Sérgio Milliet
Revolta
Em que pese a nossa revolta...
mas que somos nós!
mas que somos nós!
Terror dos olhos
que se voltam para dentro,
impotência das mãos presas à vida.
Jamais aceitaremos
essa lei terrível!
Mas que somos nós!
Mas que somos nós!
Pobre cousa agora
sorridente
nesse descanso que não queria,
já sem problemas,
sem perspectivas,
já sem gritos para dizer do inconformismo,
barro que torna ao barro
em que pese a nossa revolta!
Como uma estufa se
constrói um cérebro
e dentro desabrocha um pensamento,
flor de requinte
e se afinam as células sensíveis,
os olhos vêem mais longe
e fundo,
os ouvidos ouvem melhor,
distinguem Bach, Noel Rosa,
as narinas se adelgaçam
o tato se faz ligeiro
abre-se o coração em simpatia,
mas a morte está de atalaia
e eis que tudo se afoga em um pouco de sangue...
E que se creia em
Deus!
E que se creia em Deus!
Mas Deus chama os
melhores
em que pese a nossa revolta...
Ele se cerca dos mais puros
dos mais fortes e perspicazes,
Ele quer tropas aguerridas
de lúcidas almas que lhe possam ouvir
e entender os desígnios inescrutáveis.
Sim Deus chama os
melhores
porque os criou para si próprio
frágeis mudas para o jardim celeste.
Ele os arranca desta terra negra e suja
nessa hora exata em que começam a florescer...
Ah! que somos nós!
apenas recipientes.
potes de faiança ou porcelana
e se vinga a
semente plantada.
Ele colhe a flor
e transplanta a muda
em que pese a nossa revolta.
Jamais aceitaremos
essa lei terrível,
essa lei inumana,
e que só justifica a metafísica.
Jamais a aceitaremos.
nós que somos de carne, ossos, sangue e vísceras,
nós que somos fraquezas e imperfeições,
solidão, angústias, esperanças malogradas.
Jamais aceitaremos o destino subalterno
de instrumentos de sua vontade.
Mas que somos nós!
Mas que somos nós!
In: MILLIET, Sérgio. Poema do trigésimo dia:
versos... Il. Samson Flexor. São Paulo: Ind. Gráf. Brasileira, 1950.
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