Soares
Feitosa
Ninguém no chiqueirino
e a estranha história do
novilho
Interpelei
o senhor Coronel sobre a idéia da previdência para os
presos. Ele foi categórico:
—
É evidente, meu caro Djalma! Veja o caso de seu compadre
Manoel. Ele saiu daqui, não é de todo absurdo presumir, com
os melhores planos. Quem disse que arrumou nada?! Aqui, por
pior que fosse o ambiente, o pirão estava garantido, mas lá
fora, para alguém sem antecedentes, quem lhe abrigaria um
emprego?! Muito justo que a previdência o ampare. Se tiver
que delinqüir, pelo menos não há de alegar a extrema
necessidade. Todo mundo sabe que mínima panela no fogo é
fundamental à dignidade!
Alguém
leu no Jornal do Crime, que circula com várias edições
diárias, inclusive a da noite, que Manoel, mal saído daqui,
apenas com uns trocados, depois de rodar Ceca e Meca, todos
fugindo dele, inclusive parentes e compadres, como o demônio
foge das alpercatas de São Francisco do Canindé — história
que ouvi do senhor Capitão, mas até desconfio que o Coisa-ruim
nem tenha esses medos todos de chinelas, aliás, suspeito que
não tenha medo de coisa alguma. Pois bem, Manoel partiu para
assaltar uma farmácia, mas o caixa, depenado por um grupo de
meninos-de-rua há pouco tempo, dinheiro zero.
Uns
comprimidos de isordil ou alguma pomada contra urticária?
Para quê? Nem sofre do coração, muito menos da pele, esse
Manoel, um dos que mais praticam esportes, aqui. Os óculos
do senhor farmacêutico? Também não; Manoel tem excelente
vista, tanto de perto, como de longe. O quê, então?
—
Passe-me para cá este televisor! — teria dito Manoel ao
farmacêutico, apontando-lhe uma pistola de brinquedo que o
assaltado nem discutiu se seria de verdade ou de mentira.
Botou
o produto debaixo do braço — um televisor do tempo
do preto e branco, em o farmacêutico ouvia o
noticiário, de imagem tremida. Pegou o primeiro ônibus que ia passando. Nem
dez minutos se passaram, a patrulha já o agarrava com tv e
tudo.
Ainda
quiseram ensaiar uma vaia sobre a liseira, leseira, de meu
compadre Manoel, mas o Coronel protestou. Mesmo assim
comentaram que Manoel era um zonzo. Meter-se a assaltar um pé-de-farmácia
lá num cafundó-de-Judas. Pior: a pé — coisa de pobre —
e sozinho. Disseram que se ele pertencesse ao Comando Feroz
não teria passado por semelhante humilhação.
Comando
Feroz!
Isto apenas me veio reforçar a idéia de que uma mesma idéia
comporta sempre várias idéias, contra e a favor, uma dentro
da outra, cada qual a mais absurda. Ou mais verdadeira.
Felizmente
o Coronel reassumiu o comando do assunto e,
para assombro geral, redigiu ali mesmo, em cima da
perna, uma Medida Provisória garantindo o sistema previdenciário
ao apenado, de modo que, quando solto, não se lhe torne
impossível, pela miséria, o caminho de volta. Nem quando
preso, tenha a esposa e as filhas, a mãe inclusa, que se
prostituírem para se manterem.
Agora,
se o príncipe vai cumprir ou não a tal Medida Provisória
— ah! Coronel raçudo de uma figa! —, isto veremos amanhã,
depois de inaugurada a Biblioteca. Nem preciso
mencionar que o senhor monge cego afirmou que estava
assistindo a um grande absurdo: premiar criminosos com uma
aposentadoria.
—
Por favor, o senhor está aposentado? Que profissão exercia?
Criminoso? Meus parabéns! — zombou, soturno, o monge.
Ninguém
comentou. A mão do Coronel benzeu-se, assombrada. Confesso
que também me assustei, mas pensando direitinho, talvez o
Coronel tenha razão. Se existir alguma coisa válida — e
barata! — para recuperar, taí uma, a Medida Provisória
baixada pelo Coronel.
Alguém
gritou que havia muita gente que nunca havia roubado sequer
uma galinha, um bode, um cabresto ou um chocalho. Como
justificar que não tenha pensão enquanto que quem roubou e
matou passaria a tê-la? Uma injustiça!, disse.
O
Profeta, aliás, nosso Filósofo Sertanejo, dito Camundo —
confesso-lhe que até já estava com saudade de suas
presepadas —, comentou que a solução do problema estava no
grau do novilho.
