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                   Soares 
                  Feitosa  
                   
                   
                  Ninguém no chiqueirino   
                  e a estranha história do
                  novilho  
                      
                  Interpelei
                  o senhor Coronel sobre a idéia da previdência para os
                  presos. Ele foi categórico:
                  
                   
                   —
                  É evidente, meu caro Djalma! Veja o caso de seu compadre
                  Manoel. Ele saiu daqui, não é de todo absurdo presumir, com
                  os melhores planos. Quem disse que arrumou nada?! Aqui, por
                  pior que fosse o ambiente, o pirão estava garantido, mas lá
                  fora, para alguém sem antecedentes, quem lhe abrigaria um
                  emprego?! Muito justo que a previdência o ampare. Se tiver
                  que delinqüir, pelo menos não há de alegar a extrema
                  necessidade. Todo mundo sabe que mínima panela no fogo é
                  fundamental à dignidade!
                  
                   
                  Alguém
                  leu no Jornal do Crime, que circula com várias edições
                  diárias, inclusive a da noite, que Manoel, mal saído daqui,
                  apenas com uns trocados, depois de rodar Ceca e Meca, todos
                  fugindo dele, inclusive parentes e compadres, como o demônio
                  foge das alpercatas de São Francisco do Canindé — história
                  que ouvi do senhor Capitão, mas até desconfio que o Coisa-ruim
                  nem tenha esses medos todos de chinelas, aliás, suspeito que
                  não tenha medo de coisa alguma. Pois bem, Manoel partiu para
                  assaltar uma farmácia, mas o caixa, depenado por um grupo de
                  meninos-de-rua há pouco tempo, dinheiro zero. 
                  
                   
                  Uns
                  comprimidos de isordil ou alguma pomada contra urticária?
                  Para quê? Nem sofre do coração, muito menos da pele, esse 
                  Manoel, um dos que mais praticam esportes, aqui. Os óculos
                  do senhor farmacêutico? Também não; Manoel tem excelente
                  vista, tanto de perto, como de longe. O quê, então?
                  
                   
                  —
                  Passe-me para cá este televisor! — teria dito Manoel ao
                  farmacêutico, apontando-lhe uma pistola de brinquedo que o
                  assaltado nem discutiu se seria de verdade ou de mentira.
                  
                   
                  Botou
                  o produto debaixo do braço — um televisor do tempo
                  do preto e branco, em o farmacêutico ouvia o
                  noticiário, de imagem tremida. Pegou o primeiro ônibus que ia passando. Nem
                  dez minutos se passaram, a patrulha já o agarrava com tv e
                  tudo. 
                  
                   
                  Ainda
                  quiseram ensaiar uma vaia sobre a liseira, leseira, de meu
                  compadre Manoel, mas o Coronel protestou. Mesmo assim
                  comentaram que Manoel era um zonzo. Meter-se a assaltar um pé-de-farmácia
                  lá num cafundó-de-Judas. Pior: a pé — coisa de pobre —
                  e sozinho. Disseram que se ele pertencesse ao Comando Feroz
                  não teria passado por semelhante humilhação.
                  
                   
                  Comando
                  Feroz!
                  Isto apenas me veio reforçar a idéia de que uma mesma idéia
                  comporta sempre várias idéias, contra e a favor, uma dentro
                  da outra, cada qual a mais absurda. Ou mais verdadeira. 
                  
                   
                  Felizmente
                  o Coronel reassumiu o comando do assunto e,
                  para assombro geral, redigiu ali mesmo, em cima da
                  perna, uma Medida Provisória garantindo o sistema previdenciário
                  ao apenado, de modo que, quando solto, não se lhe torne
                  impossível, pela miséria, o caminho de volta. Nem quando
                  preso, tenha a esposa e as filhas, a mãe inclusa, que se
                  prostituírem para se manterem.
                  
                   
                  Agora,
                  se o príncipe vai cumprir ou não a tal Medida Provisória
                  — ah! Coronel raçudo de uma figa! —, isto veremos amanhã,
                  depois de inaugurada a Biblioteca. Nem preciso
                  mencionar que o senhor monge cego afirmou que estava
                  assistindo a um grande absurdo: premiar criminosos com uma
                  aposentadoria. 
                  
                   
                  —
                  Por favor, o senhor está aposentado? Que profissão exercia?
                  Criminoso? Meus parabéns! — zombou, soturno, o monge. 
                  
                   
                  Ninguém
                  comentou. A mão do Coronel benzeu-se, assombrada. Confesso
                  que também me assustei, mas pensando direitinho, talvez o
                  Coronel tenha razão. Se existir alguma coisa válida — e
                  barata! — para recuperar, taí uma, a Medida Provisória
                  baixada pelo Coronel.
                  
                   
                  Alguém
                  gritou que havia muita gente que nunca havia roubado sequer
                  uma galinha, um bode, um cabresto ou um chocalho. Como
                  justificar que não tenha pensão enquanto que quem roubou e
                  matou passaria a tê-la? Uma injustiça!, disse.
                  
                   
                  O
                  Profeta, aliás, nosso Filósofo Sertanejo, dito Camundo —
                  confesso-lhe que até já estava com saudade de suas
                  presepadas —, comentou que a solução do problema estava no
                  grau do novilho.
                  
