Sérgio Milliet
Carta à
dançarina
porque não tens olhos amantes
para te contemplarem esguia
dançando ao luar de maio,
um desafio brilha em teu olhar.
pés descalços na relva orvalhada,
queres ser livre e dançar,
não te iludas,
loucuras não libertam ninguém.
na comissura dos lábios
deixam um vinco de remorso e nojo;
de tristeza turvam-se os olhos
que desafiantes brilhavam.
antes apóia a tua mão na minha mão,
deixa que de ternura ela se aqueça
e a calma descerá no coração.
beiço de choro,
insistes em dançar ao luar;
mas não entendem essa tua ânsia feminina
de transbordar da carne morena.
desafias inutilmente um mundo cego,
gente que não vê teu ventro magro.
desafias inutilmente um mundo distraído,
gente que não sente a doçura de tuas mãos,
a riqueza quente de teus lábios.
e um desafio brilha em teus olhos.
não te iludas,
não basta quebrar as cadeias
para alcançar a liberdade.
a uma prisão sucedem mil prisões:
a do vício, a do tédio, a do cinismo.
antes chega tua pele à minha pele,
e teus lábios entreabertos a meus lábios.
é pelo amor que te hás-de libertar,
é para o amor que poderás dançar
ao luar.
quando tudo morrer
dentro de ti
quando tudo se fizer adubo
para a semente que em dia raro de inocência
o destino semear em tua alma,
a planta do amor vingará
dançarás em êxtase
ao luar,
para olhos porém de saber ver,
para boca de saber gostar,
para coração de comungar.
sem loucuras nem
remorsos,
olhos límpidos e pés ligeiros,
serás livre enfim
na prisão que então escolherás.
In: MILLIET, Sérgio. ... Cartas à dançarina. Il.
Fernando Odriozola. São Paulo: Massao Ohno, 1959.
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