—
Isto mesmo, senhor Profeta! Então, se o ladrão roubar apenas
bezerros, nunca ultrapassando o grau de novilho, é que será
aposentado, não é mesmo?! Por favor, roubem apenas de
novilho para baixo!, gritou, de zombaria, o monge cego.
—
Não, meu caro monge. Refiro-me ao novilho do Cristo.
—
Alto lá, senhor Profeta! O Cristo nunca foi fazendeiro!
De
fato, de minhas poucas leituras, nunca soube que o Cristo
tenha sido fazendeiro, dono de bois ou garrotes. Claro que
houve protestos contra o Profeta. Choveram bíblias em minha
modesta sala. Cada um mais bravo que o outro a exigir que o
Profeta
demonstrasse no livro sagrado que o Cristo possuíra rebanhos,
boiadas, garrotes ou novilhos.
—
Não, meus amigos, o Cristo está inocente dessa confusão.
Ele não possuía novilho algum, bicho nenhum, tanto que no
Domingo de Ramos teve que desfilar numa jumenta emprestada,
sequer um cavalo conseguiu. O novilho que mencionei é aquele
outro, o cevado, do filho mau! — E, concluiu:
—
Vejam, o Cristo disse aos servos: «Matem o boi cevado». Não
mandou matar um boi qualquer, mas o novilho, aquele, ímpar e
único, definido e especial — o cevado —, que, apartado
dos outros bovinos, se destinava a festejar a visita do rei ou
de um príncipe poderoso, quem sabe, até do senhor
Procurador, Pôncio Pilatos. Dizem os mais sábios que aquele
novilho — o novilho cevado! — quem dele tratava, especialíssimo,
era justamente o filho-bom e, por isto mesmo, nenhum empregado
lhe punha sequer os olhos.
—
O quê, senhor Profeta? Já ouvi falar nessa história...! Então,
a afronta do pai contra o filho honesto foi muito maior! Quer
dizer que não era um garrote qualquer...? — eu mesmo falei,
não me contendo no susto.
O
professor Pedro César exigiu passar o assunto a limpo a
partir de uma boa tradução da Bíblia, consultando, se fosse
o caso, o original grego.
Surgiu,
como é normal nesses assuntos religiosos, uma intensa balbúrdia,
cada um querendo impor a sua versão. Deliberamos, depois de
grande peleja verbal, que só seriam válidas, ou melhor,
aceitas, ali, três traduções, além do original grego.
Não,
ninguém encontrou o original grego, de modo que as traduções
seriam a Vulgata, em latim; a Bíblia Inglesa, do Rei James e
a tradução portuguesa de João Ferreira de Almeida. E, como
abonação final, conferir-se-ia tudo com a Bíblia de Jerusalém.
Quem
disse que deu tempo?! A senhora mãe do Coronel, desconfio,
enquanto discutíamos qual a melhor versão, abriu a indefectível
bolsa de palha de carnaúba e decorou rapidamente o texto do
novilho. Falo isto de pura maldade, porque, a rigor, ninguém
a viu abrir bolsa alguma. É de estarrecer que ela soubesse ou
ainda saiba tudo aquilo de cor e salteado! Ah! mulher terrível!
O fato é que ela sapecou em plena sala a versão da Bíblia
de Jerusalém, sem fazer ouvidos aos protestos dos evangélicos
que queriam a leitura pela versão revisada de João Ferreira
de Almeida, da Sociedade Bíblica Brasileira.
Ainda
bem que o senhor Coronel nos tranqüIlizou a todos que o
problema seria nenhum, posto que todas as versões se
equivaliam. No ato, a mãe dele recitou, sem vacilar:
Lucas,
capítulo 15, a partir de versículo 11: Jesus
disse ainda: “Um homem tinha dois filhos. 12O
mais jovem disse ao pai: «Pai, dá-me a parte da
herança que me cabe». E o pai dividiu a herança
entre eles. 13Poucos
dias depois, ajuntando todos os seus haveres, o filho
mais novo partiu para uma região longínqua e ali
dissipou sua herança numa vida devassa. 14E
gastou tudo. Sobreveio àquela região uma grande fome
e ele começou a passar privações. 15Foi,
então, empregar-se com um dos homens daquela região,
que o mandou para seus campos a fim de cuidar dos
porcos. 16Ele
queria matar a fome com as bolotas que os porcos
comiam, mas ninguém lhas dava. 17E
caindo em si, disse: Quantos empregados de meu pai têm
pão com fartura, e eu aqui, morrendo de fome!