                   
                  —
                  Isto mesmo, senhor Profeta! Então, se o ladrão roubar apenas
                  bezerros, nunca ultrapassando o grau de novilho, é que será
                  aposentado, não é mesmo?! Por favor, roubem apenas de
                  novilho para baixo!, gritou, de zombaria, o monge cego. 
                  
                   
                  —
                  Não, meu caro monge. Refiro-me ao novilho do Cristo.
                  
                   
                  —
                  Alto lá, senhor Profeta! O Cristo nunca foi fazendeiro!
                  
                   
                  De
                  fato, de minhas poucas leituras, nunca soube que o Cristo
                  tenha sido fazendeiro, dono de bois ou garrotes. Claro que
                  houve protestos contra o Profeta. Choveram bíblias em minha
                  modesta sala. Cada um mais bravo que o outro a exigir que o
                  Profeta
                  demonstrasse no livro sagrado que o Cristo possuíra rebanhos,
                  boiadas, garrotes ou novilhos.
                  
                   
                  —
                  Não, meus amigos, o Cristo está inocente dessa confusão.
                  Ele não possuía novilho algum, bicho nenhum, tanto que no
                  Domingo de Ramos teve que desfilar numa jumenta emprestada,
                  sequer um cavalo conseguiu. O novilho que mencionei é aquele
                  outro, o cevado, do filho mau! — E, concluiu:
                  
                   
                  —
                  Vejam, o Cristo disse aos servos: «Matem o boi cevado». Não
                  mandou matar um boi qualquer, mas o novilho, aquele, ímpar e
                  único, definido e especial — o cevado —, que, apartado
                  dos outros bovinos, se destinava a festejar a visita do rei ou
                  de um príncipe poderoso, quem sabe, até do senhor
                  Procurador, Pôncio Pilatos. Dizem os mais sábios que aquele
                  novilho — o novilho cevado! — quem dele tratava, especialíssimo,
                  era justamente o filho-bom e, por isto mesmo, nenhum empregado
                  lhe punha sequer os olhos.
                  
                   
                  —
                  O quê, senhor Profeta? Já ouvi falar nessa história...! Então,
                  a afronta do pai contra o filho honesto foi muito maior! Quer
                  dizer que não era um garrote qualquer...? — eu mesmo falei,
                  não me contendo no susto.
                  
                   
                  O
                  professor Pedro César exigiu passar o assunto a limpo a
                  partir de uma boa tradução da Bíblia, consultando, se fosse
                  o caso, o original grego. 
                  
                   
                  Surgiu,
                  como é normal nesses assuntos religiosos, uma intensa balbúrdia,
                  cada um querendo impor a sua versão. Deliberamos, depois de
                  grande peleja verbal, que só seriam válidas, ou melhor,
                  aceitas, ali, três traduções, além do original grego. 
                  
                   
                  Não,
                  ninguém encontrou o original grego, de modo que as traduções
                  seriam a Vulgata, em latim; a Bíblia Inglesa, do Rei James e
                  a tradução portuguesa de João Ferreira de Almeida. E, como
                  abonação final, conferir-se-ia tudo com a Bíblia de Jerusalém.
                  
                   
                  Quem
                  disse que deu tempo?! A senhora mãe do Coronel, desconfio,
                  enquanto discutíamos qual a melhor versão, abriu a indefectível
                  bolsa de palha de carnaúba e decorou rapidamente o texto do
                  novilho. Falo isto de pura maldade, porque, a rigor, ninguém
                  a viu abrir bolsa alguma. É de estarrecer que ela soubesse ou
                  ainda saiba tudo aquilo de cor e salteado! Ah! mulher terrível!
                  O fato é que ela sapecou em plena sala a versão da Bíblia
                  de Jerusalém, sem fazer ouvidos aos protestos dos evangélicos
                  que queriam a leitura pela versão revisada de João Ferreira
                  de Almeida, da Sociedade Bíblica Brasileira. 
                  
                   
                  Ainda
                  bem que o senhor Coronel nos tranqüIlizou a todos que o
                  problema seria nenhum, posto que todas as versões se
                  equivaliam. No ato, a mãe dele recitou, sem vacilar: 
                    
                  
                    
                      
                        | 
                           Lucas,
                          capítulo 15, a partir de versículo 11: Jesus
                          disse ainda: “Um homem tinha dois filhos. 12O
                          mais jovem disse ao pai: «Pai, dá-me a parte da
                          herança que me cabe». E o pai dividiu a herança
                          entre eles. 13Poucos
                          dias depois, ajuntando todos os seus haveres, o filho
                          mais novo partiu para uma região longínqua e ali
                          dissipou sua herança numa vida devassa. 14E
                          gastou tudo. Sobreveio àquela região uma grande fome
                          e ele começou a passar privações. 15Foi,
                          então, empregar-se com um dos homens daquela região,
                          que o mandou para seus campos a fim de cuidar dos
                          porcos. 16Ele
                          queria matar a fome com as bolotas que os porcos
                          comiam, mas ninguém lhas dava. 17E
                          caindo em si, disse: Quantos empregados de meu pai têm
                          pão com fartura, e eu aqui, morrendo de fome!
                          18Vou-me
                          embora, procurar meu pai, e lhe direi: Pai, pequei
                          contra o Céu e contra ti; 19já
                          não sou mais digno de ser chamado teu filho. Trata-me
                          como um dos teus empregados. 20Partiu,
                          então, e foi ao encontro de seu pai. 
                          
