão inofensivo?]
O
Coronel disse que iria resolver de uma vez por todas a pendência,
no que meteu a mão no bolso e puxou uma gravura feita por um
tal Rugendas, um especialista em pintar paisagens negras no
Brasil. Foram distribuídas cópias em papel aos presentes,
mas o Coronel, ele mesmo distribuiu a cada um dos cegos um
"exemplar" em sola, em relevo. Sim, o Coronel
confirmou que os fizera com aquelas mesmas
"ferramentas", inclusos os espinhos da seca curtidos
no sal e no sol, que utilizara no "fabrico" dos tais
compassos de ainda há pouco.
Jorge,
o escritor, disse que conhecia o quadro do Rugendas, Uma
casa de escravos. Apalpou-o detidamente, no que foi
acompanhado pelos outros cegos, como se eles, só ao tacto,
enxergassem-no perfeitamente.
O
professor Pedro César disse que aquele quadro esquisito, um
monte de negros bastante "folgados", junto da mansão
senhorial, não provava coisa alguma. Olhamos, então, tudo
atentamente.
A
jovenzinha das anotações confirmou que a paisagem era muito
bonita e perguntou se aquele jovem no canto superior esquerdo
da gravura, na varanda da bela casa, por trás do casebre,
seria o Coronel.
Ele
disse que talvez sim. Certamente seria ele ou qualquer outro
coronel, com certeza um coronel aprendiz. Comentou que tanto
fazia, porque isto, de coronéis e capitães, era a mesma
coisa. Apontou o escravo do centro da gravura:
—
É mestre Raimundo, um negro da escolha do Capitão, trazido
d’África, ainda menino. É o meu melhor tangerino, das
boiadas dos Inhamuns até às oficinas de charquear em
Aracati, lá no Ceará. Vejam como os pés dele estão
estropiados. Ah! negro disposto, verdadeira fera de tanger
boi! Reparem, ele acende o cachimbo num tição de fogo. Do
fogo da casa... Pronto, senhor professor Pedro César, está
aqui a prova!
O
Historiador puxou uma lente para ver melhor:
—
Sim, professor, desta vez o Coronel está certo.
Não
me contive e interrompi a demonstração:
—
Coronel, seria possível conseguir um cronômetro de piscinas,
desses do comerciante, para... para mi...
—
Sim, meu caro Djalma, ei-lo. É o seu!
Ele
meteu a mão no bolso, sequer eu conseguira terminar a frase,
e puxou um, novinho em folha, em embalagem para presente, e mo
entregou.
Não
consigo lhes contar, meu caro leitor e minha distinta leitora,
de que tanto tremeram minhas mãos na hora de receber. Premi o
botão de marcar. Um brilho rápido acendeu-se. Um
ponteiro-numeral, de uma luz verde de vaga-lume, que eu nunca
vira antes, iniciou-se em súbita carreira não sei para onde,
nem de que muito. Respirei fundo. As mãos baixaram de tremer. |