18Vou-me
embora, procurar meu pai, e lhe direi: Pai, pequei
contra o Céu e contra ti; 19já
não sou mais digno de ser chamado teu filho. Trata-me
como um dos teus empregados. 20Partiu,
então, e foi ao encontro de seu pai.
Ele
estava ainda longe, quando seu pai viu-o, encheu-se de
compaixão, correu e lançou-se-lhe ao pescoço,
cobrindo-o de beijos. 21O
filho lhe disse: «Pai, pequei contra o Céu e contra
ti. Não sou mais digno de ser chamado teu filho». 22Mas
o pai disse aos seus servos: «Ide depressa! Tragam a
melhor túnica e revesti-o com ela; ponde-lhe um anel
no dedo e sandálias nos pés. 23Trazei
o novilho cevado e matai-o; comamos e festejemos; 24pois
este meu filho estava morto e tornou a viver; estava
perdido e foi reencontrado’. E começaram a
festejar.
25Seu
filho mais velho estava no campo. Quando voltava, já
perto de casa ouviu música e danças. 26Chamando
um servo, perguntou-lhe o que estava acontecendo. 27Este
lhe disse: «É teu irmão que voltou, e teu pai matou
o novilho cevado, porque o recuperou com saúde». 28Então
ele ficou com muita raiva e não quis entrar. Seu pai
saiu para suplicar-lhe. 29Ele
porém respondeu ao seu pai: «Há tantos anos que te
sirvo e jamais transgredi um só dos teus mandamentos,
e nunca me deste um cabrito para eu festejar com os
meus amigos. 30Contudo,
veio este teu filho, que devorou teus bens com
prostitutas, e para ele matas o novilho cevado!’
31Mas
o pai lhe disse: «Meu filho, tu estás sempre comigo,
e tudo o que é meu é teu. 32Mas
era preciso que festejássemos e nos alegrássemos,
pois este seu irmão estava morto e tornou a viver;
ele estava perdido e foi reencontrado»”. |
Justamente
nos versículos 23, 27 e 30, a mãe do Coronel carregou toda
ênfase em “o” novilho. Até pronunciou o artigo definido
com o som aberto: “ó” novilho. No mesmo instante, o monge
recitou em latim: «23et
adducite vitulum saginatum et occidite et manducemus et
epulemur»,
no que o Coronel confirmou: adducite vitulum saginatum
— isto mesmo, senhor monge Jorge: trazei o vitelo, o novilho
cevado!
Apareceu
um exemplar da Bíblia Ingesa, do Rei James: «23Bring
the fattened calf and kill it. Let’s have a feast and
celebrate».
O professor
Pedro César, um verdadeiro lingüista, traduziu: the
fattened calf — o novilho cevado! Também na Bíblia
Luterana — parece até que havia um amplo estoque de bíblias
estrangeiras na reunião: «23und
bringt das gemästete Kalb her und schlachtet es, und laßt
uns essen und fröhlich sein!»
Mais uma vez o professor Pedro César confirmou: und bringt
das gemästete Kalb — o novilho cevado!
O
ambiente ficou de silêncios. Em meio às reflexões de cada
um, a surpresa: o engenheiro, Doutor Fernando. Ah!, meu Deus,
vejam só o absurdo que esse senhor aprontou:
O
que digo entre as flores?
O
resto foi travo e mel;
que
não se disse mais nada —
em
um
ali:
rubro
o tempo, as faces.
Seu
Francisco — indagou, aflito,
mestre
Antônio (vaqueiro) —,
o
senhor mandou matar todos os novilhos?
Foi
assim mesmo que entendi?
E
botar a melhor veste nos caminhos?
Como
ficará então esta fazenda,
sem
os bois que morrerem?
O
que digo entre as flores?
Diga
nada não, mestre Antônio:
os
novilhos ressurgirão da terra,
nos
passos largos das minhas sandálias.
E
os caminhos ficarão de perfume.
Diga
nada não, mestre Antônio,
que
ela estava morta,
as
flores sabem, outra vez,
agora
vive. |
227
- Da leitura entramelada
Evidente
que o senhor monge Jorge protestou. Eu também protestei.
Pasmem, até o senhor Coronel protestou! De fato, o que teria
a ver um tema tão sublime — o pai em perdões ao filho-mau
— com um coronel mulherengo que se surpreende com o retorno
de uma de suas amantes?