                           
                          Ele
                          estava ainda longe, quando seu pai viu-o, encheu-se de
                          compaixão, correu e lançou-se-lhe ao pescoço,
                          cobrindo-o de beijos.  21O
                          filho lhe disse: «Pai, pequei contra o Céu e contra
                          ti. Não sou mais digno de ser chamado teu filho». 22Mas
                          o pai disse aos seus servos: «Ide depressa! Tragam a
                          melhor túnica e revesti-o com ela; ponde-lhe um anel
                          no dedo e sandálias nos pés. 23Trazei
                          o novilho cevado e matai-o; comamos e festejemos; 24pois
                          este meu filho estava morto e tornou a viver; estava
                          perdido e foi reencontrado’. E começaram a
                          festejar. 
                          
                           
                          25Seu
                          filho mais velho estava no campo. Quando voltava, já
                          perto de casa ouviu música e danças. 26Chamando
                          um servo, perguntou-lhe o que estava acontecendo. 27Este
                          lhe disse: «É teu irmão que voltou, e teu pai matou
                          o novilho cevado, porque o recuperou com saúde». 28Então
                          ele ficou com muita raiva e não quis entrar. Seu pai
                          saiu para suplicar-lhe. 29Ele
                          porém respondeu ao seu pai: «Há tantos anos que te
                          sirvo e jamais transgredi um só dos teus mandamentos,
                          e nunca me deste um cabrito para eu festejar com os
                          meus amigos. 30Contudo,
                          veio este teu filho, que devorou teus bens com
                          prostitutas, e para ele matas o novilho cevado!’ 
                          
                           
                          31Mas
                          o pai lhe disse: «Meu filho, tu estás sempre comigo,
                          e tudo o que é meu é teu. 32Mas
                          era preciso que festejássemos e nos alegrássemos,
                          pois este seu irmão estava morto e tornou a viver;
                          ele estava perdido e foi reencontrado»”.  | 
                       
                     
                   
                  
                  
                   
                  Justamente
                  nos versículos 23, 27 e 30, a mãe do Coronel carregou toda
                  ênfase em “o” novilho. Até pronunciou o artigo definido
                  com o som aberto: “ó” novilho. No mesmo instante, o monge
                  recitou em latim: «23et
                  adducite vitulum saginatum et occidite et manducemus et
                  epulemur»,
                  no que o Coronel confirmou: adducite vitulum saginatum
                  — isto mesmo, senhor monge Jorge: trazei o vitelo, o novilho
                  cevado! 
                  
                   
                  Apareceu
                  um exemplar da Bíblia Ingesa, do Rei James: «23Bring
                  the fattened calf and kill it. Let’s have a feast and
                  celebrate».
                  O professor
                  Pedro César, um verdadeiro lingüista, traduziu: the
                  fattened calf — o novilho cevado! Também na Bíblia
                  Luterana — parece até que havia um amplo estoque de bíblias
                  estrangeiras na reunião: «23und
                  bringt das gemästete Kalb her und schlachtet es, und laßt
                  uns essen und fröhlich sein!»
                  Mais uma vez o professor Pedro César confirmou: und bringt
                  das gemästete Kalb — o novilho cevado!
                  
                   
                  O
                  ambiente ficou de silêncios. Em meio às reflexões de cada
                  um, a surpresa: o engenheiro, Doutor Fernando. Ah!, meu Deus,
                  vejam só o absurdo que esse senhor aprontou:
                  
                   
                    
                  
                    
                    
                      
                        | 
                           O
                          que digo entre as flores?
                          
                           
                           
                          
                           
                          O
                          resto foi travo e mel; 
                          
                           
                          que
                          não se disse mais nada — 
                          
                           
                          em
                          um 
                          
                           
                          ali:
                          
                          
                           
                          rubro
                          o tempo, as faces. 
                          
                           
                           
                          
                           
                          Seu
                          Francisco — indagou, aflito, 
                          
                           
                          mestre
                          Antônio (vaqueiro) —, 
                          
                          
                           
                          o
                          senhor mandou matar todos os novilhos? 
                          
                           
                          Foi
                          assim mesmo que entendi? 
                          
                           
                          E
                          botar a melhor veste nos caminhos? 
                          
                           
                           
                          
                           
                          Como
                          ficará então esta fazenda, 
                          
                           
                          sem
                          os bois que morrerem? 
                          
                           
                          O
                          que digo entre as flores? 
                          
                           
                          Diga
                          nada não, mestre Antônio:
                          
                           
                          os
                          novilhos ressurgirão da terra, 
                          
                           
                          nos
                          passos largos das minhas sandálias. 
                          
                           
                          E
                          os caminhos ficarão de perfume.
                          
                           
                           
                          
                           
                          Diga
                          nada não, mestre Antônio, 
                          
                           
                          que
                          ela estava morta, 
                          
                           
                          as
                          flores sabem, outra vez, 
                          
                           
                          agora
                          vive.  | 
                       
                     
                    
                   
                  
                  
                   
                  
                  
                   
                   
                  
                   
                  227
                  - Da leitura entramelada
                  
                   
                    
                  Evidente
                  que o senhor monge Jorge protestou. Eu também protestei.
                  Pasmem, até o senhor Coronel protestou! De fato, o que teria
                  a ver um tema tão sublime — o pai em perdões ao filho-mau
                  — com um coronel mulherengo que se surpreende com o retorno
                  de uma de suas amantes?
                  
                   
                  Fiquei
                  em meus botões medindo o tamanho da audácia dessa cantoria
                  do senhor engenheiro, aliás, do senhor Coronel, em que este
                  para se mostrar poderoso, até mais poderoso do que o Cristo,
                  teria mandado matar não apenas um, mas todos os novilhos da
                  fazenda. E pior, em vez de colocar algumas flores no cabelo da
                  mulher que retornava — vá lá que fosse um bem sortido
                  ramalhete de rosas do campo —, mandou os capangas, à frente
                  um certo mestre Antônio, cobrir de flores os caminhos por
                  onde a sujeita haveria de passar. 
                  
                   
                  O
                  senhor Capitão, meu auxiliar de bibliotecário, seria ele o
                  tal "mestre Antônio" da cantoria? Mestre de quê? E
                  a mulher, subitamente retornada, seria ela a monja das
                  melancias? Teria largado o hábito, refugado os votos? Ou,
                  ligeira, viera fugida, esquiva, para uma "tarde na
                  casa-grande", inventando, para a madre superiora, que
                  fora acudir os sem-terra? 
                  
                   
                  E,
                  gravidade das gravidades, teve o senhor Coronel o topete de
                  dizer, na cantoria que o engenheiro recitou, que os novilhos
                  haveriam de renascer dos passos largos de suas chinelas! 
                  
                   
                  Li,
                  num velho livro de mitologia, que um casal de doidos, únicos
                  sobreviventes de um grande dilúvio, saíra na carreira,
                  jogando pedras para trás, e que, de cada uma daquelas
                  pedradas, nascia, se fosse o marido quem rebolasse o seixo, um
                  homem; se a esposa, uma mulher. É uma história completamente
                  diferente da de Adão e Eva. Também nada a ver com a de Noé,
                  mas é parecida, pelo menos quanto ao dilúvio. Ah!
                  lembrei-me: Pirra, a mulher; Deucalião, o marido, ambos
                  disparando pedradas para trás, deixando no rastro a raça dos
                  homens recém-criada.
                  
                   
                  Seria
                  o Coronel tão poderoso a ponto de fazer renascer de suas
                  pisadas os bois que mandou os capangas matar? Espere aí, o
                  Coronel não era açougueiro? Quem sabe, não teria ele
                  misturado, na cantoria, os bois do açougue com o novilho do
                  Cristo!? Audácia, pura audácia e muita "garganta",
                  isto sim. 
                  
                   
                  Contudo,
                  a história daquele pai cometendo uma violência tão grave
                  contra o filho honesto, em prol do malandro, não me saía da
                  cabeça. Não há dúvidas, a "ofensa" contra o
                  filho-bom fora realmente muito maior. Mandar matar justamente
                  aquele novilho, o cevado, especial, exclusivo da visita do
                  rei?! Bem que poderia ter mandado matar um bode, um porco, um
                  peru, meia dúzia de guinés, dez galinhas caipiras, tejuaçus
                  e preás à vontade. 
                  
                   
                  A
                  comilança me faz lembrar as histórias do senhor Capitão,
                  aqui, de noite, no presídio, nalgum intervalo dos poucos
                  livros e muitas revistas velhas a remendar, colecionar e
                  distribuir. Ele contava que lá nas brenhas do sertão, teiús
                  e ratos selvagens são fina iguaria. Inclusive cantarolava uma
                  "músiga" de um certo Luiz Gonzaga sobre um forró
                  de noite inteira, todo mundo comendo peba com pimenta: «Ai,
                  seu Malaquias!/Cinco pebas na pimenta,/ Você disse que não
                  ardia!» Até imagino que por lá as coisas não sejam tão
                  ruins quanto pintam os jornais, só fome e sede.
                  
                   
                  É
                  de assombrar tenha o senhor Profeta afirmado que quem tratava
                  daquele animal era o filho-bom, enquanto o maconheiro — só
                  poderia ser maconheiro, o vagabundo! — perdia-se por aí, na
                  gandaia. Por que, meu Deus, logo aquela rês? Só para
                  desfeitear o filho-bom? Confesso-lhes que muito me esforcei ao
                  silêncio. Em vão: 
                  
                   
                  —
                  Espere aí, meu caro Profeta! O senhor não acha, o
                  pai do malandro... Contra o filho-bom, não foi uma tremenda injusti.../ O monge Jorge
                  atalhou, ligeiro e raivoso:
                  
                   
                  —
                  Senhor Bibliotecário! O filho-bom, como o senhor o chama,
                  representa esses sujeitos o tempo todo batendo nos peitos
                  bradando bem alto que cumprem a Lei! Agora é melhor que o
                  senhor desembuche! Aliás, o Sancto Officio exige que
                  confesse que outra passagem do Livro Sagrado o demônio o leva
                  a entender injusta!
                  
                   
                  Dizer
                  o quê, meu Deus?! Agora quem estava sob prensa era eu.
                  
                   
                  —
                  Vamos, fale!
                  