Fiquei
em meus botões medindo o tamanho da audácia dessa cantoria
do senhor engenheiro, aliás, do senhor Coronel, em que este
para se mostrar poderoso, até mais poderoso do que o Cristo,
teria mandado matar não apenas um, mas todos os novilhos da
fazenda. E pior, em vez de colocar algumas flores no cabelo da
mulher que retornava — vá lá que fosse um bem sortido
ramalhete de rosas do campo —, mandou os capangas, à frente
um certo mestre Antônio, cobrir de flores os caminhos por
onde a sujeita haveria de passar.
O
senhor Capitão, meu auxiliar de bibliotecário, seria ele o
tal "mestre Antônio" da cantoria? Mestre de quê? E
a mulher, subitamente retornada, seria ela a monja das
melancias? Teria largado o hábito, refugado os votos? Ou,
ligeira, viera fugida, esquiva, para uma "tarde na
casa-grande", inventando, para a madre superiora, que
fora acudir os sem-terra?
E,
gravidade das gravidades, teve o senhor Coronel o topete de
dizer, na cantoria que o engenheiro recitou, que os novilhos
haveriam de renascer dos passos largos de suas chinelas!
Li,
num velho livro de mitologia, que um casal de doidos, únicos
sobreviventes de um grande dilúvio, saíra na carreira,
jogando pedras para trás, e que, de cada uma daquelas
pedradas, nascia, se fosse o marido quem rebolasse o seixo, um
homem; se a esposa, uma mulher. É uma história completamente
diferente da de Adão e Eva. Também nada a ver com a de Noé,
mas é parecida, pelo menos quanto ao dilúvio. Ah!
lembrei-me: Pirra, a mulher; Deucalião, o marido, ambos
disparando pedradas para trás, deixando no rastro a raça dos
homens recém-criada.
Seria
o Coronel tão poderoso a ponto de fazer renascer de suas
pisadas os bois que mandou os capangas matar? Espere aí, o
Coronel não era açougueiro? Quem sabe, não teria ele
misturado, na cantoria, os bois do açougue com o novilho do
Cristo!? Audácia, pura audácia e muita "garganta",
isto sim.
Contudo,
a história daquele pai cometendo uma violência tão grave
contra o filho honesto, em prol do malandro, não me saía da
cabeça. Não há dúvidas, a "ofensa" contra o
filho-bom fora realmente muito maior. Mandar matar justamente
aquele novilho, o cevado, especial, exclusivo da visita do
rei?! Bem que poderia ter mandado matar um bode, um porco, um
peru, meia dúzia de guinés, dez galinhas caipiras, tejuaçus
e preás à vontade.
A
comilança me faz lembrar as histórias do senhor Capitão,
aqui, de noite, no presídio, nalgum intervalo dos poucos
livros e muitas revistas velhas a remendar, colecionar e
distribuir. Ele contava que lá nas brenhas do sertão, teiús
e ratos selvagens são fina iguaria. Inclusive cantarolava uma
"músiga" de um certo Luiz Gonzaga sobre um forró
de noite inteira, todo mundo comendo peba com pimenta: «Ai,
seu Malaquias!/Cinco pebas na pimenta,/ Você disse que não
ardia!» Até imagino que por lá as coisas não sejam tão
ruins quanto pintam os jornais, só fome e sede.
É
de assombrar tenha o senhor Profeta afirmado que quem tratava
daquele animal era o filho-bom, enquanto o maconheiro — só
poderia ser maconheiro, o vagabundo! — perdia-se por aí, na
gandaia. Por que, meu Deus, logo aquela rês? Só para
desfeitear o filho-bom? Confesso-lhes que muito me esforcei ao
silêncio. Em vão:
—
Espere aí, meu caro Profeta! O senhor não acha, o
pai do malandro... Contra o filho-bom, não foi uma tremenda injusti.../ O monge Jorge
atalhou, ligeiro e raivoso:
—
Senhor Bibliotecário! O filho-bom, como o senhor o chama,
representa esses sujeitos o tempo todo batendo nos peitos
bradando bem alto que cumprem a Lei! Agora é melhor que o
senhor desembuche! Aliás, o Sancto Officio exige que
confesse que outra passagem do Livro Sagrado o demônio o leva
a entender injusta!
Dizer
o quê, meu Deus?! Agora quem estava sob prensa era eu.
—
Vamos, fale!
—
Senhor monge Jorge, como seria possível aquele pobre diabo
que não recebeu talento algum, ou minimamente os recebeu,
tomarem-lhe o que nunca teve? E, mais absurdo, aquele outro
que tudo ganhou, darem-lhe todo o resto? Justiça? Quem falou
em justiça?! — disse-lhe, mas nem sei de onde me saiu tanta
coragem.
A
complicar o que já estava ruim, alguém protestou contra a
crueldade em escolher o "mais rico", justamente
aquele que já tinha dez talentos, numa nítida opção pela
opulência, quando poderia ter escolhido o mediano, aquele que
tinha apenas quatro.
O
professor Pedro César acresceu:
—
Aristóteles teria homenageado o termo médio. Horácio teria
feito uma ode à aurea mediocritas. Realmente um
absurdo.
Os
da sala, cegos inclusos, entreolharam-se. Entreolhamo-nos.
Sequer o monge, ninguém disse nada. Ainda tentei levantar a mão
em desculpas. Tarde. O Profeta falou:
—
Meu caro Bibliotecário, a solução, só é possível encontrá-la
na leitura entramelada.
—
Entramelada, senhor?
Antes
que procurássemos num dicionário o significado de tão
estranha palavra, a senhora mãe do Coronel disparou em direção
aos "talentos". Mas desta vez, o
"protestantismo" ganhou. Aliás, quase ganhou.
Justamente o advogado, Doutor Rogério, que trabalha ou já
trabalhou com o senhor Coronel (até desconfio que tal
advogado seja aquele mesmo do livro desaparecido, daquela
estupenda confusão da sessão de tortura, sob Fleury, o
chefe), começou a recitá-los, mas no primeiro engasgo ou
simples fôlego para respirar, a mãe do Coronel lhe tomou a
frente. O advogado, em cortesia à anciã ou amizade ao senhor
Coronel, calou-se.
Ela,
sem reparar nos protestos dos "crentes", que exigiam
a tradução de João Ferreira de Almeida, e como se estivesse
com a Bíblia de Jerusalém sob os olhos, recitou, completos,
os talentos:
Mateus,
capítulo 25, versículo 14: Pois será como
um homem que, viajando para o estrangeiro, chamou seus
próprios servos e entregou-lhes os seus bens. 15A
um deu cinco talentos, a outro dois, e a outro um. A
cada um de acordo com a sua capacidade. E partiu.
Imediatamente, 16o
que havia recebido cinco talentos saiu a trabalhar e
com eles ganhou mais cinco. 17Da
mesma maneira, o que recebera dois ganhou outros dois.
18Mas
aquele que recebera um só tomou-o e foi abrir uma
cova no chão. E enterrou o dinheiro do seu senhor. 19Depois
de muito tempo, o senhor daqueles servos voltou e
pôs-se a ajustar as contas com eles. 20Chegando
aquele que recebera cinco talentos, entregou-lhe
outros cinco, dizendo: «Senhor, tu me confiaste cinco
talentos. Aqui estão os outros cinco que ganhei». 21Disse-lhe
o senhor: «Muito bem, servo bom e fiel! Sobre o pouco
foste fiel, sobre o muito te colocarei. Vem alegrar-te
com o teu senhor!» 22Chegando
também o dos dois talentos, disse: «Senhor, tu me
confiaste dois talentos. Aqui estão os outros dois
talentos que ganhei». 23Disse-lhe
o senhor: «Muito bem, servo bom e fiel! Sobre o pouco
foste fiel, sobre o muito te colocarei. Vem alegrar-te
com o teu senhor!» 24Por
fim, chegando o que recebera um talento, disse:
«Senhor, eu sabia que és um homem severo, que colhes
onde não semeastes e ajuntas onde não espalhaste. 25Assim,
amedrontado, fui enterrar o teu talento no chão. Aqui
tens o que é teu». 26A
isso respondeu-lhe o senhor: «Servo mau e
preguiçoso! Sabias que eu colho onde não semeei e
ajunto onde não espalhei? 27Pois
então devias ter depositado o meu dinheiro com os
banqueiros e, ao voltar, eu receberia com juros o que
é meu. 28Tirai-lhe
o talento que tem e dai-o àquele que tem dez
talentos, 29porque
a todo aquele que tem será dado e terá em
abundância, mas a quem não tem, até o que tem será
tirado. 30Quanto
ao servo inútil, lançai-o fora, nas trevas. Ali
haverá choro e ranger de dentes».
|
Houve
protestos, sim, inclusive de outra ordem. Disseram que a reunião
da Biblioteca gastava tempo à-toa por conta do fanatismo.
Também disseram que essa segunda parábola era infinitamente
mais cruel do que a primeira, a do novilho. Afinal, naquela
havia a cena do perdão; nesta, só o mais selvagem
capitalismo — aos ricos, tudo!