                   
                  —
                  Senhor monge Jorge, como seria possível aquele pobre diabo
                  que não recebeu talento algum, ou minimamente os recebeu,
                  tomarem-lhe o que nunca teve? E, mais absurdo, aquele outro
                  que tudo ganhou, darem-lhe todo o resto? Justiça? Quem falou
                  em justiça?! — disse-lhe, mas nem sei de onde me saiu tanta
                  coragem.
                  
                   
                  A
                  complicar o que já estava ruim, alguém protestou contra a
                  crueldade em escolher o "mais rico", justamente
                  aquele que já tinha dez talentos, numa nítida opção pela
                  opulência, quando poderia ter escolhido o mediano, aquele que
                  tinha apenas quatro.
                  
                   
                  O
                  professor Pedro César acresceu:
                  
                   
                  —
                  Aristóteles teria homenageado o termo médio. Horácio teria
                  feito uma ode à aurea mediocritas. Realmente um
                  absurdo.
                  
                   
                  Os
                  da sala, cegos inclusos, entreolharam-se. Entreolhamo-nos.
                  Sequer o monge, ninguém disse nada. Ainda tentei levantar a mão
                  em desculpas. Tarde. O Profeta falou:
                  
                   
                  —
                  Meu caro Bibliotecário, a solução, só é possível encontrá-la
                  na leitura entramelada.
                  
                   
                  —
                  Entramelada, senhor? 
                  
                   
                  Antes
                  que procurássemos num dicionário o significado de tão
                  estranha palavra, a senhora mãe do Coronel disparou em direção
                  aos "talentos". Mas desta vez, o
                  "protestantismo" ganhou. Aliás, quase ganhou.
                  Justamente o advogado, Doutor Rogério, que trabalha ou já
                  trabalhou com o senhor Coronel (até desconfio que tal
                  advogado seja aquele mesmo do livro desaparecido, daquela
                  estupenda confusão da sessão de tortura, sob Fleury, o
                  chefe), começou a recitá-los, mas no primeiro engasgo ou
                  simples fôlego para respirar, a mãe do Coronel lhe tomou a
                  frente. O advogado, em cortesia à anciã ou amizade ao senhor
                  Coronel, calou-se. 
                  
                   
                  Ela,
                  sem reparar nos protestos dos "crentes", que exigiam
                  a tradução de João Ferreira de Almeida, e como se estivesse
                  com a Bíblia de Jerusalém sob os olhos, recitou, completos,
                  os talentos:
                  
                   
                    
                    
                  
                    
                      
                        | 
                           Mateus,
                          capítulo 25, versículo 14: Pois será como
                          um homem que, viajando para o estrangeiro, chamou seus
                          próprios servos e entregou-lhes os seus bens. 15A
                          um deu cinco talentos, a outro dois, e a outro um. A
                          cada um de acordo com a sua capacidade. E partiu.
                          Imediatamente, 16o
                          que havia recebido cinco talentos saiu a trabalhar e
                          com eles ganhou mais cinco. 17Da
                          mesma maneira, o que recebera dois ganhou outros dois.
                          18Mas
                          aquele que recebera um só tomou-o e foi abrir uma
                          cova no chão. E enterrou o dinheiro do seu senhor. 19Depois
                          de muito tempo, o senhor daqueles servos voltou e
                          pôs-se a ajustar as contas com eles. 20Chegando
                          aquele que recebera cinco talentos, entregou-lhe
                          outros cinco, dizendo: «Senhor, tu me confiaste cinco
                          talentos. Aqui estão os outros cinco que ganhei». 21Disse-lhe
                          o senhor: «Muito bem, servo bom e fiel! Sobre o pouco
                          foste fiel, sobre o muito te colocarei. Vem alegrar-te
                          com o teu senhor!» 22Chegando
                          também o dos dois talentos, disse: «Senhor, tu me
                          confiaste dois talentos. Aqui estão os outros dois
                          talentos que ganhei». 23Disse-lhe
                          o senhor: «Muito bem, servo bom e fiel! Sobre o pouco
                          foste fiel, sobre o muito te colocarei. Vem alegrar-te
                          com o teu senhor!» 24Por
                          fim, chegando o que recebera um talento, disse:
                          «Senhor, eu sabia que és um homem severo, que colhes
                          onde não semeastes e ajuntas onde não espalhaste. 25Assim,
                          amedrontado, fui enterrar o teu talento no chão. Aqui
                          tens o que é teu». 26A
                          isso respondeu-lhe o senhor: «Servo mau e
                          preguiçoso! Sabias que eu colho onde não semeei e
                          ajunto onde não espalhei? 27Pois
                          então devias ter depositado o meu dinheiro com os
                          banqueiros e, ao voltar, eu receberia com juros o que
                          é meu. 28Tirai-lhe
                          o talento que tem e dai-o àquele que tem dez
                          talentos, 29porque
                          a todo aquele que tem será dado e terá em
                          abundância, mas a quem não tem, até o que tem será
                          tirado. 30Quanto
                          ao servo inútil, lançai-o fora, nas trevas. Ali
                          haverá choro e ranger de dentes».
                          
                           
                         | 
                       
                     
                   
                    
                  Houve
                  protestos, sim, inclusive de outra ordem. Disseram que a reunião
                  da Biblioteca gastava tempo à-toa por conta do fanatismo.
                  Também disseram que essa segunda parábola era infinitamente
                  mais cruel do que a primeira, a do novilho. Afinal, naquela
                  havia a cena do perdão; nesta, só o mais selvagem
                  capitalismo — aos ricos, tudo!
                  