Vejam,
se o ambiente já
estava confuso, Sávio, o estudante, aquele mesmo da fantástica
história dos cinco meninos e das cinco cadeiras, com o pai
correndo atrás dos meninos e das cadeiras; e também da história
dos corrupios de tampinha de garrafa de cerveja, saiu-se com
esta:
—
Dos meus irmãos, eu era o único que nunca respondia a minha
mãe. Aprontava minhas traquinagens que não eram poucas, como
aquela de riscar a roupa do professor de matemática com o
corrupio, pulverizando-lhe o rosto com o pó do giz, que Deus
me perdoe, ele até já morreu, gente finíssima, um grande
professor...
—
?
—
A mãe, quando retornei da aula, trazendo o bilhete da
diretora, desceu-me um discurso que não tinha tamanho. Eu
ali, calado, sem responder...
—
?
—
O pior é que meus irmãos, um deles, um dia minha mãe foi
reclamar por uma besteira qualquer. Ele, em vez de ficar
calado, saltou-se no desaforo. Pois vejam, meus amigos, quando
ele mais tarde voltou da rua, todo rasgado de novas brigas com
os moleques da praça da Lagoinha, sabem o que ela fez?
—
?
—
Naquela noite os bicos do pão... Sim, os bicos do pão! Não!
Não houve sorteio algum. Ela os separou, especiais, para o
malandro... Está certo, éramos jovens.
Rafael,
um jovem jurista que trabalha ou já trabalhou com o Coronel,
protestou. [Ainda bem que essas “maluquices” conseguiam
desviar a ira do monge, nem que fosse por pouco tempo]:
—
Meu caro Sávio, aconteceu parecido comigo. Costumava ficar
calado aos muitos sermões de minha mãe, mas um dia em que eu
estava escutando meus pais pela frincha da porta... — e já
levou uma vaia, porque isto de escutar os pais pela frincha da
porta não é coisa que se faça, mas parece que todos faziam,
menos o senhor Coronel que não teve "pai-e-mãe"
para escutar nas frinchas da noite. Pedi calma em prol do
jurista, mas cá para nós, ajudei a vaiar. [Claro, eu também
"escutei" pai-e-mãe... nas poucas vezes em que ele
apareceu em casa]. O jurista disse:
—
Escutei a mãe reclamar que naquela noite estava de alma
lavada porque eu havia dito: Vá dormir, minha mãe! O
pai perguntou se fora no tom de desaforo. Ela disse que talvez
fosse, mas era melhor do que gastar o latim do mundo inteiro,
e ouvir o calado por resposta. Por isso, meu caro Sávio, com
todo o respeito, você é o filho mais malvad.../ — Quem
disse que deu tempo completar?!
O
estudante desabalou na carreira, dizendo que iria ter com a mãe,
87 anos, lúcida como se tivesse 17 — e se benzeu! Aliás,
benzendo-se e correndo. O Piloto nº 1 imediatamente o seguiu,
a pedido do senhor Coronel e, claro, com o meu “aprovado”.
Evidente que ficamos preocupados, mas, a rigor, nem tanto;
afinal, o Piloto o seguira. O que o estudante haveria de
querer com a anciã, 87 anos, ainda que lúcida como se
tivesse 17?
228
– O bolo-só-casca
—
Senhor Camundo! O que Vossa Excelência quis dizer com «leitura
entramelada»? Insinua Vossa Excelência que o Livro de Deus
seria confuso? — bradou o monge cego, agora num tom solene,
certamente para justificar mais "fervor" e maior
distanciamento na acusação.
—
Meu caro frei Jorge, veja, por seu favor, nos debates sobre a
arte da cantoria,
lá nas barrancas do Rio Macacos, uma das técnicas sugeridas
pelo senhor Coronel era embaralharmos os textos para ver quem
os ajuntava...
—
Sim, vá contando!
—
Primeiro, havia aquele exercício de cada um de nós recitar
algo, sem decorar, é claro, e correr o desafio entre os
demais para identificar, pelo estilo, o autor. Pois bem, o
desafio verdadeiro, depois de entramelar todos os textos, era
ver quem seria capaz de destrinchá-los...
—
Não estou entendendo, mas avance!
—
Contava o Coronel que no exame de auditor fora assim, com ele.
Pegaram um balaio de contas, sem classificação alguma, e
mandaram-no montar um balancete... Claro que ele montou.