                   
                  Vejam,
                  se o ambiente já
                  estava confuso, Sávio, o estudante, aquele mesmo da fantástica
                  história dos cinco meninos e das cinco cadeiras, com o pai
                  correndo atrás dos meninos e das cadeiras; e também da história
                  dos corrupios de tampinha de garrafa de cerveja, saiu-se com
                  esta:
                  
                   
                  —
                  Dos meus irmãos, eu era o único que nunca respondia a minha
                  mãe. Aprontava minhas traquinagens que não eram poucas, como
                  aquela de riscar a roupa do professor de matemática com o
                  corrupio, pulverizando-lhe o rosto com o pó do giz, que Deus
                  me perdoe, ele até já morreu, gente finíssima, um grande
                  professor... 
                  
                   
                  —
                  ?
                  
                   
                  —
                  A mãe, quando retornei da aula, trazendo o bilhete da
                  diretora, desceu-me um discurso que não tinha tamanho. Eu
                  ali, calado, sem responder... 
                  
                   
                  —
                  ?
                  
                   
                  —
                  O pior é que meus irmãos, um deles, um dia minha mãe foi
                  reclamar por uma besteira qualquer. Ele, em vez de ficar
                  calado, saltou-se no desaforo. Pois vejam, meus amigos, quando
                  ele mais tarde voltou da rua, todo rasgado de novas brigas com
                  os moleques da praça da Lagoinha, sabem o que ela fez?
                  
                   
                  —
                  ?
                  
                   
                  —
                  Naquela noite os bicos do pão... Sim, os bicos do pão! Não!
                  Não houve sorteio algum. Ela os separou, especiais, para o
                  malandro... Está certo, éramos jovens.
                  
                   
                  Rafael,
                  um jovem jurista que trabalha ou já trabalhou com o Coronel,
                  protestou. [Ainda bem que essas “maluquices” conseguiam
                  desviar a ira do monge, nem que fosse por pouco tempo]:
                  
                   
                  —
                  Meu caro Sávio, aconteceu parecido comigo. Costumava ficar
                  calado aos muitos sermões de minha mãe, mas um dia em que eu
                  estava escutando meus pais pela frincha da porta... — e já
                  levou uma vaia, porque isto de escutar os pais pela frincha da
                  porta não é coisa que se faça, mas parece que todos faziam,
                  menos o senhor Coronel que não teve "pai-e-mãe"
                  para escutar nas frinchas da noite. Pedi calma em prol do
                  jurista, mas cá para nós, ajudei a vaiar. [Claro, eu também
                  "escutei" pai-e-mãe... nas poucas vezes em que ele
                  apareceu em casa]. O jurista disse:
                  
                   
                  —
                  Escutei a mãe reclamar que naquela noite estava de alma
                  lavada porque eu havia dito: Vá dormir, minha mãe! O
                  pai perguntou se fora no tom de desaforo. Ela disse que talvez
                  fosse, mas era melhor do que gastar o latim do mundo inteiro,
                  e ouvir o calado por resposta. Por isso, meu caro Sávio, com
                  todo o respeito, você é o filho mais malvad.../ — Quem
                  disse que deu tempo completar?! 
                  
                   
                  O
                  estudante desabalou na carreira, dizendo que iria ter com a mãe,
                  87 anos, lúcida como se tivesse 17 — e se benzeu! Aliás,
                  benzendo-se e correndo. O Piloto nº 1 imediatamente o seguiu,
                  a pedido do senhor Coronel e, claro, com o meu “aprovado”.
                  Evidente que ficamos preocupados, mas, a rigor, nem tanto;
                  afinal, o Piloto o seguira. O que o estudante haveria de
                  querer com a anciã, 87 anos, ainda que lúcida como se
                  tivesse 17?
                  
                  
                   
                   
                    
                  
                  
                   
                  228
                  – O bolo-só-casca
                  
                   
                   
                  
                   
                  —
                  Senhor Camundo! O que Vossa Excelência quis dizer com «leitura
                  entramelada»? Insinua Vossa Excelência que o Livro de Deus
                  seria confuso? — bradou o monge cego, agora num tom solene,
                  certamente para justificar mais "fervor" e maior
                  distanciamento na acusação. 
                  
                   
                  —
                  Meu caro frei Jorge, veja, por seu favor, nos debates sobre a
                  arte da cantoria,
                  lá nas barrancas do Rio Macacos, uma das técnicas sugeridas
                  pelo senhor Coronel era embaralharmos os textos para ver quem
                  os ajuntava...
                  
                   
                  —
                  Sim, vá contando!
                  
                   
                  —
                  Primeiro, havia aquele exercício de cada um de nós recitar
                  algo, sem decorar, é claro, e correr o desafio entre os
                  demais para identificar, pelo estilo, o autor. Pois bem, o
                  desafio verdadeiro, depois de entramelar todos os textos, era
                  ver quem seria capaz de destrinchá-los... 
                  
                   
                  —
                  Não estou entendendo, mas avance!
                  
                   
                  —
                  Contava o Coronel que no exame de auditor fora assim, com ele.
                  Pegaram um balaio de contas, sem classificação alguma, e
                  mandaram-no montar um balancete... Claro que ele montou.
                  Primeiro passo, somou as contas e dividiu por dois, a favor e
                  contra; débito e crédito. Segundo passo, colocou no lugar
                  aquelas contas que tinha certeza que seriam de um lado e não
                  do outro. O que sobrou, assim ele me contou, foi fácil
                  distribuir, ora somando, ora subtraindo... com o que o enigma
                  ia-se desvendando... 
                  
                   
                  —
                  O senhor confunde as coisas! Prossiga!
                  
                   
                  —
                  Não, senhor monge! Temos que trabalhar o enigma. E até
                  parece que os profetas de Deus não faziam outra coisa a não
                  ser montar enigmas. Aliás, sempre escutei do Coronel que a essência
                  dos profetas seria justamente isto, o enigma... 
                  
                   
                  —
                  Isto é um absurdo! O Livro de Deus não contém enigmas,
                  senhor Camundo! Quem monta disfarces é o demônio! E por
                  favor, conclua logo essa blasfêmia!
                  
                   
                  —
                  O fato, meu caro monge Jorge, é que a leitura de qualquer uma
                  dessas parábolas sozinha é impossível...
                  
                   
                  —
                  Por quê? Onde o impossível, senhor Camundo? — protestou o
                  monge Jorge, no limite.
                  
                   
                  —
                  Veja, frei Jorge, o senhor mesmo afirmou que o filho-bom seria
                  como os fariseus. A interpretação não parece razoável...
                  Afinal, não há acusação alguma, no texto, de que ele não
                  fosse bom. Com os fariseus, segundo o Cristo, dava-se
                  justamente o contrário: eram eles os maus que se faziam passar
                  por bons...
                  
                   
                  —
                  Realmente, senhor monge — interveio o professor Pedro César
                  —, nos autos, aliás, na parábola do novilho, não há a
                  mais leve insinuação contra o comportamento do tal
                  filho-bom. Logo, não se trata de ser fariseu ou não, que,
                  pelo visto, ele não era. Pelo menos nos autos, e, como
                  professor comprometido com a ciência, tenho que me ater ao
                  campo das provas, aos autos, ao texto... Logo, a condição de
                  fariseu a ele não pode ser imposta. Sua reverendíssima me dê
                  licença, mas  desta
                  vez o nosso Filósofo Sertanejo, o senhor Camundo, também
                  conhecido como Profeta, está com a melhor interpretação.
                  
                   
                  Foi
                  o suficiente para o Profeta ganhar um fôlego: 
                   
                   — Agora, meu
                  caro monge Jorge, se o senhor ajuntar a dos talentos com a do
                  novilho, começando pelos talentos... Conclusão... aquele que
                  não ganhou talento algum, há de ganhar... pelo menos o novil...
                  
                  
                   
                   
                   
                  
                   
                  229
                  – Uma bomba de silêncios
                  
                   
                   
                  
                   
                  Como
                  se fora uma bomba de silêncios! Subitamente, todos de nós,
                  os olhos no chão. Os olhos? E três , dos presentes, não
                  eram cegos?! Sim, os cegos também, os olhos no chão. Ainda
                  que o branco dos olhos de Jorge, o escritor, girasse o tempo
                  todo para o lugar nenhum — ele, que nunca usou óculos de
                  disfarce, diferentemente do outro cego, Aderaldo, o cantador,
                  que os usava pretos e largos —, ainda assim, que fossem ao
                  teto, aqueles olhos estavam no chão. Não, não eram ao chão
                  que “fitavam”. Era... para “dentro”. 
                  
                  
                   
                  O
                  Profeta respirou fundo e, resoluto, disse:
                  
                   
                  —
                  Sim, o novilho!
                  
                   
                  Não
                  sei que efeitos
                  reais tiveram as palavras do Filósofo Sertanejo sobre o monge
                  inquisidor e sobre o auditório. Sobre mim? Um pesadelo! Não.
                  Acho que foi um “sonho”, ou melhor, algo que jamais
                  saberei. Que tempo durou? Também não sei. 
                  
                   
                  Então,
                  me veio à fronte, em cores muito nítidas, e tenho a certeza
                  de que era eu mesmo, este Djalma aqui, num tempo já muito
                  distante, escutando diretamente nos olhos de minha mãe, em
                  pessoa de carne e osso, ela a dizer só com os lábios... Mas
                  eu escutei nos meus ouvidos e não apenas nos olhos dela! Juro
                  que escutei, tanto naquele dia como neste outro da Biblioteca.
                  Lá, eu, entre dois guardas, à porta da lei. Ele não era
                  novo nem velho; já nem lhe guardo o nome, e até me esforcei
                  ao esquecimento — o senhor juiz. Não! Não consegui prestar
                  maior atenção no que ele dizia. Eu era jovem; ainda não
                  entendia o linguajar prisional de artigos e parágrafos. 
                  
                   
                  A
                  fala dela, mãe, naquele tempo, sim, jamais esquecida. Foi
                  tudo muito claro e muito nítido. Desta outra vez também foi,
                  tanto que só tive tempo suficiente, ao ouvi-la, de me
                  refugiar no sanitário. [Como teria sido possível se minha mãe
                  não estava na Biblioteca, muito menos estava no dia do
                  juiz?]. Contudo, há momentos, agora, em que até desconfio
                  que não arredei os pés do lugar, na Biblioteca. A
                  cara, esta aqui, a minha — perdi a conta de quantas vezes a
                  lavei e, em maior número a enxuguei, se é que realmente fui
                  ao lavatório, mas desconfio que não fui. E, se fui, lavei e
                  enxuguei uma cara ausente, ainda que a minha, exatamente esta
                  aqui que continua apregada em cima do meu pescoço — ou não
                  continua? Sim, acho que saí. 
                  