Primeiro passo, somou as contas e dividiu por dois, a favor e
contra; débito e crédito. Segundo passo, colocou no lugar
aquelas contas que tinha certeza que seriam de um lado e não
do outro. O que sobrou, assim ele me contou, foi fácil
distribuir, ora somando, ora subtraindo... com o que o enigma
ia-se desvendando...
—
O senhor confunde as coisas! Prossiga!
—
Não, senhor monge! Temos que trabalhar o enigma. E até
parece que os profetas de Deus não faziam outra coisa a não
ser montar enigmas. Aliás, sempre escutei do Coronel que a essência
dos profetas seria justamente isto, o enigma...
—
Isto é um absurdo! O Livro de Deus não contém enigmas,
senhor Camundo! Quem monta disfarces é o demônio! E por
favor, conclua logo essa blasfêmia!
—
O fato, meu caro monge Jorge, é que a leitura de qualquer uma
dessas parábolas sozinha é impossível...
—
Por quê? Onde o impossível, senhor Camundo? — protestou o
monge Jorge, no limite.
—
Veja, frei Jorge, o senhor mesmo afirmou que o filho-bom seria
como os fariseus. A interpretação não parece razoável...
Afinal, não há acusação alguma, no texto, de que ele não
fosse bom. Com os fariseus, segundo o Cristo, dava-se
justamente o contrário: eram eles os maus que se faziam passar
por bons...
—
Realmente, senhor monge — interveio o professor Pedro César
—, nos autos, aliás, na parábola do novilho, não há a
mais leve insinuação contra o comportamento do tal
filho-bom. Logo, não se trata de ser fariseu ou não, que,
pelo visto, ele não era. Pelo menos nos autos, e, como
professor comprometido com a ciência, tenho que me ater ao
campo das provas, aos autos, ao texto... Logo, a condição de
fariseu a ele não pode ser imposta. Sua reverendíssima me dê
licença, mas desta
vez o nosso Filósofo Sertanejo, o senhor Camundo, também
conhecido como Profeta, está com a melhor interpretação.
Foi
o suficiente para o Profeta ganhar um fôlego:
— Agora, meu
caro monge Jorge, se o senhor ajuntar a dos talentos com a do
novilho, começando pelos talentos... Conclusão... aquele que
não ganhou talento algum, há de ganhar... pelo menos o novil...
229
– Uma bomba de silêncios
Como
se fora uma bomba de silêncios! Subitamente, todos de nós,
os olhos no chão. Os olhos? E três , dos presentes, não
eram cegos?! Sim, os cegos também, os olhos no chão. Ainda
que o branco dos olhos de Jorge, o escritor, girasse o tempo
todo para o lugar nenhum — ele, que nunca usou óculos de
disfarce, diferentemente do outro cego, Aderaldo, o cantador,
que os usava pretos e largos —, ainda assim, que fossem ao
teto, aqueles olhos estavam no chão. Não, não eram ao chão
que “fitavam”. Era... para “dentro”.
O
Profeta respirou fundo e, resoluto, disse:
—
Sim, o novilho!
Não
sei que efeitos
reais tiveram as palavras do Filósofo Sertanejo sobre o monge
inquisidor e sobre o auditório. Sobre mim? Um pesadelo! Não.
Acho que foi um “sonho”, ou melhor, algo que jamais
saberei. Que tempo durou? Também não sei.
Então,
me veio à fronte, em cores muito nítidas, e tenho a certeza
de que era eu mesmo, este Djalma aqui, num tempo já muito
distante, escutando diretamente nos olhos de minha mãe, em
pessoa de carne e osso, ela a dizer só com os lábios... Mas
eu escutei nos meus ouvidos e não apenas nos olhos dela! Juro
que escutei, tanto naquele dia como neste outro da Biblioteca.
Lá, eu, entre dois guardas, à porta da lei. Ele não era
novo nem velho; já nem lhe guardo o nome, e até me esforcei
ao esquecimento — o senhor juiz. Não! Não consegui prestar
maior atenção no que ele dizia. Eu era jovem; ainda não
entendia o linguajar prisional de artigos e parágrafos.
A
fala dela, mãe, naquele tempo, sim, jamais esquecida. Foi
tudo muito claro e muito nítido. Desta outra vez também foi,
tanto que só tive tempo suficiente, ao ouvi-la, de me
refugiar no sanitário. [Como teria sido possível se minha mãe
não estava na Biblioteca, muito menos estava no dia do
juiz?]. Contudo, há momentos, agora, em que até desconfio
que não arredei os pés do lugar, na Biblioteca. A
cara, esta aqui, a minha — perdi a conta de quantas vezes a
lavei e, em maior número a enxuguei, se é que realmente fui
ao lavatório, mas desconfio que não fui. E, se fui, lavei e
enxuguei uma cara ausente, ainda que a minha, exatamente esta
aqui que continua apregada em cima do meu pescoço — ou não
continua? Sim, acho que saí.