                   
                  O
                  fato é que, saindo ou ficando, fiquei sem saber o que
                  conversaram em minha “ausência”. Se tiver um dia a
                  chance, hei de perguntar a quem ficou. Aliás, a vontade
                  verdadeira foi — e continua — de perguntar aos cegos se
                  alguém, estando de cabeça baixa e de costas, poderia
                  "ver" a mãe, lá atrás, bem “atrás”, ausente
                  até, e ouvi-la balbuciar bem alto: «Meu filho, tu és o
                  meu filho amado!» 
                  
                   
                   
                  
                   
             
             
             Este texto é um capítulo de Salomão, um 
            livro em processo. 
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            para piscinas. 
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             Do
            bolo-só-casca ou da Beleza só-superfície
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                        | 
                           Luiz
                          Paulo Santos 
                            
                          Pequenas
                          navegações em torno de “Salomão”,  
                          a
                          propósito de “Ninguém no chiqueirinho e a estranha
                          história do novilho”. 
                           
                          
                           
                          A
                          história como um redemoinho transitando o mundo. A
                          reunião é ampla, atravessa e aglutina os tempos e
                          espaços num só tempo e um só espaço sem fim nem
                          começo — para o abraço humano, dos mais contrários,
                          serenos e apocalípticos, inocentes e culpados —
                          quem há de? — se tão absurdamente humanos. 
                           A
                          questão do tempo e do espaço me confunde, tento
                          expressar a percepção: um único espaço, um único
                          tempo, uma só humanidade. Tempos e espaços humanos
                          reunidos num só espaço e tempo, numa só humanidade:
                          “...e toda aquela multidão de santos e facínoras
                          presentes e ausentes à Biblioteca são uma única
                          pessoa! E completa, para quem ainda acha que é o sal
                          da terra, “Quem haveria de ser senão eu?” 
                          Estou
                          chovendo no molhado porque isto está tão claro desde
                          o primeiro movimento: 
                          ............................. 
                          “Desliguei
                          todos os relógios, 
                          entortei-lhes
                          os ponteiros, 
                          joguei-os
                          ao mar.” 
                           
                          
                           
                          Integração
                          sem exceções, da humanidade mais atroz — vide o
                          menino morrendo diante do abutre e do homem derrotado
                          (a escatologia está no homem, não no abutre)— à
                          mais transcendente, como os que vão à frente, os que
                          dizem, “não!”. 
                          E
                          há inesperados rituais retransformados: a comunhão
                          dos pedaços trazidos do fundo dos tempos numa lata de
                          bolacha “cream-cracker”, o alimento de que todos
                          carecemos. E corolários: “Cheirar pra quê, se o
                          cheiro estava no mundo”. 
                          (Hummm...
                          Bolo só casca, pão-só-bico, ô cheirinho, êta
                          cozinha geral, salve padarias! E a gente não
                          precisava mais disputar esse gostoso bico — eu e
                          meus nove irmãos.) 
                          E
                          com paralelismos subjacentes, a “injusta” previdência
                          ao condenado, a passagem bíblica do “novilho
                          cevado” e dos talentos, os dois pedaços à
                          madrinha, pedaço maior ao cego Aderaldo, a parábola
                          termina com o que não está escrito, mas implícito:
                          só quem sabe renunciar pode entender que aquele que não
                          merece ganhe, que àquele que mais tenha se lhe
                          acrescente, pois ao renunciante nada lhe fará falta.  
                          E
                          esse narrador híbrido de anjo e demônio que voluteia
                          na cena? É ele quem vê, mas que olhos! e advinha —
                          e com um humor de Anjo, conta tudo, vergasta as
                          contradições, ele próprio se curva e se mede, mas não
                          há ódio, há perdão o tempo todo, há comiseração
                          sem pieguice. 
                          Há
                          uma certa catarse nesse grande encontro/balanço geral
                          marcado por um sentimento amoroso que tanto conflita
                          quanto perdoa, que a tudo compreende no duplo sentido
                          de abarcar e entender, que se coaduna com a
                          perspectiva do século C de Ésquilo. 
                          Longe
                          de ser o protesto a sua espinha dorsal, como diz
                          Seffrim, “Salomão” é uma afirmação de sentido,
                          clara e fundamentada opção pela vida forjada na
                          concretude de nossas contradições, na busca
                          incessante de superação, no exercício de nossa
                          capacidade de pensar, nossa única singularidade
                          efetiva, nossa única justificativa, e na reinvenção
                          de um dos mais valiosos instrumentos do pensamento
                          humano, a literatura. 
                          Se
                          o romance moderno é a síntese de todos os gêneros,
                          “Salomão”, mais do que nunca, patenteia esse
                          momento. Na minha modesta opinião, Feitosa, esta obra
                          é uma grande ousadia. Feitosa, és um ousado. 
                          Grande
                          abraço, 
                          Luiz
                          Paulo Santana        
                             | 
                       
                      
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