O
fato é que, saindo ou ficando, fiquei sem saber o que
conversaram em minha “ausência”. Se tiver um dia a
chance, hei de perguntar a quem ficou. Aliás, a vontade
verdadeira foi — e continua — de perguntar aos cegos se
alguém, estando de cabeça baixa e de costas, poderia
"ver" a mãe, lá atrás, bem “atrás”, ausente
até, e ouvi-la balbuciar bem alto: «Meu filho, tu és o
meu filho amado!»
Este texto é um capítulo de Salomão, um
livro em processo.
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capítulo anterior:
Um cronômetro
para piscinas.
O capítulo seguinte:
Do
bolo-só-casca ou da Beleza só-superfície
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Luiz
Paulo Santos
Pequenas
navegações em torno de “Salomão”,
a
propósito de “Ninguém no chiqueirinho e a estranha
história do novilho”.
A
história como um redemoinho transitando o mundo. A
reunião é ampla, atravessa e aglutina os tempos e
espaços num só tempo e um só espaço sem fim nem
começo — para o abraço humano, dos mais contrários,
serenos e apocalípticos, inocentes e culpados —
quem há de? — se tão absurdamente humanos.
A
questão do tempo e do espaço me confunde, tento
expressar a percepção: um único espaço, um único
tempo, uma só humanidade. Tempos e espaços humanos
reunidos num só espaço e tempo, numa só humanidade:
“...e toda aquela multidão de santos e facínoras
presentes e ausentes à Biblioteca são uma única
pessoa! E completa, para quem ainda acha que é o sal
da terra, “Quem haveria de ser senão eu?”
Estou
chovendo no molhado porque isto está tão claro desde
o primeiro movimento:
.............................
“Desliguei
todos os relógios,
entortei-lhes
os ponteiros,
joguei-os
ao mar.”
Integração
sem exceções, da humanidade mais atroz — vide o
menino morrendo diante do abutre e do homem derrotado
(a escatologia está no homem, não no abutre)— à
mais transcendente, como os que vão à frente, os que
dizem, “não!”.
E
há inesperados rituais retransformados: a comunhão
dos pedaços trazidos do fundo dos tempos numa lata de
bolacha “cream-cracker”, o alimento de que todos
carecemos. E corolários: “Cheirar pra quê, se o
cheiro estava no mundo”.
(Hummm...
Bolo só casca, pão-só-bico, ô cheirinho, êta
cozinha geral, salve padarias! E a gente não
precisava mais disputar esse gostoso bico — eu e
meus nove irmãos.)
E
com paralelismos subjacentes, a “injusta” previdência
ao condenado, a passagem bíblica do “novilho
cevado” e dos talentos, os dois pedaços à
madrinha, pedaço maior ao cego Aderaldo, a parábola
termina com o que não está escrito, mas implícito:
só quem sabe renunciar pode entender que aquele que não
merece ganhe, que àquele que mais tenha se lhe
acrescente, pois ao renunciante nada lhe fará falta.
E
esse narrador híbrido de anjo e demônio que voluteia
na cena? É ele quem vê, mas que olhos! e advinha —
e com um humor de Anjo, conta tudo, vergasta as
contradições, ele próprio se curva e se mede, mas não
há ódio, há perdão o tempo todo, há comiseração
sem pieguice.
Há
uma certa catarse nesse grande encontro/balanço geral
marcado por um sentimento amoroso que tanto conflita
quanto perdoa, que a tudo compreende no duplo sentido
de abarcar e entender, que se coaduna com a
perspectiva do século C de Ésquilo.
Longe
de ser o protesto a sua espinha dorsal, como diz
Seffrim, “Salomão” é uma afirmação de sentido,
clara e fundamentada opção pela vida forjada na
concretude de nossas contradições, na busca
incessante de superação, no exercício de nossa
capacidade de pensar, nossa única singularidade
efetiva, nossa única justificativa, e na reinvenção
de um dos mais valiosos instrumentos do pensamento
humano, a literatura.
Se
o romance moderno é a síntese de todos os gêneros,
“Salomão”, mais do que nunca, patenteia esse
momento. Na minha modesta opinião, Feitosa, esta obra
é uma grande ousadia. Feitosa, és um ousado.
Grande
abraço,
Luiz
Paulo Santana
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